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Pensemos bem nas limitações das liberdades que estamos aceitando. Ou nos arrependeremos, por Massimo Cacciari
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Coronavirus
Massimo Cacciari
Pandemia
em
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Parece ser uma lei da natureza que nos momentos de guinada ou de crise, quando “cresce o perigo”, e deveríamos nos esforçar ao máximo para compreender suas causas e consequências, nossa atenção, nossa vontade de pensar, ao contrário, vão rapidamente esmorecendo. O cansaço do dia a dia, o duro ofício de dar um jeito de continuar, devoram o espaço que, em situações mais normais, destinamos, algumas vezes, também ao exercício da análise e da crítica. E somos, então, inclinados a confiar nos assim chamados “dados de fato”, às vezes comunicados por verdadeiros peritos, outras decretados como se fossem dogmas pelo Líder da vez e pelas suas task force.
Fonte: https://picchionews.it/attualita/massimo-cacciari-riempie-la-piazza-di-futura |
Não se pretende aqui, agora, voltar ao que já foi escrito e dito, inclusive por mim, nesses meses sobre a gestão da “emergência” coronavírus. Voltar ao fato (esse sim incontestável!) de que a “emergência” também depende dos contínuos cortes em pesquisa, infraestruturas, recursos humanos, sofridos pelo sistema de saúde ao longo das últimas décadas; de que a crise evidenciou mais uma vez a ausência de qualquer sistema de colaboração eficaz entre os poderes centrais, Estados e Autonomias locais; que nenhuma estratégia está sendo definida sobre o modo de “conviver” com a epidemia a médio-longo prazo, considerando que é verossimilmente impossível bloquear sine die a atividade de setores fundamentais e a circulação das pessoas. Acrescento, ainda, que não me interessa vasculhar nas recentes medidas, a não ser naqueles aspectos que se conectam a tendências culturais-antropológicas de fundo; as evidentes ilogicidades, contradições, improvisações que as caracterizam poderiam parecer, afinal, detalhes negligenciáveis, causa somente de muitos incômodos e desconfortos (e para alguns, infelizmente, de fracasso econômico). O que deveria ser pensado de verdade é a perspectiva histórica mais geral na qual essa crise se coloca e qual o papel que ela se destina a jogar dentro dessa perspectiva.
© Reuters
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Está circulando um documento-manifesto da Fundação Vargas Llosa, que teve grande repercussão na Espanha, França e do outro lado do Oceano, entre nós praticamente ignorado, que nos lembra de uma óbvia “regularidade” histórica: a situação de emergência (real ou vivenciada come se fosse tal) gera por sua natureza impulsos “autoritários”. Em alguns Países, eles podem ser assumidos dentro de conscientes estratégias políticas. O manifesto – que é assinado por muitos ex-chefes de Estados sul-americanos – refere-se, em particular, ao que acontece na Venezuela, em Cuba, na Nicarágua, no México. Em outros casos, de democracia mais “madura”, a tendência pode avançar despercebida, porque, no fundo, apresenta-se apenas como o natural aparecimento do que está em andamento já faz tempo. Exautorado o Congresso? Mas há quantos anos está de quarentena? Há quantos anos não desempenha substancialmente outra função a não ser sancionar decretos do executivo? Uma vez era chamado de antecâmara dos partidos, que, pelo menos, eram organismos políticos – mas, e agora? E quem não invocou uma task force, que nenhuma assembleia democrática nomeou, para resolver as emergências perenes? Não vejo nenhum sinal na gestão desta crise de uma possível troca de ponto de vista. Nenhum sinal de que se tenha a intenção de sair dela com reformas radicais do Congresso e da relação entre os diversos escalões do Estado. Ao contrário, é exatamente a crise a ser interpretada nos fatos como demonstração da necessidade de acelerar o processo de “liberação” dos executivos, dos governos e de seus chefes de qualquer empecilho “assemblear”. Se no mundo contemporâneo a emergência é endêmica, ao Soberano, quem quer que ele seja, e somente ao Soberano cabe decidir. Retornam as antigas metáforas do navio na tempestade e de seu timoneiro: é bom que apenas um comande.
Foto: Shutterstock |
Antes que seja tarde demais, antes de adotar aos poucos, mitridatizando-nos com juízo, modelos chineses ou putinianos, antes de nos tornarmos todos apoiadores convencidos de Trump e de seus netinho europeus, pensemos nisso. A crise gera pulsões que podem se tornar irresistíveis para soluções burocrático-centralizadoras. O apelo populista à falsa-soberania dos estadinhos apoia-se nessas pulsões objetivas. Ou insegurança e, quem sabe, morte, ou é preciso confiar na antiga Mãe-pátria; ela vos ama, seus políticos vos adoram. Fora dos muros, reina o anônimo inimigo sem vulto dos Poderes Fortes. Esses muros não existem mais, mas a tendência para novas formas de estatismo, contrabandeadas, de repente, como estado de necessidade, podem se espalhar. Pensemos nisso, agora, não depois. Pensemos no como já são interpretadas certas transformações dos nossos comportamentos nesse período em que limitações razoáveis dos nossos direitos são obviamente compreensíveis. Até mesmo essas limitações parecem ser consideradas por alguns um preâmbulo para uma espécie de obrigação jurídica da saúde, para introduzir normas pelas quais seja lícito ser seguidos, “rastreados” e interrogados sobre suas condições físicas. Depois vem a descoberta da beleza do trabalho à distância. O quanto seria econômico sempre “ficar em casa”: um professor poderia, quiçá, servir mil turmas, nada de trânsito, nada de tempos e espaços desperdiçados. Congressos, palestras, escritórios, que organização arcaica do trabalho! Qual a necessidade do contato pessoal? Do contato ao contágio o passo é curto; essa experiência ensina, não é verdade? Aprendamos com ela e prossigamos no seu caminho. A informação é tudo, a comunicação (que se dá somente através da relação direta, do olho no olho) um luxo. Todos de meio busto para cima como na tela da TV. O “ficar em casa”, o locomover-se só pela web, não é para ser vivido como uma triste necessidade imposta pelo vírus, imaginemos isso como nosso radioso futuro. Prevenção formidável para qualquer pandemia. Pensemos nisso – porque essas pulsões correm por todos os lados, se exprimem sempre mais marcadamente, e se exprimem nos fatos. Pensemos também nas grandes potências que as sustentam, que compartilham com elas a implícita visão de mundo. Cada dia de crise para Amazon, Google e companhia são bilhões de lucro. O sistema colossal dos big data irá coletar bilhões de informações adicionais, “irá conhecer” cada um de nós, irá desmantelar toda privacy residual. E irá continuar a não pagar impostos, pela impotência dos Estados pequenos ou pela simbiose com os grandes sistemas políticos. A liberdade do “ficar em casa” terá esse preço inevitável. Existe no homem uma “servidão natural”, diziam os sábios, e pode ser, portanto, que se pretenda pagar esse preço. Pensemos nisso.
(Jornal L’Espresso,12/05/2020)
Tradução: Andrea Santurbano
como citar: CACCIARI, Massimo. Pensemos bem nas limitações das liberdades que estamos aceitando. Ou nos arrependeremos. Trad. Andrea Santurbano. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.5, jun. 2020. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209816
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