La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

"Poesia é a floração da língua...o ápice da língua": entrevista com Aurora Fornoni Bernardini, por Agnes Ghisi e Helena Bressan Carminati

Helena Bressan Carminati, Aurora Fornoni Bernardini e Agnes Ghisi no Hotel Bica D'Água, em Florianópolis


      
Por ocasião da XI Semana Acadêmica de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a profa. Aurora Fornoni Bernardini veio à Florianópolis. O evento foi dedicado ao escritor e crítico italiano Umberto Eco, que chegou ao mercado editorial brasileiro graças a vários tradutores, dentre os quais, a profa. Bernardini. A conferência de encerramento intitulada “O Eco de “Pape Satan Aleppe”” foi realizada no dia 09 de junho de 2017. As traduções de Aurora Bernardini são bastante conhecidas e a sua contribuição, valiosa para a divulgação e circulação da literatura italiana, em especial. Pela editora da UFSC (EdUFSC), traduziu Giorgio Caproni e Umberto Saba, dois poetas de grande importância para o século XX italiano. E foi exatamente o contato com os textos traduzidos na antologia “A coisa perdida: Agamben comenta Caproni”, lidos e estudados pelas entrevistadoras, Agnes Ghisi e Helena Bressan Carminati, bolsistas PIBIC, o que estimulou a realização desta entrevista.

      O encontro foi realizado no Hotel Quinta da Bica d’Agua, na manhã do dia 10 de junho de 2017. Teve início às 9h00min e termino às 10h45min. Durante a entrevista, foram feitas perguntas relacionadas à tradução, literatura, poesia e sobre o poeta Giorgio Caproni.

      A entrevista foi publicada pela Qorpus.

Agnes: Para você, o que é ser tradutor? E o que significa ser tradutor de literatura no Brasil?

Aurora: Hoje em dia se considera o tradutor completamente indispensável, porque sem ele não há divulgação. Não apenas de notícias e novidades, mas de cultura em geral. Eu estava lendo esses dias um autor que dizia o seguinte, “os tradutores são importantíssimos, sem o tradutor eu jamais teria lido Dostoiévski em português”. Isso quer dizer, não teria lido autores que permitem um aprofundamento nas questões do indivíduo, nas questões da consciência, nas questões que regem a conduta de uma pessoa. Nesse sentido, a tradução é indispensável.

Em se tratando da tradução literária, ela exige cuidados ulteriores. Tradução literária implica arte. Há muitas traduções literárias que, de certa forma, prejudicam o original e podem até destruí-lo. Ou seja, transformar o original de uma obra de arte em uma obra qualquer, de divulgação, uma prosa corrente. Então, é muito importante que o tradutor tenha certo dom, que ele mesmo saiba disso e que os editores que o contratam saibam qual é o gênero para o qual ele tem maior aptidão. Essas questões são importantes, pois um tradutor não serve para qualquer gênero. Por exemplo, têm tradutores que são mais levados a uma linguagem abstrata, outros a uma linguagem concreta, outros a uma linguagem poética. Então, é muito importante que, primeiro, o tradutor se descubra e que, depois, essa descoberta seja comprovada pelo editor. E, depois ainda, pelos leitores. O que quero dizer com isso tudo é que a postura do tradutor é muito importante. Vou dar outro exemplo. Quando eu era criancinha, li um livro traduzido do francês que era a história de uma tal de Perrine, eu li numa tradução e fiquei encantada com o livro, fiquei fascinada com as aventuras da menina. Depois de uns anos, eu reli o mesmo livro numa outra tradução e achei o livro horrível. Falei para mim mesma: “mas não é possível que seja o mesmo livro”. Essa experiência me fez verificar que um dos tradutores era bom e o outro era completamente falseado, não apto para esse tipo de coisa.

O que percebo é que no mercado editorial brasileiro, infelizmente, os tradutores são escolhidos sem um critério e, com isso, muitas vezes é atribuído ao tradutor um tipo de literatura para o qual ele “não dá”. Enquanto se trata de livros de divulgação, o que se exige é o rigor em termos de adequação ao original, porém quando se trata de um livro científico, além do rigor, é exigido conhecimento do assunto. Um exemplo desse ponto, para a questão ficar mais concreta. Aquele livro famoso do Hawking [“Uma Breve História do Tempo”, 1988], sobre o tempo, que foi traduzido por uma pessoa que não entendia absolutamente nada do assunto, e escreveu uma porção de barbaridades, coisas até cômicas para um livro que na verdade é muito sério. Eu havia lido o livro em português e depois o li em inglês. É um livro complexo que exige, realmente, um conhecimento que não é apenas da linguagem do setor, mas de assuntos gerais que são tratados. Então, é muita a responsabilidade que está envolvida. Neste caso, da tradução científica.

Quanto à tradução artística, vou dizer que um dos primeiros livros que eu li, quando cheguei ao Brasil, foi “O Livro da Jângal”, na tradução de um grande escritor brasileiro, que é considerado, não propriamente o grande iniciador, mas o grande fautor da literatura infanto-juvenil: Monteiro Lobato. Ele traduziu “O Livro da Jângal”, e achei sensacional a tradução. Nessa época, eu nem sabia o que era tradução, eu era jovenzinha. O que quero registrar é que achei encantadora a maneira de ele narrar os fatos, e só depois descobri que a pessoa que traduziu era um grande escritor. Era uma pessoa que realmente tinha o dom da narrativa.

Por isso, eu acho que os grandes tradutores artísticos, os grandes tradutores de literatura, devem ser ou escritores ou poetas. Quando se trata de poesia, é imprescindível ter prática do processo. E sempre digo aos meus alunos que o tradutor, ele tem que ter a prática da criação; ou seja, eu digo a eles, “vocês escrevam diários, escrevam contos, escrevam poemas, façam o que puderem para sentirem quais são as dificuldades”. Nessas tentativas de escrita, às vezes, alguns até se descobrem, enquanto outros apenas treinam os procedimentos. Eu até descobri alguns tradutores excelentes. Por exemplo, esse rapaz que traduzia junto comigo, o Homero Freitas de Andrade, tinha o dom para colher a linguagem viva, a linguagem das ruas, digamos assim, a linguagem do povo. Ele tinha umas sacadas sensacionais. Essa era a característica dele, enquanto outros tendem para uma linguagem mais abstrata, mais filosófica. Estou insistindo nesse ponto porque acredito que seja essencial que cada um descubra a sua vertente. E, quando descobrir, é preciso praticar e ler muito. A tradução também é feita de leitura, o futuro tradutor tem que ler muito para dizer “olha, desse autor eu gostei muito”, “por que eu gostei?”, aí, dissecando os motivos dessa satisfação, dessa preferência, se descobrem, então, quais são os procedimentos usados pelo tradutor e se aprende.

Helena: Você se considera co-autora das obras que traduz?

Aurora: Bem que eu gostaria… Mas não chega a tanto. Aliás, traduzir é um sacrifício muito grande. Porque às vezes você é obrigada a represar alguma tendência sua para se manter fiel ao original. Agora, quando o original é prolixo, eu corto mesmo. E o que quer dizer esse cortar? Isso ocorre quando eu acho que a tradução ipsis litteris prejudica a recepção. Por exemplo, se o autor repete uma palavra ou acrescenta um advérbio a mais, então, eu tiro. Não pode existir fidelidade literal, tem que haver a fidelidade em termos de espírito, o espírito da obra. Qual é a essência dessa obra, qual é a essência dessa frase? E isso não significa tradução literal.

Como o evento que acabou de terminar, para o qual fui convidada, era uma homenagem a Umberto Eco, vou dar um exemplo do próprio Umberto Eco, que, como vocês sabem, escreveu vários livros sobre tradução. Em um deles ele até comentava sobre “au-delà de la haie”, em que a tradução literal seria “além da sebe”, e que, na tradução italiana, tinha ficado assim, “encontrar outra maneira de fazer isso”. Percebem como a frase é muito diferente, mas a essência é aquela? Numa tradução literal, caso se traduzisse “além da sebe” ninguém iria entender, porque aqui há um elemento cultural que na língua francesa é compartilhado, um lugar comum, é uma espécie de clichê. Então, o pessoal que lê já entende, mas em italiano não existe essa particularidade, neste caso.

Por isso, seguindo ainda Umberto Eco, é importante que se tenha uma espécie de “contrato com o original”. E o contrato é o seguinte: ou você adere ao original ou você adere à língua segunda, ou seja, à língua para a qual está sendo traduzido o livro. Aí é que está, ambos os elementos têm uma defesa possível. Às vezes, aderir ao original implica um enriquecimento da segunda língua, porque podem ser introduzidas novas maneiras de falar, novas formas de dizer, novas maneiras de expressar, novas formas de sentir. Com isso, há uma contribuição para o enriquecimento da segunda língua, contudo, às vezes, o tradutor incorre em falta de sentido, então, o ideal seria uma conjunção dos dois elementos do contrato. Todas essas decisões dependem do tipo de livro que está sendo traduzido e do tipo de leitor que haverá de fruir o livro, pois dependendo do tipo de leitor visado. Um leitor mais ou menos requintado poderá entender certos termos e certas analogias que outro leitor (comum) não entenderia. É fundamental ter essas questões em mente quando se traduz.

Para ver como essa escolha da linguagem é importante, vou dar outro exemplo. Eu tive uma orientanda que ia fazer uma tese sobre uma poeta de vanguarda americana bastante hermética, aí preparou a tese e quando chegou na hora de entregar, a linguagem era primária. Perguntei para a aluna: “Mas como você utiliza essa linguagem se a autora é tão hermética, tão requintada?” e ela me respondeu: “mas é que eu estou visando um público de alunos, meus alunos, que são ginasianos, então não quis usar uma terminologia difícil para eles”. Discutimos isso, e eu acho que um determinado autor exige um determinado tipo de tratamento. Mas afinal, é importante vocês analisarem todos esses planos.

Vamos pensar no poeta que vocês pesquisam: Giorgio Caproni. Caproni não é um poeta hermético, tem poetas muito mais herméticos que ele. O próprio Giacomo Leopardi é mais hermético, porque ele inverte as frases, inverte os elementos da oração, às vezes oculta elementos da oração e utiliza uma terminologia até mitológica. Como comecei a pensar na tradução dos poemas de Caproni? Primeiro, procurei quais seriam então as tônicas da composição dele, se ele dava importância ao ritmo, às rimas, a certos vocábulos. E, nas minhas pesquisas (vejam como é importante conhecer a biografia do autor, não para explicar a obra em si, mas para dar subsídios. É uma preocupação lateral, a preocupação principal é o texto. A biografia lança luz e permite entender o porquê do texto), eu descobri que ele era violinista e, inclusive, um violinista dotado (e que, num momento de ira, escangalhou seu violino). Então, o fato de ele ser violinista quer dizer que ele tinha um sentido da composição musical muito importante. E aí fui começando a perceber, também, os poemas de Caproni em termos de composição musical, ou seja, não necessariamente a rima simples, mas uma espécie de sinfonia, uma espécie de fuga. O que significa esse percurso que fiz como tradutora de Caproni? Fui entrando nos textos – e isso é fundamental –, fui dissecando os textos em termos de procedimentos, “quais são os procedimentos que esse poeta usa, como ele os usa, qual é, estatisticamente, a frequência desses procedimentos?” Uma coisa que chamou a minha atenção, e que descobri nesta oportunidade, é o uso de um termo, muito frequente em Montale e Caproni, que no Brasil já foi mais comum, mas hoje em dia quase não é usado. O termo é “mádido”, que quer dizer embebido. Mádido de suor, embebido de suor. Na escrita de um poeta há certos adjetivos que são obsessivos, certos nomes que também são obsessivos, e o tradutor tem de saber quantas vezes se repete, porque, na hora de traduzir, é preciso repeti-los. Não se pode substituir por sinônimos, porque são importantes na estrutura do poema.

Voltando, então, à tradução no Brasil. Em geral, na Europa, quando se tem um tradutor, digamos de Jean-Paul Sartre ou de Albert Camus, é esse mesmo quem traduz todas as obras desse autor, porque ele já criou um estilo e, por conseguinte, um leitor. O leitor já sabe que, lendo a tradução desse autor, vai entender assim, ou vai fruir assim. E, às vezes, como se trata de conceitos filosóficos, de conceitos mais refinados, é importante que o tradutor conheça o assunto, conheça o campo, além de ter um vocabulário adequado. No Brasil, não se dá essa importância a essa fidelidade. Então, se tem um autor que é traduzido por cinco pessoas diferentes, isso que prejudica a leitura, porque quando se está acostumado com um tipo de pensamento, de repente, com a troca de tradutor, tem-se outro pensamento, às vezes até errado. Então, o editor não tem esse cuidado e, na minha época, não teve mesmo. Nós tínhamos acabado de traduzir “O Nome da Rosa”, e o livro tinha feito aquele sucesso estrondoso que fez em todos os países. Então o editor telefona e diz assim “professora, nós temos aqui outro livro do Umberto Eco” (que era um livro de ensaios) e “se a senhora não puder, não tem problema, porque aqui do meu lado já tem outro tradutor” [risos]. Quer dizer, ele nem se deu ao trabalho de me convencer a traduzir ou, de certa forma, de preparar o caminho da tradução. Já foi me dizendo “eu tenho outro tradutor preparado, aqui do lado”. Você acha que isso é maneira de convidar alguém a traduzir? Falta de tato, falta de tradição em termos de como tratar o tradutor.

Hoje em dia, nós estamos em crise de aquisição de livros. Bibliotecas fecham, livrarias fecham. Porque a mídia vem substituindo e dando alternativas para o livro impresso, é possível encontrar o que se procura no Google, em e-books (se bem que o e-book não faz muito sucesso no Brasil). Eu, por exemplo, só leio livro impresso, não leio nada do computador e, inclusive, acho que faz mal à vista. Além de fazer mal a muitas coisas, faz mal à vista. Agora estão descobrindo uma porção de coisas. Fiquei sabendo, ontem mesmo, que fizeram um levantamento que o uso de celular prejudica os neurônios. Então, quem fica lendo um livro no celular ou mesmo no computador, acaba, a longo prazo, tendo uma repercussão danosa para o organismo, para o cérebro, para os olhos. Por isso, eu sempre leio o texto impresso. Nesse ponto, tem havido certas preferências. Em São Paulo, livros de escritores russos saem imediatamente, o pessoal adora os livros russos clássicos. Dei um curso sobre Dostoiévski na Casa Guilherme de Almeida e tinha mais de 55 inscritos. Na verdade, era um curso completamente avulso, quatro aulas. E a Casa Guilherme de Almeida é uma casa nova, não é uma instituição antiga, deve ter no máximo uns dez anos. Chama a atenção a afluência muito grande, é só publicar alguma coisa de Dostoiévski que vende imediatamente. Tanto é verdade, que a Editora 34 construiu sua estabilidade editorial em volta de livros russos, praticamente é ela que publica o maior número de livros russos, hoje em dia. E, às vezes, não só os clássicos consagrados, Tolstói, Dostoiévski, Tchekhov, mas até os mais recentes.

Nesse momento, tenho me dedicado muito à tradução de poetas russos. Aliás, poetas em geral. Porque, em primeiro lugar, eu não gosto de demorar meses sentada ao computador ou sentada em algum lugar traduzindo. Depois, eu acho que a poesia consegue sintetizar. A boa poesia consegue sintetizar não apenas uma ideia, mas a essência dessa ideia, de uma forma muito mais convincente do que uma prosa. Porque às vezes a prosa é muito prolixa, e a poesia, quando é boa, sintetiza. Então, é um desafio maior. Ligado a essa minha tendência, eu tenho traduzido, ultimamente, Boris Pasternak, que talvez seja o poeta russo mais hermético. Não é o mais hermético porque os cubo-futuristas foram mais herméticos que ele, mas ele era compositor musical, então, o fluxo dos vocábulos é muito complicado, porque “cadê a rima, cadê o ritmo?”, conforme o poema, ele vai mudando completamente, não acompanha. Então, foi realmente um desafio muito grande. Eu falei a minhas colegas: “qualquer tradução de poeta italiano, podem mandar, que eu farei com prazer”. Patricia Peterle e a Lucia Wataghin mandaram, fizemos juntas uma coletânea de Giuseppe Ungaretti, um livro que vai sair em São Paulo por uma editora que não é a EdUSP – porque a EdUSP agora mudou de diretor e está numa fase de paralisação. Eu acho que eu tenho certo dom para traduzir poesia. Para mim, é um prazer trabalhar com a poesia.

Os alunos querem muito saber normas referentes à tradução, teorias, teorias; esse negócio de teoria de tradução teve uma época de grande voga, todo mundo queria saber a teoria da tradução. Porém, a teoria da tradução, na verdade, implica apenas alguns poucos procedimentos. Por exemplo, eu era muito adepta do Haroldo de Campos, porque ele é uma pessoa extremamente inteligente e que tem essa sensibilidade, essa curiosidade, e essa descoberta em termos de tradução. Ele traduzia obras-primas de grandes literaturas, ele conhecia alemão, inglês, francês, italiano; e, quando ele não conhecia bem, como o grego ou japonês, ele tinha aula com especialistas, ou então, tinha acompanhamento de especialistas. O próprio Boris Schnaiderman, professor de russo, acompanhou a tradução da poesia russa moderna, dando informações quanto aos vocábulos etc. Haroldo de Campos, com quem fiz a tradução de um outro Ungaretti, com a organização da Lucia Wataghin, dizia: “eu consigo o original e traduções do original, as melhores possíveis, nas línguas que eu conheço, coloco tudo em cima da cama, abro tudo em cima da cama e vou vendo as soluções, para poder entender o que os tradutores entenderam daqueles trechos”. Haroldo não traduziu a “Divina Comédia” inteira, somente partes do “Paraíso”, mas é um trabalho sensacional. O próprio Umberto Eco escreveu um artigo sobre essa tradução, dizendo que a considerava como a melhor tradução da “Divina Comédia” já feita no mundo. Eu tive ocasião de comparar um trecho do Haroldo com o mesmo trecho de outros tradutores brasileiros, e o que descobri? Descobri que, de fato, o Haroldo estava traduzindo a essência daquela terzina, porque ele havia mudado todas as palavras, as palavras não eram as mesmas que o Dante usou – a métrica, sim, porque uma das grandes forças da “Divina Comédia” é a métrica –, as palavras eram outras, eram muito diferentes, mas o sentido era mantido e exato. Enquanto que outros tradutores, que tinham utilizado um vocabulário análogo, faziam coisas até infantis: “A mocinha disse para o rapaz”, alguém acha que Dante ia fazer um verso dessa forma? Uma obra como a “Divina Comédia” exige um estudo muito esmerado para descobrir qual é a melhor maneira de se traduzir. Esse método de colocar as traduções existentes em confronto é sensacional, porque com isso é possível dizer: “olha, o que que ele entendeu… e, na verdade, não é isso, então o tradutor errou, ou então: é isso mesmo, o tradutor acertou!”.

Muito recentemente, me deram pra ler no YouTube algumas traduções de uma poeta italiana chamada Annalisa Cima, que quer imortalizar as traduções que foram feitas da obra dela. Ela é uma pessoa de posses, está adiantada na idade, e falou “eu quero imortalizar as obras minhas que foram traduzidas em outras línguas, então, eu gostaria de pedir a você que lesse as traduções que foram feitas em português de meus poemas”. Comecei a fazer as gravações de seus poemas traduzidos, mas, quando estava gravando, comecei a perceber algumas imprecisões e fui corrigindo, no mesmo momento em que lia. Quando recebeu a gravação do português, ela me escreveu, dizendo “eu vi que você modificou algumas frases” e respondi: “sim, modifiquei porque havia erros de tradução”. Depois me disse ainda: “Olha, que interessante, esse erro que você descobriu em português também foi cometido pelo tradutor em inglês, ele cometeu o mesmo engano do tradutor brasileiro”. O problema estava na tradução de per tema, que o tradutor brasileiro havia traduzido por “por tema”, e o do inglês por by theme. Qual era a questão aqui? A palavra “tema” é, digamos, uma forma mais erudita de dizer paura ou timore, e eles traduziram de forma mais mecânica, não penetraram no âmago da língua.

Retomando o que estava sendo dito de Haroldo, é importante você traduzir junto com um nativo. Tem isso que eu falo para os meus alunos, “olhem, vocês vão traduzir do russo, que é uma língua muito difícil, mas mesmo do italiano, se vocês não são nativos, vocês têm que ter o subsídio de um nativo, pelo menos para conferir. Não precisam traduzir junto, vocês traduzem por sua conta, mas na hora de confrontar ou de verificar, vocês têm que ter um nativo que ouça, ou que leia com vocês, para que não haja erros dessa natureza”. Para conhecer esse termo de que falei antes, “tema”, a pessoa tem que ter estudado na Itália, ou tem de ter lido grandes autores antigos que usavam essa expressão. A pessoa que aprendeu como segunda língua no seu país, muitas vezes, não tem contato com essas nuances da própria língua. Outra característica do Haroldo de Campos: de qualquer língua que ele traduzisse, ele pedia sempre a um nativo que conferisse. E, no caso do italiano, ele pediu primeiro a Daniela Ferioli, que era uma excelente tradutora (traduziu Serafim Pontegrande para o italiano de uma forma admirável. Às vezes, a tradução pode até enriquecer o original. Quer dizer, eu não ria tanto lendo em português como eu ria lendo em italiano, ela conseguiu introduzir elementos de muita vivacidade) e, quando ela deixou de traduzir, ele me chamou. Então, quando ele traduzia alguma coisa do italiano, ele sempre pedia pra eu verificar, ou para traduzir junto com ele. Nós traduzimos o Ungaretti juntos, ele traduziu “A Alegria”, eu traduzi “A Dor”, fizemos um livro juntos, com a coordenação da Lucia Wataghin. Eu dava os meus palpites, uma vez que ele havia pedido. Mas ele insistia com a solução proposta, justificava o porquê. E se ele justifica o porquê, ele tem plena convicção do que fez, ele tem o direito, pois acaso não ele não é o autor da tradução? Não se tratava de erro, se tratava da escolha de um vocábulo, por exemplo, “irmãos”. Em italiano era fraternità e ele botou “irmãos”, e eu insisti dizendo que o termo não era bem aquele. Porém, ele tinha a justificativa, provavelmente dentro do enredo do poema, das palavras, cada tradutor tem o seu esquema diante da tradução. O que resta da atitude de Haroldo como tradutor é o fato de ele pesquisar, ele era um leitor muito assíduo de crítica literária, participava de encontros. Era uma pessoa que vivia, particularmente, a poesia. Ele vivia a poesia. Por isso, sem dúvida, o Haroldo tem sido, neste últimos tempos o maior e melhor tradutor de poesia que nós temos aqui no Brasil.

Depois, ele introduziu certos elementos da “compensação”, o que é maravilhoso. Ele dizia: “bom, você está traduzindo um poema e não consegue criar o efeito que o original deu nessa linha, mas consegue criar o efeito parecido numa outra linha, onde o autor não deu esse efeito”, então, essa é a lei da compensação. Se você perdeu aqui, pode ganhar em outro lugar. Essa também foi uma solução do Haroldo que eu achei sensacional. E ele chamou a sua técnica de transcriação, porque, de fato, no caso da “Divina Comédia” é realmente transcriação.

Agora, a minha postura é um pouquinho diferente, eu acho que quando existe um paralelismo exato entre o termo italiano e o termo brasileiro, não há a necessidade da troca. Se o termo é o mesmo, o significado é o mesmo, o som é o mesmo, não cabe mudar o termo. Aí já é uma liberdade indevida, porque há uma distorção do que não precisa ser distorcido. Tem alguns tradutores que fazem isso, que inserem palavras diferentes, embora exista a mesma em português. Então, nesse ponto, eu sou mais fiel ao original, quando pode. Então, não seria caso de transcriação, seria caso de tradução mesmo. Mas a ideia de transcriação é muito interessante.

Agnes: Eu queria voltar um pouco na questão de no Brasil um mesmo autor ter diversos tradutores e, logo, estilos diferentes. Isso se deve a pouca quantidade de tradutores ou por ser uma profissão que não é paga o suficiente?

Aurora: Havia poucos tradutores. Mas eu acho que é relaxamento mesmo. É falta de rigor e de exigência por parte dos editores e falta de insistência por parte do tradutor. Por acaso, no voo de São Paulo para Florianópolis, vim lendo um livro do Gerd Bornheim, que é um filósofo brasileiro, especialista em Sartre. O livrinho que estou lendo dele é “Sartre”, porque já havia lido outro dele sobre dialética que achei sensacional. Esse é um filósofo que expressa perfeitamente o pensamento de Sartre. Então, eu posso confiar no que ele está fazendo, posso confiar no que escreveu. De repente, me caiu às mãos uma obra de Sartre traduzida por outro tradutor, do qual não vou mencionar o nome, que tinha os mesmos conceitos, mas eram completamente diferentes. Isso é uma distorção e é uma irresponsabilidade, quer dizer, a pessoa que entregou essa tradução à pessoa que não fosse já reconhecidamente conhecedora do assunto, ou conhecedora do autor, pecou. Porque no nosso mercado temos traduções defeituosas em termos de filosofia da religião, me dizem que há erros calamitosos em traduções da Bíblia. No lugar de Deus dizer “Eu serei”, eles põem “Eu sou”, há muita diferença entre dizer “eu sou” e “eu serei”. Quer dizer, há erros catastróficos nos textos religiosos, a mesma coisa em filosofia. Não é que haja falta de tradutores, é falta de saber procurar os tradutores, porque existem. Pode ser que antigamente fosse mais raro, mas hoje em dia, não é mais. Basta pegar um estudioso que estudou, fez uma tese ou que comprovadamente entende do assunto e convidá-lo.

Por outro lado, é verdade que se paga mal. Paga-se muito mal. Quer dizer, o tradutor é um abnegado, é um sacrificado, mas também é alguém que tem vocação. Da mesma forma que eles pagam muito mal aos professores. Coitado do professor, ter que preparar os alunos do primário, que são completamente indisciplinados, e motivá-los e levá-los adiante, depois, no ginásio, evitar a evasão… No fim do ensino médio, procurar a motivação… Então, é uma vocação e, naturalmente, o que se recebe não corresponde ao esforço. E o mesmo se diga no que se refere aos tradutores, parece que tradução simultânea é muito bem paga, ou tradução técnica. É bem mais paga que a tradução literária. Mas a pessoa tem que se esforçar, tanto os tradutores quanto os editores, os leitores e os ouvintes, eles têm que colaborar, contribuir e se fazer ouvir. Porque o brasileiro tem um pouco o hábito de não se fazer ouvir.

Helena: No caso do Caproni, ele não foi traduzido antes. Como foi o processo da tradução e qual foi o critério de escolha dos poemas? Por exemplo, do “Il Seme del Piangere”, que foi o que eu trabalhei no PIBIC. Desse livro, tem seis poemas traduzidos, e eu queria mais [risos].

Aurora: Em primeiro lugar, é preciso dizer que fiquei conhecendo a obra de Caproni por meio do contato que tenho com a área de italiano da USP. Estou há alguns anos afastada, mas continuo atuando. Pertenço ao departamento de teoria literária e de russo, mas sempre mantive contato com os professores do departamento de italiano. Inclusive, muitos deles foram meus orientandos, porque o curso de italiano não tinha doutorado (é relativamente recente), então eles recorriam a mim, com isso a maioria dos professores são meus ex-orientandos. Uma dessas professoras me falou muito sobre o Caproni, que eu não conhecia, como sendo um poeta da Ligúria, que era interessante, que estava sendo revivido na Itália. Mandei vir os livros da Itália, e achei muito interessante a poesia dele, então resolvi traduzir graças a Lucia Wataghin, essa moça que me indicou.

Agora, e a escolha dos poemas a serem traduzidos? A escolha foi feita por setores, a partir dos vários livros de poemas dele. Na verdade, a escolha foi pessoal, entra um pouco a questão de gosto, que é muito discutível, porque você pode gostar de uma obra que não tenha mérito literário, mas houve na leitura algum processo de projeção, personificação, alguma descoberta – são questões até psicanalíticas. Por outro lado, uma obra pode ter valor literário, mas pode não agradar ao tradutor. Com Caproni o que definiu as escolhas foi isto, o gosto. Diferentemente de quando traduzi do russo uma poeta chamada Marina Tsvetáieva, em que o critério foi o que sairia bem em português. Pelo fato de a língua russa ser completamente diferente do português, então não se pode procurar assonância, nem ritmo, nem rima, nada. Nada que corresponda. Neste caso, os que saíram melhor foram selecionados. No caso de Caproni, fui eu que selecionei e dependendo do gosto que tinha na leitura. Mas, o que seria esse gosto? Era o som, ou era o assunto, ou era a transcendência, ou era a impetuosidade. Vamos dizer, por exemplo, quando ele matou aquele fulano, durante a guerra. Ele teve que matar um inimigo. Um tártaro, um mongólico – ele chama de mongólico porque vinha da Mongólia. Ele ficou, então, horrorizado. Ele deu o tiro e ficou horrorizado. Então, esse poema impressiona pela força, um sentimento humano terrível. E isso foi um dos motivos da escolha. Agora, de uma maneira geral eu busquei representatividade. Então, cada seção foi composta por poemas que eu considerei mais condizentes com o tema e com a seleção. A escolha foi subjetiva, porém com algumas condições, de ser mais representativo, de corresponder a esse intuito do poeta, quer dizer, é uma mistura de razões. Mas, principalmente, foi escolha subjetiva, nesse caso.

Agnes: Em relação ao “A Coisa Perdida: Agamben comenta Caproni”, o livro traz o prefácio (“Desapropriada Maneira”) de Agamben para o último livro de Caproni, publicado póstumo, “Res amissa”, que foi retomado no título em português da antologia. Nele, o filósofo propõe a pergunta “por que nos importa a poesia?”. Como você responderia a isso?

Aurora: Eu vou responder a algumas coisas, primeiro porque – aliás, foi bom você ter levantado essa questão – não deixei de traduzir nenhum dos poemas mencionados pelo Agamben, quer dizer, esse também foi um critério importante. Verifiquei quais eram os poemas mencionados por ele e fiz com que não faltasse nenhum, nas traduções que eu fiz. Por isso o título implica o Agamben, porque foi feita a seleção inclusive tendo em consideração a escolha dele, isso foi um critério, que poderia fugir ao meu gosto pessoal, poderia coincidir ou não. “A Coisa Perdida” é um deles, ele gostava demais desse. Agora, o que é poesia, você perguntou? O que é?

Agnes: Por que nos importa a poesia?

Aurora: Ah, por que nos importa a poesia… Bom, basta lembrar que o Ludwig Wittgenstein – que é, de fato, um grande filósofo – dizia que a filosofia devia ser escrita, devia ser composta, em forma de poesia. Isso já basta para dizer porque é importante a poesia: porque a poesia condensa, sintetiza e, até, clarifica um conceito, um sentimento, uma contradição. Quer dizer, a poesia, quando ela é válida, consegue “botar o dedo na chaga”, muito mais precisamente e sinteticamente do que uma prosa. Às vezes a prosa também consegue, porque não vou dizer que não consiga, mas a ela precisa de muito mais palavras para dizer a mesma coisa, para poder dizer o que a poesia diz de forma muito mais brilhante.

Então, realmente, a poesia é a floração da língua, é, vamos dizer assim, o ápice da língua. Agora, é difícil ser poeta. Eu estava comentando na palestra [O Eco de “Pape Satan Aleppe”, conferência de encerramento da XI Semana Acadêmica de Letras] que eu recebo, diariamente, poemas de “n” pessoas, mas eu leio aquilo e penso: “o que o pessoal acha que é poesia? Poesia não é uma confissão, não é uma impressão”. Quer dizer, pode partir até disso, mas tem que ser trabalhada. O pessoal não trabalha nada, não trabalha. Ou seja, precisa estudar o som, precisa ver o ritmo. Apesar de a poesia contemporânea ter aberto mão da rima, não faz mal, mas tem que ter uma assonância interna. Os sons são importantes na poesia, eles também compõem o sentido. E a maioria das pessoas se esquece disso. Então, aparecem, assim, umas frases, às vezes tem até frases interessantes, mas não têm nada de poesia. São aforismos. Poesia é a consonância, é o coroamento recíproco do som e do sentido. O pessoal esquece o som, esquece completamente o som. E insisto, veja o ritmo, veja a assonância, a poesia é uma síntese e a pessoa tem que ter um conhecimento muito profundo etimológico e linguístico da sua língua, ela tem que ter um vocabulário riquíssimo, porque justamente tem que escolher o vocábulo conveniente, então, se você não tem o repertório rico, você não escolhe. A escolha fica no nível da banalidade. E depois, tem que conhecer também a parte etimológica, os arcaísmos, às vezes tem que criar até neologismos na linguagem. Mas é preciso ter competência, conhecimento, e essa tendência a gostar de fazer aquilo, a que chamam de dom. Fora disso, esse negócio de sentar e escrever não funciona. Esteve em moda, uns anos atrás, um lema assim “criação é transpiração”; não é nada disso. É preciso ter método – especialmente para a prosa, tem de ter método, tem de ter disciplina –, mas se você não tem o dom e não trabalha esse dom, essa tendência, esse gosto pela coisa, não vai para frente. Fica artificial, fica forçado.

Helena: E você tem algum plano pra traduzir uma obra do Caproni completa?

Aurora: Não, pessoalmente, não. Mas estava me dizendo, esse seu colega do doutorado [Alencar Schueroff, doutorando pela UFSC, com estudo comparativo entre a poesia de João Cabral de Melo Neto e a de Giorgio Caproni] que ele vai traduzir alguns poemas do Caproni. Eu acho bom traduzir, eu acho bom continuar. Porque Caproni abordou vários temas, e ele foi uma pessoa, enquanto ser humano, extremamente exemplar. Então, eu acho que tudo o que puder se fazer a respeito dele, vale a pena. Em termos pedagógicos – ele era professor também – parece que ele escolheu dar aula nos arredores, na periferia de Roma, quando ele foi para lá, porque queria ajudar as crianças que não tinham meios. Quer dizer, uma pessoa extremamente dadivosa, e que tinha esse espírito de coletividade e de abnegação. No fundo, no fundo, o tipo de pessoa implica também no tipo de mensagem, isso no fundo, no fundo. (No caso de Baudelaire, ele era viciado, acho que era em ópio, não é? Escreveu “As Flores do Mal”, e o Umberto Eco dizia “bom, a gente perdoa as flores do ópio diante das flores do mal”, sem dúvida perdoa. Mas, a longo prazo, em última análise, descobre “qual é” a do Baudelaire, e “qual é” a do Caproni.) Então, acho que vale a pena revê-lo ou revivê-lo, e divulgá-lo, sem dúvida.

Agnes: E em relação a seus planos de tradução de poesia para o futuro, o que você tem em mente?

Aurora: Bem, no momento, eu estou traduzindo o Pasternak, e eu vou participar de um projeto da professora Dirce Waltrick do Amarante com a tradução de dois capítulos do James Joyce, de “Finnegans Wake”, que será muito trabalhoso. Vou conseguir fazer duas páginas por dia, porque o texto é complexo, muito complicado. Cada palavra tem que ser sopesada, primeiro tem que descobrir como a palavra é composta, às vezes, é composta do alemão e do inglês, às vezes do latim e do inglês, às vezes até do italiano, porque o Joyce morou muitos anos em Trieste. Outras palavras ele retira da Irlanda antiga, dos galegos ou dos celtas, certos conceitos, certos termos, e junta com o inglês. Então, entre pesquisa e forma de render isso em português, leva um tempão. No momento é esse, não quero assumir outros encargos porque aí destoa muito, esse projeto é muito denso e não posso ser bombardeada com outras coisas. Eu posso fazer tradução para um amigo de uma parte em prosa– faço num instante – mas eu considero esse trabalho do “Finnegas Wake”, sem dúvida, um trabalho de poesia, porque além de ser poesia em termos de som (o Joyce era grande musicista, compunha músicas, inclusive, ele tem uma obra chamada “Música de Câmara”, que é feita de poemas dele que são musicais e musicados) tem um sentido de ritmo que é fundamental. Estou fazendo isso agora, abri mão de outras traduções porque interfeririam, me atrapalhariam – a pessoa, diante da complexidade de alguma coisa, tem que se dedicar.

Eu também sou adepta do “enquanto”, mas esse “enquanto” não é uma mistura simultânea, quer dizer, eu faço alguma coisa e faço outra. Como dizia Umberto Eco, se faz um trabalho e se descansa desse trabalho fazendo outro trabalho. Um dia perguntaram para ele “por que o senhor consegue fazer tanta coisa?” e ele disse “porque quando eu estou cansado de trabalhar num assunto, eu descanso trabalhando no outro, e não dormindo” [risos]. Às vezes a tradução de um gênero descansa você do outro. Então, como descanso do James Joyce? Descanso escrevendo. Eu comecei agora um romance chamado “Sigiloso Desígnio”, e minha filha falou “mãe, o que é ‘sigiloso’, o que é ‘desígnio’, eu não estou entendendo” [risos]… Tudo bem, não tem problema. Trata-se de um romance histórico que eu estou escrevendo, da época de Dom Pedro II, de um explorador italiano, que por sinal existiu, mas eu estou romanceando muito. É Ermanno Stradelli, um explorador, conhecedor de toda a bacia amazônica, particularmente dos rios, e ele escreveu uma obra chamada “Boletins”, que seriam relatos de viagem a respeito das várias expedições que ele fez ao norte do Brasil. Fiz a tradução desse livro e achei a figura dele muito interessante. A figura de uma pessoa extremamente abnegada, filho de nobres, conde, abriu mão de tudo, veio para o Brasil e se embrenhou pelo Amazonas adentro, e se transformou em um grande conhecedor da cultura amazônica e foi muito amado pelos índios, que achavam ele “um enviado”. Inclusive, em certas ocasiões históricas, os índios não permitiram a vinda de agentes do governo, mas permitiram a passagem dele. E ele foi, então, um instrumento pelo qual o governo brasileiro (na época, Dom Pedro II) conseguiu levar uma expedição até aos confins, até o Cacuhi. Stradelli dedicou sua vida à Amazônia, mas depois ficou com lepra e morreu dessa doença. Nunca mais voltou à Itália, passou mais de quarenta anos no Brasil, chegou jovenzinho, adolescente recém formado. Transformei-o num dos protagonistas desse romance. Então eu descanso assim, tentando ir adiante no romance e traduzindo James Joyce. Atualmente, são esses meus planos.


Helena: E o processo de traduzir Caproni, demorou quanto tempo?

Aurora: Geralmente, sou bastante rápida no trabalho, então não demorou muito. Havíamos fixado datas, mais ou menos um ano, para traduzir esses poemas. É preciso considerar que a língua italiana não é muito diferente do português do Brasil. É possível até comparar a tradução com o texto em italiano, e a confirmação é a de que não há muita divergência. Lógico que há a contagem de sílabas, o tipo de ritmo, o acento, mas os vocábulos são muito parecidos, muito próximos, então não é tão trabalhoso. Agora, no caso do russo, aí levaria dez anos. Eu, para traduzir 25 poemas do Pasternák (24 porque um já tinha traduzido), levei três meses, trabalhando todos os dias. Porque é muito mais difícil, uma vez que a língua não tem nada de próximo, nem etimologicamente, nem em termos de expressão linguística, inclusive a gramática é diferente, mas, dependendo do poeta, você leva mais ou menos tempo. Agora, por que foi escolhido o Agamben? Porque o Agamben cismou com esse A Coisa Perdida, ele achou que isso teria um significado filosófico extremamente importante. Bom, o Caproni queria mostrar o quê? Ele queria mostrar que quanto mais se gosta, se valoriza, se privilegia uma coisa, mais ela está fadada a desaparecer, ou de repente, sem se saber como, ou inevitavelmente. Considerando também na grande circulação de Agamben, nas suas traduções tão lidas no meio universitário, pensei: “olha, que coincidência, ele fez um prefácio a essa coletânea [“A Coisa Perdida”], inclusive mencionando vários poemas, para nós vai ser ótimo, porque a gente vai poder acompanhar a sequência que ele dá e tentar decifrar, particularmente, esse poema, pela análise que ele faz”. Há quem tenha falado: “não sei por que é dito Agamben analisa Caproni”, no subtítulo, “acho que se valeram do Agamben para divulgar o livro, mas se se valeram, fizeram muito bem” e, realmente, foi isso mesmo. Foi uma conjunção. O título foi sugerido pela importância de Agamben, nesse momento, pois o Caproni era desconhecido. Então Agambem está apresentando um poeta, e isso foi importante como forma de apresentação. Na época em que nós publicamos o Caproni, Agamben era extremamente adequado, por isso ele o apresentou.

Agnes: A primeira vez que eu vi o livro, eu reconheci justamente o nome do Agamben, e não conhecia o Caproni ainda [risos].

Aurora: Para você ver. E o Caproni foi resenhado por uma série de grandes críticos italianos, mas, muitas vezes, esses eram até críticos políticos, porque ele foi importante politicamente. Não era uma abordagem da obra artística ou da obra filosófica, como fez o Agamben, mas era uma percepção do homem, da figura humana. Isso acaba pesando. O cara é bom poeta, e é excelente pessoa, e é uma pessoa abnegada, que se dispõe a sacrificar-se para o bem da juventude, então você valoriza, inevitavelmente. Não dá para misturar uma coisa com a outra, porém, tem muita gente abnegada e sacrificada em prol da sociedade que é péssimo artista, que não tem nada de artista, mas, havendo, é um acréscimo. Sendo artista e tendo esses méritos, é melhor ainda, reforça. Eu pelo menos penso assim, não separo completamente a obra da biografia. Parto da obra, mas a biografia, do ponto de vista emotivo, ela pré-dispõe a insistir, a continuar com o artista.

É importante pensar na vantagem da literatura. Na Rússia, o papel da literatura sempre foi mais importante do que o papel de qualquer outra coisa, do ponto de vista espiritual e até mesmo político. Porque os escritores eram os profetas e eram os denunciadores. Então, para denunciar os abusos do czarismo, das torturas, ou das prisões czaristas, o escritor produzia um romance usando metáforas, substituindo nomes, substituindo pessoas, mas o leitor já percebia. O leitor já descobria, dentro daquele romance, qual era a denúncia, qual era a situação, qual era a alusão. Por isso, para a Rússia, a literatura sempre foi a fonte de descoberta da verdadeira verdade, não da verdade falseada. A poesia mais ainda. Se a obra literária narrativa pode se delongar e pode falsear melhor, a poesia é mais incisiva. Então, às vezes basta uma linha para você saber qual é a denúncia crucial.

Traduzi uns poemas russos para a revista online Kalinka, foram um ou dois poemas de Alexander Pushkin, Ivan Bunin, Alexander Blok, etc.. A pessoa responsável decidiu preparar um livrinho de vinte páginas com as traduções e depois mandou para a Rússia, para um congresso de tradutores. O retorno que tive, muitos e-mails, convites, dá a noção de como eles dão uma importância muito grande à poesia, que é vista como síntese, radiografia de uma situação. No Brasil nós não temos muito essa tradição quanto à poesia, mas quanto à prosa, tivemos no passado, o Lima Barreto, por exemplo, o Graciliano Ramos, que expõe uma situação trágica, o Euclides da Cunha. Hoje em dia tem muito sociólogo, muito psicólogo, muitos livros de autoajuda. A nossa literatura, hoje, insiste no lugar comum. E esse é o mal da pseudo-literatura, ela só fala a mesma língua e não enriquece, era justamente isso que mencionava na minha conferência de ontem. Na visão de Umberto Eco, em geral, se prefere quem diz a mesma coisa, quem é igual. Parece que o Facebookficou assim, que o Facebook acaba criando greis de pessoas que acham a mesma coisa, que concordam com a mesma coisa, e não se abrem para outras e novas perspectivas, acabam “chovendo no molhado” e acostumando o cérebro a ser preguiçoso. Ficam assim e não se interessam por coisas diferentes, continuam no mesmo. Esse é o mal do Facebook, de acordo com o Umberto Eco e de mais alguns intérpretes da ideologia e da fenomenologia dessa rede, de se ficar no mesmo lugar. Já teve um poeta que a Patricia Peterle traduziu, junto com o marido, o Andrea Santurbano, que é o [Enrico] Testa. Eles traduziram uma coletânea de poemas dele, que é professor universitário e foi convidado para umas palestras em São Paulo, inclusive. Eu participei de uma mesa-redonda com ele, em que dizia, justamente, isso, que o óbvio é um insulto, o óbvio é uma calamidade, porque não exercita o cérebro, mas o torna preguiçoso. A pessoa é convidada a se acomodar no seu “mundozinho”, naquilo que acha, no conforto que tem com pessoas que pensam igualmente, e chega até a ser hostil em relação a quem pensa diferente. Então, é um grande mal, a literatura do óbvio é um grande mal para o serviço. Essa é uma observação do Testa que é verdadeira, é comprovável.

Então, é isso, quer dizer que se tem que procurar através da poesia, através da literatura, abrir perspectivas para o outro, para o diferente. É isso o que dá a literatura, que abre para o diferente. Lógico que não é só a literatura, às vezes, têm até obras científicas que são narradas. É isso que Umberto Eco dizia numa crônica que citei ontem. Eco dizia – e eu concordo – que até a ciência deve ser ensinada e apresentada em termos de narrativa. Isso é uma grande verdade. Existe um físico que está tendo o maior sucesso no Brasil, Carlo Rovelli, são dele “Sete Lições de Física” e “A Realidade Não é o que Parece”. Este último é sobre gravidade quântica, mas ele começa a contar uma história recuperando Demócrito e mostrando que seus escritos, que foram perdidos, de certa forma previam o que teria acontecido nos estudos quânticos. Então, a ideia fundamental dos estudos quânticos deriva de Demócrito passando por uma série de filósofos gregos. Até o próprio Dante é trazido a partir do Paraíso e de suas esferas sobrepostas, uma iluminando a outra: a descrição da energia quântica. Assim, ele transforma fenômenos científicos, ou considerações de física quântica, em uma narrativa que tem a sua origem nos grandes pensadores da antiguidade, e que está em andamento. O livro é interessantíssimo, porque tem uma narrativa que não é exclusiva da literatura, pode, perfeitamente, ser aplicada ou utilizada por outros domínios, mas é preciso que seja contada ao leitor, não colocada em termos de fórmula ou em termos de sentença, como costuma sê-lo para iniciados. Essa é a melhor maneira de abrir-se, como ele mesmo coloca na “crônica”, “O ângulo reto tem 90°”. Não – diz ele – o mais acertado é dizer: “o ângulo reto é formado por uma linha que cai… etc.” aí, sim, uma narrativa que inclusive permite imaginar, visualizar o todo. Então, hoje em dia, você tem essa narrativa que está penetrando numa série de outros domínios, na história, sem dúvida, o Ferdinand Braudel, os Annales, que é uma escola da França, todos eles introduziram a narrativa na descrição dos eventos históricos. Então, não é só data e fato, tem toda uma história, todo um embasamento, toda uma comparação com outros domínios, de forma a enlevar o leitor, a interessar o leitor.


Helena: Nesse sentido, você concorda que a literatura pode ser uma fonte para a história?

Aurora: Sim. Marx dizia que ler “A Comédia Humana” de Honoré Balzac é muito mais historicamente relevante e representativo, do que ler fatos históricos ocorridos. Então, “A Comédia Humana” é muito mais viva, muito mais profunda, é muito mais significativa que tantos livros de história. Então, sem dúvida a literatura é uma referência fundamental para a história. E, muitas vezes, ela a explica. Umberto Eco diz, se o George W. Bush tivesse lido obras importantes, obras clássicas importantes, não teria caído no engano de tentar combater no Afeganistão junto com os russos e perder a guerra, ou seja, não resolver a questão do Afeganistão. Toda tradição, se bem analisada, se bem descrita, se bem penetrada serve de subsídio para as ações futuras. Mas o pessoal não tem formação intelectual, todos estão preocupados com o contingente, com o presente, nem tem tempo de ficar pensando no passado. Por isso que o Camillo Olivetti (também ele foi citado por Eco numa outra crônica) chamou os experts em informática para começar a produzir os computadores, mas chamou intelectuais para ajudar a programá-los. É preciso que haja colaboração entre diferentes formações, diferentes domínios e diferentes sensibilidades, isso que acho importante. Tem sempre que procurar outro que subsidie, que complemente, que troque ideias, e isso se faz muito em função da leitura. Se não se tem muito essa mobilidade de contatar pessoas, há a possibilidade de ler livros convenientes. Perguntaram para o Ezra Pound “qual é a função do crítico?”, resposta “orientar os leitores”, orientar as leituras.

Agora, infelizmente, a crítica nem sempre orienta. A cinematográfica, por exemplo. Eu estou sempre me queixando, eu vou ver o filme por causa da cotação do filme, e está lá “cinco estrelas”. Vou ver e percebo que é algo completamente superado, completamente déjà vu. Que orientação é essa que dão? Às vezes o crítico tem outros interesses, ou ele não dá para ser crítico; não é qualquer crítico que serve. Tem que saber qual crítico serve. É muito importante isso, você confiar no crítico para seguir suas indicações.


como citar: GHISI, Agens. CARMINATI. Helena Bressan. "Poesia é a floração da língua...o ápice da língua": entrevista com Aurora Fornoni Bernardini. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.3, março. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209908