La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

A quarentena, um hipertexto que derruba as paredes de casa, por Elvira Seminara



Roma. Piazza di Spagna. 15 de março de 2020. 12 horas. skylinewebcams 



Antes de mais nada, por honestidade, me delato. Eu não leio. Desde que começou a quarentena, eu, que sempre li por trabalho, paixão e feliz automatismo, parei de ler romances. Abri muitos, degustados e folheados, mas depois, todas as vezes, para meu espanto, abandonados. Sentia um vago desconforto, entre intolerância e um obscuro sentimento de culpa, como se me imergir em outras histórias fosse uma espécie de deserção do mundo, ou sinal de ignóbil distração.
Meus dias – segunda confissão – no início da quarentena são longamente e obtusamente passados no sofá, diante da tv, perseguindo ansiosa e vorazmente cada atualização sobre a epidemia.
Somente depois, perseverando na estranha rejeição, entendi o que está por trás disso. É a percepção – antes opaca e pungente, agora clara e consciente – de já viver, com a chegada do vírus, em uma grande narração. Uma narração poderosa e envolvente, policêntrica, que não só diz respeito a todos, mas se desenrola sob os nossos olhos com uma pluralidade de camadas, uma variedade de vozes narrantes e uma mudança de paisagens capaz de transformar cada romance já escrito em uma história limitada e monótona.
Estamos dentro de um hipertexto. O advento do Covid 19 apagou e reescreveu nossas características sociais, nossos hábitos, nosso modo de habitar o mundo. Desmembrou nossas estruturas temporais, os códigos de acesso ao outro, a dinâmica relacional, nossa postura no espaço. A proxêmica consolidada do nascimento. Aliás, repaginou nossas coordenadas elementares, forçando-nos a ativar novas maneiras de leitura e consumo do tempo e espaço, em que o primeiro é achatado em um presente contínuo e fragmentado, sem previsões ou possibilidades de planos, o segundo reduziu-se ao espaço da casa.
Mudou o nosso pequeno mapa pessoal, de deslocamentos e esperas, ações e microgestos domésticos. Quando ando pela casa, a paisagem íntima e familiar revela sombras desconhecidas, porque superexposta a um olhar e uma escuta nunca tão presentes. Torna-se perturbadora. Você ouve a voz da geladeira que muda com o tempo, brusca e depois lenta, eleva-se o barulho da lava-roupas, no jardim os pássaros são mais extrovertidos. Vejo pó e teias de aranha com um olhar (por sorte) não tão intenso, aliás preventivo. E limpo, lavo tapetes, desinfeto, com uma ansiedade depurativa, e uma obsessão nos limites da euforia, que me levam a consertar, recuperar, sanear. Gosto de ativar verbos de correção, como desenodoar, desincrustar, podar, esvaziar. Mas dessa vez não em honra a Kafka, que escreve com o machado para rachar a crosta das coisas – não, penso em uma subtração previdente. Não há renascimento sem perda – de produção, de consumo, de palavras, de rejeitos e escórias. Simone Weil o chama “decriação”, e o atribui a um Deus decidido a nos ajudar.
Gostaria de tirar o excesso – admito – remover qualquer camada de sujeira e desgaste das coisas, aliás, as próprias coisas com todos seus testemunhos inúteis ou molestos. Todos os objetos de casa (mas é um sentimento que já exprimi, isto é, antes do Covid), têm o vício feroz de testemunhar contra você, e com frequência serem memória não desejada. Não acredita?
A verdade é que não me sinto reclusa. Sinto, e vejo ao meu redor, a vida aumentada. Não é fácil, como se vê, contar meus dias dividindo-os em horários e ações. Perdi-os e os embaralhei, para meu alívio. Talvez só agora entenda completamente a leveza cruel e prodigiosa que Calvino, em sua lição americana, atribui a Hamlet.
Não posso me sentir confinada quando o mundo até agora conhecido desmorona e se decompõe, se renova e assume novas perspectivas, outras formas de relação e de olhar. Um novo imaginário.
Porque todo o cenário ao redor mudou. E eu faço como John Berger, que dele fez um manifesto artístico: leio o mundo. Como o texto dos textos. Leio e admiro, sem o peso dos símbolos e do sentido, leio e basta, rendendo-me ao espanto.
Moro em Aci Castello, e para fazer compras costeio o mar. É suntuoso, mas no fundo tem o aspecto de sempre (talvez mais limpo, e com odor mais intenso). Mas pouco depois, na frente do supermercado, o mundo desliza e se deforma. Na fila, cautelosos e desconfiados, com aquela máscara e as luvas, perecemos aliens de passagem, vindos à terra para buscar provisões e ir embora. Medimos mudos, sem respirar, silabas e distâncias.
Na tv, vejo as ruas vazias do mundo, as praças atônitas, as lojas fechadas. O jornalista diz que são espectrais, exânimes, mas a topografia urbana, nas tomadas do alto, revela com graça cruel a perfeição de nossa arquitetura, essas maravilhosas praças italianas afundadas em uma soporífera inércia, em uma espera metafísica. Tristíssimas, dizem as pessoas. Mas eu, para dizer a verdade, nunca vi as praças italianas do centro histórico tão belas, nunca tão limpas, definidas, libertadas do peso de uma humanidade apressada, da massa ávida de turistas e consumidores nada comovidos ou desatentos pela beleza ao seu redor. Nunca me comovi tanto, com gratidão e espanto, diante da obra majestosa dos artesãos, artistas e operários, que construíram a Itália nos séculos.
Pode ser também por que amo Magritte e De Chirico, mas, para mim, esses cantos das cidades, atônitos e límpidos não parecem realmente “desertificados”, ao contrário, parecem mais sagrados. Porque a beleza é suspensão, cuidado, e não consumo predatório.
Espero que ao fim da quarentena, aprendida uma nova sobriedade e outra relação nos contatos, sejamos menos entusiastas de qualquer antropização. O deserto é um lugar maravilhoso, não o epigrama do fim. E talvez devamos deixar de considerar que um espaço tenha valor quando está cheio de gente, que um livro valha quando vende mais, e que um filme é bom porque enche salas.
O vazio, como o silêncio, é um valor em si, e o pensamento Zen diz isso há milênios. É o contrário da anestesia, como se crê no Ocidente. Se tanto, é um cheio diferente, feito de compaixão e detalhes.
Há outras coisas no meu dia que gostaria de contar – por exemplo os encontros coletivos on-line de storytelling –, mas depois de ter exaltado a sobriedade e o vazio me parece que devo me abster, e concluo.
Para transformar esse tempo em um salto espaço-temporal, o novo intercâmbio pela web tem um papel importante. Quando trabalhamos em grupo e vejo nas janelas alinhadas nossos rostos e vidas conectados, com os gatos e os avós que dão uma espiada, o bolo ou o café na mesa, vejo os inquilinos do edifício-romance de Perec, A vida, modo de usar. Falamos de histórias e literatura por duas horas, conectados, mas na verdade o que construímos on-line e socialmente, já é um romance coletivo, ou melhor, conectivo, como um tecido trabalhado junto, em meio a retalhos, remendos, cortes e bordados.
Não sei se terá sentido amanhã contar o Backdown em um romance, porque será um déjà vu. Penso que é o que deveria fazer toda escritora e todo o escritor. Deixar-se contagiar – sim, contagiar – por um novo sopro do tempo.
Aci Castello, abril de 2020

Tradução de Francisco Degani

Elvira Seminara é jornalista free lancer desde 1991, antes de se dedicar inteiramente à narrativa, foi redatora do jornal La Sicilia e colabora atualmente com L'Espresso. Seu romance de estreia, L’indecenza [A indecência] foi publicado pela Mondadori em 2008 e venceu o Prêmio Literário Nino Martoglio. Seguiram-se os romances I racconti del parrucchiere [Contos do cabeleireiro] (2009), Scusate la polvere [Desculpem o pó] (2011), La penultima fine del mondo [O penúltimo fim do mundo] (2013) e Atlante degli abiti smessi [Atlas das roupas aposentadas] (2015). 
O presente artigo foi publicado na revista eletrônica Lo specchio di carta. Osservatorio sul romanzo italiano contemporaneo









como citar: SEMINARA, Elvira. DEGANI, Francisco. A quarentena, um hipertexto que derruba as paredes de casa . In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.5, jun. 2020.Disponível em

https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209831