La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Nós, transformados de cidadãos a paciente, por Roberto Esposito


Nós, transformados de cidadãos a paciente
por Roberto Esposito*


Michael Sweerts. Plague in an Ancient City, 1650-1652. Óleo sobre tela. 118,75 x 170,8 cm.




           Entre política e medicina vai se apertando um nó que fica cada vez mais estreito. Trata-se de uma relação de um lado inevitável, de outro perigosa. Inevitável porque há muito tempo o corpo humano tornou-se o objetivo principal do governo dos homens. Perigosa porque este “contágio” entre duas linguagens distintas oferece o risco de desnaturalizar ambas. Ou pelo menos de expô-las a instrumentalizações recíprocas, que não fazem bem nem à política nem à medicina.
         Temos os exemplos sob nossos olhos. Desde que Trump apostou boa parte de sua campanha eleitoral no ataque ao Obama care**, a extensão ou a redução da cobertura assistencial tornou-se o epicentro do confronto social nos Estados Unidos. Mas, de formas diferentes, o curto-circuito entre política e medicina espalhou-se por toda parte. Difundiu-se também na Itália, onde a imposição de processos de profilaxia, destinados à proteção não só de cada criança em si, mas também aqueles com os quais elas entram em contato, desencadeou uma batalha institucional e ideológica entre diferentes competências. Essa imposição também foi imediatamente politicizada como conflito de valores entre a liberdade de decidir por si mesmo e a responsabilidade em relação aos outros. Depois, quando a questão médica entrou em curto-circuito com a questão da imigração – como aconteceu no caso da menina morta pela malária –, aquele nó entre política e medicina correu o risco de se apertar a ponto de tornar também aquele episódio trágico, de origem incerta, uma arma imprópria a ser brandida com fins eleitorais.
         Mas quando nasceu, e que efeitos gera, esse processo cruzado de politização da medicina e medicalização da política? Em sua origem está a imagem da população como um corpo social que necessita de cura. Naturalmente, a metáfora Estado-corpo tem raízes remotíssimas. Mas, somente em um determinado momento ela saiu do âmbito metafórico para assumir uma importância política assustadora. Desde aquele momento, situável no final do século XVIII, a gestão dos problemas sociais foi cada vez mais compreendida como uma espécie de terapia destinada a tratar disfunções, patologias, comportamentos desviantes. Dessa forma, o controle médico dos súditos se transformou em um potente instrumento de disciplinamento social. Construção de grandes hospitais e manicômios, implementação de normas higiênico-sanitárias, medidas de combate às epidemias, uso da ciência demográfica para fins terapêuticos, são todos efeitos dessa tradução do bem-estar físico da população em recurso fundamental do Estado. Desde então os problemas coletivos, antes considerados de outra natureza, vêm sendo pouco a pouco englobados no interior do âmbito médico. Enquanto isso, a medicina dos grandes números ganhou uma crescente relevância política. Somente uma ampla população em boa saúde consente que o Estado prospere internamente enquanto vence guerras externamente. O conceito de saúde pública, rapidamente estendido a todos os regimes, frequentemente combinado a preocupações de caráter étnico, constituiu o eixo dessa grande transformação.
         Conhecemos as perversões raciais que foram produzidas quando a pretensa saúde de um povo foi contraposta à doença congênita de outros. Porém, mesmo sem chegar a esses delírios paranóicos, a virada tocou a todos. A medicina social se tornou algo que vai muito além de um simples saber, alojando-se no centro da práxis política. Assim como o bem do paciente constitui o objetivo do médico, o bem do corpo social parece ser o objetivo do agir político.
         Não há dúvidas de que tudo isso tenha tido efeitos em geral positivos, medidos pela decrescente taxa de mortalidade e pelo progressivo desaparecimento das grandes epidemias em boa parte do mundo. Apesar disso aumentar o gap de um lado entre Países ricos e Países pobres e, de outro, entre aqueles que fazem do tratamento um dispendioso estilo de vida e os que são obrigados a renunciar à cura para dar lugar a outras exigências mais urgentes. Mas também para a camada privilegiada, incluída nos processos de medicalização, há um preço se pagar. Isto porque o ato de sujeitar a vida à tutela médica produz uma propagação incontrolada da esfera patológica.
         Como explicaram os sociólogos da saúde Pierre Aïach (L’ère de la médicalisation [A era da medicalização]) e Peter Conrad (The medicalization of society [A medicalização da sociedade]), fazer do tratamento médico uma das primeiras preocupações da política significa considerar o cidadão, antes de tudo, como um potencial doente. Disso decorre uma impressionante lista de obrigações e proibições. De um lado, proibições ou fortes persuasões para parar de beber, fumar e praticar atos sexuais definidos como irregulares. De outro, prescrições de dietas alimentares, atividade física, determinados modelos de vida. É evidente que tudo isso teve notáveis benefícios para cada indivíduo e para a sociedade como um todo, mas constitui também uma prisão da qual não é fácil escapar. Com a forte e justificada dúvida de que as maiores vantagens vão para as indústrias farmacêuticas e alimentares, às academias e centros fitness.


Roberto Esposito. Foto: Instituto Italiano de Ciências Humanas


         Não só isso. Mas, essa obrigação de sermos saudáveis – e de ficarmos em forma, não estar acima do peso e eternamente jovens – tem um custo ulterior, que é de transformar as opções subjetivas em necessidades objetivas. Se as escolhas políticas – relativas ao modelo de desenvolvimento, ao destino dos recursos, ou até mesmo às gestões dos fluxos migratórios – estão submetidas ao crivo da medicina, elas correm o risco de mudarem de aspecto. Passam, por assim dizer, de um horizonte histórico a um natural, no qual as soluções já estão prescritas. Aquilo que é possível, ou opinável, torna-se necessário, com base no princípio ineludível da saúde pública – obviamente, segundo a interpretação daqueles que a invocam. Para que isso se efetive, isto é, para que as prescrições e proibições sejam aceitas, não devem parecer impostas, precisam ser criadas pelos próprios sujeitos a quem são destinadas, os quais devem se sentir tratados pela política, ao invés de comandados, governados, administrados. Contudo, se os cidadãos têm sempre necessitade de tratamento por parte de políticos-médicos, significa que a instituição da doença precede a da saúde. Dessa forma, com o objetivo de fazer com que nos sintamos saudáveis, todos nós somos considerados potenciais doentes. Somente quem desconfia continuamente da própria saúde e se submete a uma rotina de controle médico (muitas vezes enchendo-se de medicamentos desnecessários) poderá se salvar. Antecipando, por meio da própria conduta, as terapias preventivas – propagandeadas incessantemente pelo mercado de saúde pública.
         Todos sabem que a indústria médica, como toda indústria, busca antes de tudo os lucros. Porém, poucos se permitem desobedecer as prescrições, mesmo quando elas assumem um caráter impositivo. Para nos entendermos: esta é uma opção inevitável. E, mesmo assim, melhor do que qualquer outra. Não se tratar, quando se possui os recursos, é impossível. Ser tratado por outros que não os médicos, é insensato. Quase todas as terapias alternativas nascidas fora dos protocolos da medicina oficial se revelaram bem cedo inúteis, quando não prejudiciais. O risco de não se vacinar é, para si e para os outros, infinitamente maior do que aquele, praticamente inexistente, de se vacinar.
         Ainda resta uma consideração de fundo que toca a concepção mesma de vida. Biológica e espiritual. A nossa condição de doentes – recordada continuamente ao nos infligirem infinitos tratamentos – é, em última análise, incurável. Não existe remédio para aquilo de que desde sempre somos doentes: a nossa mortalidade. Isso significa que a doença que nos constitui como seres humanos – a doença do corpo e da alma – pode ser amenizada, mas não erradicada. Ela, e até mesmo a morte, é parte integrante da vida. Também o doente vive, experimenta uma forma de vida que tem seus gestos e palavras, suas normas e exceções. A doença não é o oposto da saúde, mas um percurso interno a ela. Do mesmo modo, a saúde é interna à doença, em seu melhor estado. Nunca definitivo.

Tradução de Victor Gonçalves

Artigo publicado no dia 05 de dezembro de 2017, na revista L’Espresso.
** Lei de Proteção e Cuidado Acessível ao Paciente (PPACA, a sigla em inglês), ou Obamacare, como ficou conhecida, é uma lei sancionada em 2010 por Barack Obama para ampliar o acesso à cobertura de saúde dos cidadãos estadunidenses [N.T.]. 


como citar: ESPOSITO, Roberto. GONÇALVES, Victor. Nós, transformados de cidadãos a paciente, por Roberto Esposito. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.5, jun. 2020.Disponível em

https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209817