La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

“Tudo é agora um grito só”: Franco Fortini em Watoriki, por Tatiara Pinto



Franco Fortini
Fonte: https://www.poeticous.com/franco-fortini



    Talvez o nome de Franco Fortini diga pouco entre os estudiosos mais jovens da literatura italiana, no entanto o mestre da nova esquerda foi um importante intelectual da segunda metade do século XX. Do seu trabalho como poeta, tradutor e professor sobressai o rigor político da crítica literária que praticava. Valendo-se da primeira dissertação sobre o autor produzida no Brasil, “O sono e o sonho na poética de Franco Fortini, esse texto quer destacar o traço cristão, trágico-heroico da poesia fortiniana para pensar, ainda que brevemente, como sua poesia, a potencialidade onírica ameríndia e a perda da presença diante de catástrofes apocalípticas podem se relacionar.                                                         
    Há um poema do terceiro livro Una volta per sempre (1963) no qual o onírico se integra ao mundo mítico. O título é “A Cesano Maderno”, remetendo a uma localidade entre Milão e Como (cidade conhecida pelo famoso romance de Alessandro Manzoni). Lê-se os dois últimos quartetos:
[...]

la ciotola di legno e comprano al negozio
del padrone, nell'alto Perù o nell'interno
dell' India? Lungo le grandi autostrade fra i traini
militari la sera si torna.

Cene di pane ancora senza lievito. Non è
perduto il mondo eterno, è ancora nel sonno
dove non passano più
i muli dove sola la vipera vive.

Em tradução livre:

a tigela de madeira e compram na tenda
do patrão no alto Peru ou no interno
da Índia? Na grande rodovia entre os reboques
militares a noite volta.

Cenas de pão ainda sem fermento. Não é
perdido o mundo eterno, está ainda no sono
onde não passa mais
as mulas onde só a víbora vive.*

(FORTINI, 2014, p. 276, tradução e grifo nosso).


    Dividido em dez quartetos o poema nasce contemporaneamente ao experimentalismo linguístico do Grupo 63. Um dispositivo estético presente nele é o enjambement que Giorgio Agamben em O fim do poema chamou de “oposição entre um limite métrico e um limite sintático” – quando o verso rompe sintaticamente, como se pode notar no primeiro verso da segunda estrofe transcrita acima. Ainda neste período Fortini mediava e traduzia Bertolt Brecht na Itália e assimilava algumas das suas operações como o emolduramento do gesto, presente no poema “Traducendo Brecht”, neste mesmo livro Una volta per sempre. Isso para destacar que a busca linguística pela suspensão do tempo e da ordem tem o objetivo de fazer o espectador ou o leitor refletir sobre sua própria condição, o que diz muito sobre Fortini e sua crença no papel revolucionário da poesia.

    Nas primeiras sete estrofes de “A Cesano Maderno” o ritmo segue a cadência descritiva, nomeia as pessoas de seu tempo: Carlo; Michele; Noventa; Salvini e a paisagem da cidade de Cesano Maderno, localizada na região da Lombardia. Já na metade da sétima estrofe surgem dois versos, dois questionamentos: “Porque falas deles? Te sentes judeu,/ tu que nunca o quis ser?” Com isso, a descrição que vinha sendo feita é interrompida pela questão existencial, o tempo verbal passa a ser outro e o ritmo tranquilo, do qual gozava o poema até então, é abandonado.

    Ainda sobre esse tipo de verso intervenção, “Por que falas deles?”, Francesco Diaco em Dialletica e speranzza. Sulla poesia di Franco Fortini (2017) chama de deslocamento entre o horizonte do “eu” poético com o autor, quando surgem nos versos perguntas diretas (tu), que parecem vir de uma outra voz, uma espécie de alter ego no poema. Pois, ao descrever a vida dos outros, nos versos, parece haver um espelhamento, seguido de violenta indignação sobre a própria condição e esta constatação toma a fruição do poema, modificando sua estrutura até então prosaica.

    Após essa ruptura rítimica no poema, o sujeito poético adota um tom consolatório ao enfatizar a semelhança entre os sem pátria: “Não sabes que és igual aos infinitos/ na pátria sem pátria, que despedaçaram”. Na sequência, entre os dois últimos quartetos do poema, transcritos acima, estão os versos centrais para a leitura a ser feita: “Não é/ perdido o mundo eterno, está ainda no sono/ onde não passam mais/ as mulas onde só a víbora vive.” Tais versos apontam para um espaço outro, um mundo eterno, que não foi perdido, passível de acesso através do plano onírico. O advérbio de tempo “ainda” deixa uma sensação de que há a possibilidade de se perder esse mundo eterno, que equivaleria a não sobreviver ao apocalipse difundido pelo cristianismo.  

   Para tal reflexão, assim como na referida dissertação, a leitura se aproxima do pensamento ameríndio com a intenção de “perspectivar contrastes”, de investigar se haveria nessas culturas uma política do sonho. Em última instância, uma tentativa de descolonizar epistemologias canônicas, valendo-se da cosmovisão Yanomami, transcrita por Davi Kopenawa e Bruce Albert na obra A queda do céu (2015). Originalmente a obra foi publicada em francês pelo programa Carlos Drummond de Andrade da Mediateca da “Maison de France”, com o apoio da Embaixada da França no Brasil, do Instituto Socioambiental, do Instituto Arapyuá e foi traduzida por Beatriz Perrone-Moisés.

    Na abertura de A queda do céu, antes mesmo do sumário, há uma citação do antropólogo Claude Lévi-Strauss, um pioneiro em legitimar as vozes da floresta. Ele constata o “quão emblemático é poder ouvir sobre esse sistema de conhecimento que tanto diz sobre nossa existência”, e que ainda temos dificuldades para compreender que “não são apenas os índios, mas também os brancos, que estão ameaçados pela cobiça de ouro e pelas epidemias introduzidas por estes últimos. Todos serão arrastados pela mesma catástrofe, a não ser que se compreenda que o respeito pelo outro é a condição de sobrevivência de cada um.” (KOPENAWA, ALBERT, 2017, p. 5).

Yanomamis em Watoriki, 11º encontro promovido pelo CIMI (Conselho Indigenista Missionário) um organismo vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) foto de Adriana Huber Azevedo/CIMI Norte 1. 
Fonte:    https://cimi.org.br/



Para poder compreender essa metafísica diferente da hegemônica ocidental que estamos acostumados seria interessante, para não dizer necessário, trilhar o conceito complexo de perspectivismo ou ‘maneirismo corporal,’ desenvolvido pelo etnólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro no livro A inconstância da alma selvagem (2002). Pois não se exagera ao dizer que o pensamento ameríndio traz consigo outra maneira muito mais elástica no que diz respeito à compreensão do mundo e, por sua vez, do sonho. No entanto, isso só é possível graças a um sistema de conhecimento diversificado, um outro olhar para compreender, por exemplo, o que é humano. De antemão adverte-se que isso seria de fato possível através de outras lentes, outras categorias, mas ainda não as temos, o que explicaria a necessidade de uma “projeção cosmopolítica deformante da nossa tradição”, conforme Castro. Além do que, seria irresponsável trazer a visão Yanonami do sonho sem ao menos tentar enumerar de forma simplificada algumas bases de seu pensamento.

Na tradição milenar de Davi Kopenawa, líder do povo Yanomani, o sonho é parte fundamental do sistema de conhecimentos. Para muitas culturas ameríndias o espaço do sonho contém os espíritos do passado e seus ensinamentos, o acesso a eles é de suma importância para a continuidade de sua Verdade. Outra forma de acesso ocorre ao soprarem o pó yãkoana em suas narinas, os xamãs dormem em estado de fantasma, entrando em contato com os xapiri, ou espíritos ancestrais. São os xamãs que possuem dentro de si o valor de sonho dos espíritos, são os xapiri que os conduzem para sonhar/ver tão longe. Assim o xamã é o responsável por transmitir os conhecimentos ancestrais ao seu povo, ele tem permissão inclusive para transitar entre o mundo dos vivos e dos mortos, quem compreende e atua em ambas dimensões, um mediador do mundo eterno “onde não passam mais/ as mulas onde só a víbora vive”, como descrito no poema de Fortini.

         Dito isso, é possível notar que os versos de “A Cesano Maderno” ecoam uma noção mais ampla sobre a realidade onírica, na qual, um mundo eterno e comum poderia ser acessado em estados profundos do inconsciente, via sonho. Tal noção parece encontrar mais semelhanças no conceito de “inconsciente coletivo” de Jung do que na definição freudiana do inconsciente. Ainda que Freud tenha reconhecido que o sonho é a via régia do inconsciente, esse seria sempre de natureza pessoal, repleto de elementos nunca conscientes que foram esquecidos e/ou reprimidos. Fortini teve contato com os estudos de Jung, pois cita-o no texto Introduzione a Mario Luzi, “Discorso naturale”, e em O movimento surrealista (1965), a única obra do poeta traduzida em português pela editora Presença de Lisboa, deste último destaca-se:

A obra do psicanalista Jung traçara toda a rede das relações que liga as imaginações mórbidas dos doentes mentais às figurações da alquimia e da magia, aos seus símbolos e os mitos do “inconsciente coletivo”; e, a propósito disso, falava ele de “arquétipos” profundos do sentimento religioso. Não é, pois, de estranhar que por este caminho, apesar das resistências, das precisões (e quando necessário, das excomunhões) de um Breton, toda uma hoste do surrealismo começasse ou voltasse a cortejar o sentimento religioso e, frequentemente, adotasse um impreciso anarquismo, quando não a aberta reação política. (FORTINI, 1965, p. 44).

Ao identificar os “arquétipos” profundos de cunho religioso Fortini traz a relação pela qual André Breton e outros surrealistas tendiam, de certa maneira, ao símbolo e à ritualística. O mito como uma matéria latente do surrealismo e o surrealismo como política do devir, uma espécie de carapaça que protegia as potências do ser de toda a hegemonia operante no pós-guerra. Tais incursões políticas e culturais são como uma porta para a poesia fortiniana poder desfrutar de qualquer compensação simbólica que ela venha a ter, mesmo enquanto subordinada à contingência revolucionária.

          Assim como no surrealismo se preservava a própria e mágica subjetividade, a  mítica central de A queda do céu gira em torno de visões sobre a barriga do céu cair, da perda do mundo eterno. O que dialoga com o antropólogo italiano Ernesto De Martino, quando afirma em, La fine del  mondo (1977), que “quando a rigorosa repetição da ordem fundada nas origens míticas é abalada” como, por exemplo, a colonização escravagista na América, diz ele, ocorre a experiência ou profecia de uma eminente catástrofe do fim do mundo, como punição. O que seria uma forma de autopreservação do lugar “onde a consciência cultural se orienta” no sentido de proteger o futuro e assim, “o mundo primitivo se mantém, é operável, enquanto é visto pela consciência cultural como um mundo das origens que se repetem cerimonialmente” (DE MARTINO, 1977, p. 361). O grito ameríndio sufocado há 500 anos aparece ainda na recente obra Ideias para adiar o fim do mundo (2019), de outro líder indígena, Ailton Krenak.

          E de fato o livro de Kopenawa trata de verdades em que “todos seremos arrastados pela mesma catástrofe” o que faz lembrar a descrição bejaminiana da obra Angelus Novus pois para além de registro dos conhecimentos de um povo, A queda do céu é, antes de tudo, um apelo contra formas destrutivas de exploração da terra, um chamado para proteger um modo de estar na terra, enquanto “não é/ perdido o mundo eterno, está ainda no sono”. Uma vez que, o corpo ameríndio figura um contra-corpo do capitalismo. Eles seguem “lutando desesperadamente para preservar suas crenças e ritos, o xamã yanomami pensa trabalhar para o bem de todos, inclusive seus mais cruéis inimigos. Formulada nos termos de uma metafísica que não é nossa, essa concepção da solidariedade e da diversidade humanas, e de uma implicação mútua, impressiona pela grandeza.” (KOPENAWA, ALBERT, 2017, p. 5).

         Com isso, a noção de “perda da presença”, é central para pensar o “mito” da catástrofe do fim do mundo, nas obras trazidas para essa leitura. Curiosamente na última obra poética de Fortini publicada em vida Composita Solvantur (1994), o título latino quer dizer ‘dissolva-se tudo o que é composto’, o último poema, sem título, inicia retomando o primeiro verso “E este é o sono”, do primeiro livro Foglio di via (1946), um poema também sem título. Este último poema parece advertir enfaticamente (por conta do imperativo) contra um estado de morte, nos versos: “não pela honra dos antigos deuses/ nem pelo nosso mas defendei nos. Tudo é agora um grito só./ Como este silêncio e o sono próximo” (FORTINI, 2014, p. 561-562).

        Em Ultime Volontà (1989) Fortini diz que ainda é válida a verdade hegeliana que De Martino relembra em seu livro póstumo La Fine del mondo que “a morte precisa estar ao nosso lado todo dia se se quer sair da condição de servo que a afugenta e se consola com mitos de catástrofes que derrubaríamos juntos a ele aos seus senhores.” (FORTINI, 2003, p. 1661-1662). Ou seja, a ameaça de morte como alavanca para modificar estruturas de opressões consolidadas. Não obstante, em Gli ultimi tempi (Note al dialogo di De Martino e Cases) publicado inicialmente na revista “Quaderni piacentini” em 1965 e depois organizado em livro como Due interlocutori, ao se deter sobre a “precariedade humana no mundo” Fortini diz que a vida é precária enquanto naturalidade e enquanto historicidade, e estes dois componentes são distinguíveis até a sua união que é a “reconciliação”, da qual falava Marx. Fortini cita De Martino:         

Esta precariedade é simplesmente a rudimentalidade dos meios técnicos de domínio da natureza (como é no caso das sociedades primitivas) ou ao emprego deles à fins destrutíveis (como acontece nas guerras modernas); ou seja é uma relação em vários níveis desumana entre homem e homem, uma contradição interna à sociedade humana, um limite de humanismo, onde determinados grupos humanos estão em respeito a outros em uma condição instrumental, como “natureza” e como “almas mortas” [...] a precariedade existencial [...] é contexto de situação que o homem gerou e que o homem pode reunir e modificar até a fundação de uma ordem humana na qual o homem seja realmente integrado na história, e se coloque como cidadão de direito e de fato possa por isso aceitá-la, sem angústia. (FORTINI, 2003, pp. 1391-1392, grifo nosso).


*Revisão da tradução: Vincenzina Ciavarella.

Referências:

DE MARTINO, Ernesto. La fine del mondo. Contributo all´analisi delle apocalissi culturali. Torino, Einaudi, 1977.

FORTINI, Franco. O movimento surrealista. Tradução de Antônio Ramos Rosa. Lisboa: Presença, 1965.

_________. Saggi ed epigrammi. Milano: Mondadori, 2003.

_________. Tutte le poesie. Milano: Mondadori, 2014.

KOPENAWA, Davi. ALBERT, Bruce A queda do céu. Palavras de uma xamã Yanomami. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.  





como citar: PINTO, Tatiara. “Tudo é agora um grito só”_ Franco Fortini em Watoriki . In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.5, jun. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209830