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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Covid-19
isolamento
mundo contemporâneo
em
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Claudio Parmiggiani,
Entre os efeitos da pandemia de
Covid-19, além dos coros infernais de vozes disfóricas e de coros angelicais de
quem destrói o medo com solvente de fáceis pensamentos reconfortantes, houve
uma nova onda de vitrinização do mundo. Explico melhor. Nos últimos duzentos
anos se assistiu à realização – ou somente à concepção, à criação fantástica –
de miríades de superfícies, esquemas, paredes, estruturas e divisórias translúcidas.
Das vitrines comerciais às casas de vidro, dos shoppings centers aos biodômes e
às biosferas, a transparência foi um elemento chave do modelo de
desenvolvimento do mundo contemporâneo; e o foi tanto no plano da prática
concreta de instalação de espaços e criação de objetos (o que chamaremos função) quanto no plano imaginário
compartilhado, subjacente àquelas formas concretas e por aquelas formas
alimentado (aqui nomeado ficção). Tudo
o que é sólido desmancha no ar, escreveu Marshall Berman em seu ensaio
capital sobre a modernidade: entre outras coisas, a primeira onda de
vitrinização do mundo significou uma progressiva decomposição das paredes como barreiras
visuais, ainda que elas tenham mantido inalterado o seu papel de distanciar,
silenciar, isolar os outros sentidos (para quem quiser se aprofundar, indico o
meu ensaio Critica della trasparenza.
Letteratura e mito architettonico).
São todas mensagens escritas
sobre o vidro, que dizem: encontremos o modo de combinar direito à saúde e aos prazeres
sociais com segurança do indivíduo, a necessidade de relação com a necessidade de
uma reclusão protetora. Façamos uma tentativa coletiva racional de viver vidas
privadas. Vistos a partir dessa ótica, os cenários escatológicos, de apocalipse
ou revolução, que filósofos e intelectuais previram nessas semanas poderiam parecer
decididamente exagerados. E talvez o sejam. Mas isso não nos exime do dever de
refletir sobre essas “tentativas racionais” de gestão da coisa pública que
passam por progressivas, massivas injeções de racionalíssima transparência. No
entanto, por que deveríamos nos recordar de que a função (as práticas concretas) não é tudo? Somente na combinação
com a ficção (o imaginário
subjacente) ela adquire sentido ou modifica o sentido que tem, em direções
frequentemente imprevisíveis. Por aquilo que nos é permitido ver, e prever, do
restrito observatório da Europa do início de junho de 2020, o que temos de
esperar é uma maciça vitrinização das arquiteturas, do design dos espaços, talvez até mesmo das paisagens externas, além
dos próprios corpos. A função de tais obstáculos, de tais inibidores do contato
físico (mas não ótico, vale a pena repeti-lo: a pura visibilidade, entre
as características precípuas da civilização da transparência, está
absolutamente garantida, aliás exaltada pela relativa privação de outros
sentidos) é evidente e, repito, “racional” proteger do contágio, reduzir os
riscos de que a pandemia se espalhe. A ficção que se lê nela, sem dificuldade,
em filigrana, põe-se em continuidade com longos anos de imaginário distópico
(aquele do pós 11 de setembro, em especial, mas também a forma de alguns
objetos, penso nas viseiras, de aspecto curiosamente retrô, que recorda a
ficção científica dos anos 1960-1970), os quais tornaram familiar, e, em última
instância, aceitável, além de uma sigla sci-fi como Covid-19, a hipótese
de uma limitação da nossa própria fisicidade (possibilidade de deslocamento, de
relação, etc.) e de uma reconfiguração da paisagem sensorial na qual estamos
imersos. De resto, no século XIX, o surgimento da arquitetura transparente, e
penso em particular no Crystal Palace de
Londres e nas primeiras lojas de departamento, foi acompanhado e apoiado por massivas
doses de imaginário fantástico pregresso, neste caso, principalmente
euforizantes: os contos de fada, os mitos, as epopeias de cavalaria. Em
síntese: ontem, assim como hoje, a vitrinização do mundo é acompanhada por uma
promessa de normalidade junto com uma promessa de excepcionalidade, ambas racionalíssimas
e ao nosso alcance, ambas lunares e fantasmagóricas.
É difícil pensar que um projeto
macroimunológico dessa magnitude, capaz de desencadear o primeiro grande
fenômeno de stand-by socioeconômico em
escala global desde o final da Segunda Guerra Mundial, não implique
transformações ou pelo menos mudanças de ritmo no plano da redefinição dos
ambientes vitais, além daquelas esperadas no campo das orientações
psicopolíticas. Sim, mas até que ponto e em que direção? Até o momento, não se
veem tentativas para sair da rota já traçada, para abandonar o caminho que a modernidade,
que sobreviveu, sem se descompor, aos totalitarismos, a duas guerras mundiais e
a várias crises econômicas, percorreu até aqui. A transparência é ainda e cada
vez mais o cavalo no qual nossa civilização – que insistimos em identificar com
a civilização, vendo em seu possível
fim também o fim de toda a
civilização – pretende apostar para se perpetuar. É isso que fazem todas as
sociedades desde sempre: elas aspiram a manter seu equilíbrio interno, por mais
questionável e precário que ele seja.
Pode ser, porém, que a atual
combinação de imaginário e administração biopolítica, na sua imprevisível
mistura, torne a transparência cada vez menos útil para responder de forma transparente
às tarefas que lhe são atribuídas. Na tela barata da viseira sanitária que
protege o rosto dos que estão à nossa frente, certamente podemos ver o reflexo,
por transparências multiplicadas, do rosto único de uma época, mas talvez no
fundo também a sombra enigmática do que virá.
Claudio Parmiggiani, |
A permeabilidade, a continuidade linear, a troca e o
trânsito descontrolados de ar e de corpos são hoje como nunca antes
dificultados e impedidos: não é apenas uma questão técnica ou médica, mas uma
postura mental. A hipótese de engaiolar as praias dentro de paredes de
acrílico, criando grotescas arcádias típicas de farsas concentracionistas, é
uma demonstração plástica – no duplo sentido da palavra – de tal
orientação. E o que dizer da perspectiva de classes compartimentadas? A tendência
à fragmentação do ambiente em espaços racionais finitos é uma coação da qual,
aparentemente, não sabemos fugir, uma tendência que a prática da transparência
incentiva e multiplica. Apóiam-na massivas doses de imaginário isolacionista
aterrorizado, oportunamente contrabalanceadas por impulso igual e contrário a
sonhar evasões e fugas em espaços ininterruptos e sem limites: exemplos nessa
direção são os comerciais de carros, caixas de vidro lançadas em corridas à
disparada em paisagens infinitas;
Vêm à memória os habitantes do planeta Solaria, imaginado
por Isaac Asimov: totalmente dependentes da tecnologia, eles evitam se ver (seeing), preferindo visualizar-se (viewing) a distância, uma vez que
consideram repugnante a ideia de compartilhar o mesmo ambiente e, portanto, a
respiração, com outro organismo vivo. The
human touch is gone, “o toque humano se foi”, lê-se em O sol desvelado (1957).Talvez para nós, habitantes do século XXI, assim
como para os solarianos de Asimov, a perspectiva de renunciar ao outro não contraste, aliás, pode muito bem se
conciliar com o imperativo irrenunciável de esparramar ainda mais os mecanismos
de circulação do desejo de consumo de bens e serviços no interior de espaços
onde somente a luz, talvez, artificial, mórbida e controlada, e não o indisciplinado sopro de ar, possa
fluir sem obstáculos. Logo: a vida biológica com a rua bloqueada; as
mercadorias em trânsito constante e ilimitado ao longo de estradas do mundo
todo, sejam elas pavimentadas de asfalto ou de pixel (o segredo obsceno da vida
desinfectada é o trânsito de corpos que a torna possível: motoristas de
transportadoras, entregadores, motoboys etc. Para não falar naturalmente do
trabalho de bastidor dos profissionais médico-sanitaristas, cuidadores,
empregadas domésticas, garis e coletores de lixo). Nada mais provável que o mundo
vitrinizado acelerar os processos de divisão social já em andamento há tanto
tempo, ampliando os limiares que articulam e separam aquilo que está dentro
daquilo que está fora, distinguindo de uma vez por todas quem tem (direito à
vida, que hoje significa sobretudo direito à produção e ao consumo, pelo menos,
a julgar por algumas das decisões tomadas nesses meses pelos governos
ocidentais) de quem não tem (esse direito). O projeto no coração do moderno,
somente ocasionalmente e localmente freado por mecanismos inibidores, parece
hoje poder se realizar com uma amplitude e uma facilidade até há pouco tempo impensáveis:
e o seu correlato fantasma ficcional é o que mais uma vez dá suporte à sua
funcionalidade. A fabulação otimista-consoladora dessas semanas de pandemia (da
qual se encarregaram, não casualmente, muitas marcas comerciais), com rios de
slogans, vídeos, músicas e narrações entre o conto de fadas e a alucinação, com
efusões de pathos ou alegria filtradas
através do vidro colorido da imprensa, vai exatamente nessa direção. Há pixels
no lugar de tinta, mas estamos ainda na boa, velha e amada idealização do
capitalista (rebatizado homem de negócios, manager, CEO) como redentor da
humanidade...;
Não penso, para ser claro, no risco de um retorno ao
totalitarismo do século XX, mas na perspectiva de um estado de exceção
biopolítica permanente, governado por uma ratio gerencial-tecnocrata,
policêntrica e indefinível, um processo que bem antes de Foucault e dos seus
continuadores havia sido antevisto pelo “homem-rato” de Dostoiévski. Um
resultado que já se escondia embaixo das cinzas das democracias liberais-sociais,
mas que a nova onda de vitrinização do mundo poderia explodir. Seria esse o
Éden: uma sociedade que aspira a ser autorregulada, automoralizada, expurgada
de qualquer escória, falta, desvio da norma; uma coletividade pelo menos na
aparência (na superfície: aquilo que permanece submerso, fora de cena é outra história...)
lúcida, lisa e luminosa (mas também gélida, repelente e, ainda, afiada quando o
vidro se estilhaça...) como o vidro. O estado de exceção dessas semanas de
pandemia convenceu muitos, como nunca antes havia acontecido, de que é
desejável e vantajoso viver em um regime de vigilância panóptica – por meio de
janelas, telas de drones ou viseiras tecnologicamente implementadas. A vida de
colmeia dessa primavera de 2020 já induziu muitos a abraçar espontaneamente um
regime de controle recíproco: destapando com olhos gananciosos as intimidades das
casas alheias para desabafar as frustrações cotidianas, aprovando
incondicionalmente o desenvolvimento de dispositivos tecnológicos capazes de
traçar os deslocamentos dos cidadãos e, mais em geral, exaltando a
transparência como o melhor e, talvez, o único critério de gestão da
convivência civil. Talvez por isso se tenda a emoldurar o mundo através da
função/ficção purovisibilista: para se dar a ilusão do controle e, com tal
ilusão, acalmar-se e, acalmando-se, fazer de conta que se está mudando tudo
para não mudar nada.
4. No plano do sentimento coletivo
e da linguagem que o veicula, a perspectiva de uma difusão da vitrinização da
vida não induz, talvez, a reviver aquela atemporal nostalgia pela restauração
de um equilíbrio espectral (uma vez que a nossa sociedade é, ainda assim, romântico-idealista
nas suas linhas gerais), que constitui o maior freio para qualquer hipótese de
transformação no sentido igualitário e libertário-não-liberal das nossas
sociedades?
Atrás da compacta e inviolável chapa da vida na vitrine, o
enxame biológico para, mas o mesmo não ocorre com o vírus da linguagem, que se transforma
ora em retórica patriótica-tardia (a defesa do “lar”, feroz e interesseira),
ora em melaço de doces pensamentos irenistas, ora em um niilismo maximalista
vazio. Prospera, de qualquer modo, nas mensagens escritas sobre o vidro da
última tecnologia na moda, aquele entrecruzamento de emoções variadas, mas de
todo modo enquadradas no interior de formas convencionais, que impede novas
formas de coagulação comunitária e sufoca qualquer tentativa de refundar, sobre
bases menos limitadas e obtusas, a esfera do imaginário. Difícil nesse contexto
prospectar uma diminuição da transparência que escancare aqueles novos
horizontes econômico-político-criativos, da qual teria desesperadamente
necessidade mesmo uma sociedade fortemente conturbada como a nossa (isto é, em
um estado de sofrimento material e emotivo, compreensivelmente assustada por
cenários de privação inimagináveis em toda a segunda metade do século XX).
Penso em Claudio Parmiggiani de Labirinto di vetri rotti [Labirinto de vidros quebrados] (uma performance de 1970 repetida,
posteriormente, até os anos 2000), na pesada marreta que adentra o dédalo só
para depois despencar nas cristalinas paredes daquela gaiola diáfana, luminosa,
mas inabitável, até fazer delas um amontoado de ruínas transparentes. Quem
trabalha para refundar as linguagens e o imaginário talvez sonhe, mas não há
outro modo para preparar o mundo que virá.
Tradução Graziele Frangiotti
Agradecemos
a autorização para a tradução ao autor e Le
parole e le cose
como citar:
DONATI, Riccardo. “Mensagens escritas sobre o vidro: a transparência em
tempos de Covid-19”. Trad. Graziele Frangiotti. In Literatura Italiana
Traduzida, v.1., n.7, jul. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209868
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