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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Amelia Rosselli
Lucia Wataghin
Millenium Poetry
em
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“Pelo miolo do teu crânio que exerce paixões /
sem salvaguardá-las eu falo”[1]
“Mas escrevendo à máquina posso por um pouco acompanhar um pensamento talvez mais rápido do que a luz”[2]
“Não sei qual novo rigor me levou a vocês, casas do terreno negro”[3]
“e é vossa a vida que perdi”[4]
Tutto il mondo è vedovo se è vero che tu cammini ancora é a última das Variazioni belliche (1964), o primeiro livro publicado por Amelia Rosselli (1930-1996), com o apoio de Pasolini, que também lhe pediu o ensaio que acompanha o livro, Spazi metrici [Espaços métricos], em que a autora tentou expor as razões da forma de sua poesia, absolutamente singular, mesmo no ambiente da poesia experimental das vanguardas com a qual mantém vivos contatos nos anos sessenta. O ensaio, breve, obscuro, muito complexo, coloca as Variações Bélicas no âmbito da linguagem da música contemporânea: o procedimento das variações, muito usado já por Bach e Beethoven, é base da música dodecafônica de Schönberg e Webern, e em seguida da música serial e pós-weberniana, terreno de Amelia Rosselli compositora, teórica e performer de música contemporânea, com importantes colaborações com artistas como Bruno Maderna, John Cage, Carmelo Bene (para esse último, Amelia compõe, improvisando, e toca a música dos espetáculos Pinocchio e Majakovskij, em 1962).[5] Necessária premissa é a associação da forma poética com a forma musical; as variações, antes de serem bélicas, são musicais: numa definição musical, variações são modificações de um tema com intervenções sobre a melodia, a harmonia, a instrumentação, de maneira que permaneça reconhecível o tema inicial. O segundo termo que compõe o título, belliche, também nos traz informações vitais para a natureza do livro: bélicas porque o tema do livro é a guerra, o conflito (interno), e porque belicosas, dispostas à luta, mas bélicas também com referência ao termo inglês belly, que indica barriga, ventre, abdome, aludindo ao desejo de maternidade e à visceralidade, à profundidade, à intensidade de sua natureza.
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Piero Dorazio, "A peaceful solution" (1976-77), óleo sobre tela, Albright-Knox Art Gallery, Buffalo, New York |
Musicalidade e tensão – e sua força impressionante – são imediatamente percebíveis, mas a poesia de Amelia Rosselli é também difícil e obscura: os pequenos glossários que Amelia elaborou para as Variações, ainda por recomendação de Pasolini e Vittorini, dão uma ideia do que ela mesma considerou necessário (ainda que condicionada às exigências de Vittorini, que pedira “correções” para publicar o livro)[6] explicar, ou melhor, defender, de sua linguagem: neologismos, solecismos, infrações gritantes de normas e convenções de todo tipo, gramatical, sintático, semântico. Para a Libelula, – a fama de Amelia já está consolidada, como de uma das grandes vozes da poesia italiana – as notas da autora dirão respeito apenas à densa intertextualidade de seus textos, com Montale, Rimbaud, Scipione, sobretudo com Campana, poeta muito amado, o mais próximo da poesia de Amelia, com suas trangressões da língua e da coerência sintática, também com seus solecismos, e também com sua experiência humana, marcada, como a rosselliana, por doenças, internações em hospitais psiquiátricos, grave mal estar psíquico.
Nascida em Paris, já em exílio, de mãe inglesa, Marion Cave, e pai italiano, Carlo Rosselli, ambos militantes antifascistas, Amelia é marcada, aos 7 anos de idade, pelo trauma irreparável, pessoal e histórico, do assassinato do pai e do tio, em 1937 – um delito político, nunca completamente esclarecido, mas de responsabilidade do regime fascista. Seguem anos de peregrinação – exílio – com a mãe e os irmãos, na Inglaterra e depois nos Estados Unidos, onde a família se refugia, em 1940, fugindo dos bombardeamentos de Londres. Depois da guerra, de novo Londres e finalmente, a partir de 1948, Florença e depois Roma, onde se estabelece até 1996, quando morre, suicida. Sua primeira poesia em língua italiana, um canto fúnebre para o amigo Rocco Scotellaro, é de 1953, mas ainda escreve poesia e prosa em francês e em inglês; seu Diário em três línguas é dos anos 1955-1956. Trilinguismo e exílio, traumas, peregrinações e escrita estão indissoluvelmente interconexos; não será sem efeito, em sua poesia, especialmente o primeiro trauma, que deu origem a todos os outros; leitoras atentas apontam para a insistência, em sua obra, em figuras femininas (Antígona, Ifigênia, Cassandra, Electra) que encarnam filhas imoladas ao pai[7].
Feridas abertas, jamais cicatrizadas; com fórmula definitiva, Mengaldo observou como os versos de Amelia transmitem “a percepção da normalidade do horror, da quotidianidade como domínio privilegiado do terrível” e como ao “fluxo escuro e labiríntico do inconsciente e do imaginário” dessa poesia se contraponha a vontade de formas exatas, “modelos matemático-musicais exatos”[8], especialmente nas duas primeiras coletâneas.
Tutto il mondo è vedovo... pertence à segunda parte das Variações Bélicas, Variazioni 1960-1961, em que o “espaço métrico” é a “forma cúbica”, um quadrado feito de linhas de igual comprimento, com alguma semelhança com o compasso musical: qualquer sintagma, incluindo por exemplo artigos, pode terminar a linha, e cada linha coincide com o verso determinado pela máquina de escrever (com a consequente formação de enjambements que dão valor semântico a palavras determinadas pelo acaso, e fortes efeitos de estranhamento). A métrica assim definida é baseada na rejeição do verso livre (“fraco em sua monotonia”, e demasiado próximo da prosa)[9], não em sílabas ou pés, mas numa medida precisa, ligada a razões visuais e também, nas palavras de Amelia, à “mais equilibrada percepção do conjunto percebido”[10]. Uma outra ideia interessante para descrever o “espaço métrico” assim determinado é ligada ao apelo ao inconsciente (a rapidez da escrita à máquina é tal que dela “se libertavam imagens do inconsciente”)[11].
A “forma-cubo” ideada por Amelia (ela dirá também que, nessa forma, “o timbre é entendido como energia, o volume também, no espaço não tridimensional”)[12], envolve corpo e mente, em múltiplas dimensões, de um eu também múltiplo e reversível; dirá ainda Amelia que sua poesia busca “sensibilizar o poeta a outras disciplinas, como as do operador cinematográfico, a física moderna, a aerodinâmica”[13]. A poesia produz – nas palavras de Pier Vincenzo Mengaldo, uma das vozes mais penetrantes na leitura da poesia rosselliana – “uma espécie de simultaneidade e ubiquidade da representação, e a abolição de qualquer confim entre interior e exterior, privado e público social”[14]; segundo outra grande leitora, estamos diante de uma “reversão revolucionária do espaço da poesia”[15]. Críticas como Fusco e Lorenzini apontam enfaticamente para a corporeidade da poesia de Amelia Rosselli: nela, o corpo se dá sem fraturas com a mente[16]; “a palavra não é (...) fenômeno neutro, simples função verbal, mas realidade física, pulsional, biológica, corpo, coisa, ato, que se desorganiza para fugir dos percurosos de simbolização e conservar uma autonomia que preserve sua materialidade”[17].
Tutto il mondo è vedovo se è vero che tu cammini ancora
tutto il mondo è vedovo se è vero! Tutto il mondo
è vero se è vero che tu cammini ancora, tutto il
mondo è vedovo se tu non muori! Tutto il mondo
è mio se è vero che tu non sei vivo ma solo
una lanterna per i miei occhi obliqui. Cieca rimasi
dalla tua nascita e l´importanza del nuovo giorno
non è che notte per la tua distanza. Cieca sono
ché tu cammini ancora! cieca sono che tu cammini
e il mondo è vedovo e il mondo è cieco se tu cammini
ancora aggrappato ai miei occhi celestiali.
O mundo todo é viúvo se é verdade que tu caminhas ainda
o mundo todo é viúvo se é verdade! O mundo todo
é verdadeiro se é verdade que tu caminhas ainda, todo
o mundo é viúvo se tu não morres! O mundo todo
é meu se é verdade que tu não estás vivo mas só
uma lanterna para os meus olhos oblíquos. Cega fiquei
desde o teu nascimento e a importância do novo dia
não é senão noite pela tua distância. Cega sou
porque tu caminhas ainda! cega sou que tu caminhas
e o mundo é viúvo e o mundo é cego se tu caminhas
ainda agarrado aos meus olhos celestiais.
Numa leitura técnica e musical, podemos dizer, com Laura Barile[18], que o poema é um exemplo de serialismo harmônico + variação, com dois “fundamentais”: o sintagma tutto il mondo è e o adjetivo cieca, bases das permutações. Laura Barile também individua o intertexto – o verso The world will be thy widow..., o quinto do Sonnet 9 de Shakespeare. Ainda que na livre relação que Amelia cultiva sistematicamente com os clássicos, a desleitura do soneto shakespeariano conserva linhas que orientam nossa leitura: a viuvez, o extremo desconsolo do mundo, o esplendor do dia escurecido (em Skakespeare, por núvens, que perturbam o dia assim como perturbam o semblante do amante, comparado ao sol), que no poema de Amelia, se torna noite para o eu, cego diante da existência do ser amado (Cieca rimasi / dalla tua nascita). Há, ainda, uma referência ao céu do soneto inglês: heaven, heavenly, celestial se reapresentam nos olhos celestiais (os olhos azuis de Amelia, olhos também oblíquos, de olhar indireto) do último verso. À cegueira ou à obscuridade que impede a faculdade da visão, alude também a segunda referência intertextual, “una lanterna per i miei occhi obliqui”, de derivação dantesca.[19]
Diferentemente de grande parte da poesia de Rosselli, Tutto il mondo è vedovo... não apresenta termos “mistos”, trilinguismo, fusões de palavras de línguas diferentes, e nem desvios da coerência sintática. Sua estrutura retórica também é relativamente simples, baseada na figura da repetição (anáfora, anadiplose) e, com termo derivado da biologia, em mutações homeóticas das posições de partes ou de inteiras porções do corpo do texto. A estrutura desse texto, que Amelia definiu a “única tentativa de ordenamento abstrato” das Variações bélicas,[20] é visivelmente diferente dos demais poemas do livro: só aqui o fluxo das palavras é limitado quantitativamente, com suas repetições obsessivas, com as articulações (che, ché, se, ma) que se repetem produzindo sutis variações nas proposições, todas relativamente simples; um mecanismo diferente e perfeito, que lembra as litanias doces e dolorosamente obsessivas de Dino Campana, intensamente presente de outras formas nas Variações bélicas e na Libelula, onde seus versos vão formar outros “fundamentais” rossellianos.
Há um surpreendente contraste entre a exata arquitetura métrica e retórica do poema, com seu lento ritmo musical, e a rapidez fulminante das conexões, com seus saltos ou distorções do encadeamento lógico do pensamento, que expõem uma lógica que não prevê o princípio de não-contradição, e cujos postulados permanecem escondidos. “O mundo todo é viúvo se é verdade que tu caminhas ainda / [..] se tu não morres!”: presença e ausência, vida e morte, luz e escuridão, o eu e o tu (“agarrado aos meus olhos celestiais”) se entrelaçam e se confundem, em presença simultânea, numa espécie de unidade traumática dos opostos, sem solução de continuidade, de uma poesia que propõe programaticamente “diferentes e frescos problemas de comunicação do indizível”[21]. São “versos cheios de dignidade e desesperados” (utilizo aqui uma expressão que Amelia dedicou a José Craveirinha, poeta africano de língua portuguesa)[22], de uma litania misteriosa e aporética, sem saídas.
como citar: WATAGHIN, Lucia. “Tutto il mondo è vedovo... de Amelia Rosselli”. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.7, jul. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209567
[1] “Per il midollo del tuo cranio che esercita passioni / senza custodirle io parlo”, Amelia Rosselli. Variazioni belliche, in L´opera poetica, org. Stefano Giovannuzzi. Milão, Mondadori, 2012, p. 168.
[2] “Ma scrivendo a macchina posso per un poco seguire un pensiero forse più veloce della luce”, Amelia Rosselli. “Spazi metrici”, in L´opera poetica, , cit., p. 189.
[3] “Non so quale nuovo rigore m´abbia portato a voi, case del terreno nero”, Amelia Rosselli. Prime prose italiane, in L´opera poetica, cit., p. 816.
[4] “ed è vostra la vita che ho perso”, Amelia Rosselli. Appunti Sparsi e Persi, in L´opera poetica, cit., p. 698.
[5] Sobre a formação e as atividades no campo da música, ver Alessandro Baldacci. “La stanza della musica”, seção do cap. I de Amelia Rosselli, Bari: Laterza, 2007.
[6] Amelia Rosselli. Lettere a Pasolini 1962-1969, org. Stefano Giovannuzzi. Genova: San Marco dei Giustiniani, 2008, p. 17-18. Nesse volume, encontram-se também os glossários enviados a Pasolini.
[7] Emmanuela Tandello. “La poesia e la purezza”, in Amelia Rosselli, L´opera poetica, cit.
[8] Pier Vincenzo Mengaldo. “Amelia Rosselli”, in Poeti italiani del Novecento. Milão: Mondadori, 1978, p. 995-7.
[9] Amelia Rosselli, in L´opera poetica, cit. p. 1277.
[10] Ibidem, p. 1299.
[11] Ainda palavras de Amelia Rosselli, ibidem, p. 1257.
[12] Ibidem, p. 1257.
[13] Ibidem, p. 1278.
[14] P. V. Mengaldo, op. cit., p. 994.
[15] Niva Lorenzini. “Variazioni belliche”: realismo mentale e lingua-corpo”, in Corpo e poesia nel Novecento italiano. Milão: Bruno Mondadori, 2009, p. 91.
[16] Florinda Fusco, cit. por Niva Lorenzini, op. cit., p. 91.
[17] Niva Lorenzini, op. cit., p. 89.
[18] Laura Barile. “Commento a “Tutto il mondo è vedovo se è vero che tu cammini ancora”, in Laura Barile legge Amelia Rosselli. Roma: nottetempo, 2014.
[19] Purgatorio XXII, 67-69. Cf. Barile, op. cit.
[20] Amelia Rosselli, “Spazi metrici”, in L´opera poetica, cit., p. 188.
[21] Amelia Rosselli, Documento, in La libellula e altri scritti. Milão: SE, 1985-2010, p. 79.
[22] Amelia Rosselli. Lettere a Pasolini, op. cit., p. 65.
Esta postagem é a décima do projeto Valerio Magrelli - Millennium Poetry: Viagem sentimental na poesia italiana, iniciativa promovida pelo Istituto Italiano di Cultura di São Paulo durante esta Pandemia de Covid-19.
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Exclusivamente para o público do IICSP, graças à colaboração da Editora
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própria particularíssima antologia de poesia italiana. A proposta é
enriquecida pelas traduções e comentários
(literatura-italiana.blogspot.com) em português dos professores Patricia
Peterle e Andrea Santurbano da UFSC e Lucia Wataghin da USP.”
Os trechos serão publicados pelo canal YouTube do IIC nas datas abaixo. Para acessar, é preciso estar inscrito naNewsLetter do IICSP.- Gerar link
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