- Gerar link
- Outros aplicativos
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Autoritarismo
Piazza Ferrari
Rafael Reginato Moura
em
- Gerar link
- Outros aplicativos
Foto da estátua equestre de Giuseppe Garibaldi na Piazza
de Ferrari, em Gênova.
Ao fundo, o Teatro Carlo Felice (imagem do autor)
Gênova, 9 de agosto
de 2015.
Piazza de Ferrari
Garibaldi solitário,
montado em seu alazão, alça-se monumental próximo ao centro da praça. Às suas costas,
o magnífico prédio neoclássico do Teatro Carlo Felice. Os dias quentes do verão
italiano tornavam a praça vazia, com poucos transeuntes. Eu e minha esposa atravessávamos
a praça no meio da tarde. Havíamos chegado naquela mesma tarde a Gênova e, sem querer
perder tempo, deixamos a bagagem no hotel e saímos a caminhar pela cidade natal
de Cristóvão Colombo e do famoso porto que no século XIX assistiu a famílias inteiras
deixarem a Itália atrás do sonho de uma vida próspera no chamado novo mundo. Eu
acompanhava à época minha esposa em seu pós-doutorado pelo programa do governo federal
“Ciências sem Fronteiras”, e havíamos deixado Lisboa para conhecer algumas cidades
da Itália durante aqueles dias de férias escolares de verão na Europa. A Piazza
de Ferrari, onde se situa a estátua equestre de Garibaldi, ficava a dois quarteirões
do hotel. Para saciar nossa curiosidade, ela logo descortinou diante de nossos olhos
os seus magníficos prédios históricos e o harmonioso fontanário central. Como ficaríamos
apenas dois dias na cidade, não poderíamos perder muito tempo na merecida contemplação
dos detalhes arquitetônicos da piazza. Queríamos ainda chegar ao duomo
da cidade, a Cattedrale di San Lorenzo, e dar uma avistada na região
do próprio porto.
Já nos aprontávamos
para deixar o local quando escutei o homem sentado na beira da calçada, de rosto
envelhecido e barba ainda escura, gritar: “Fascista”! Acompanhei o olhar fuzilante
daquela curiosa figura, tentando compreender o significado da cena, em direção ao
lado oposto da Piazza de Ferrari, onde as ruas se abrem para escritórios
e lojas comerciais. Não consegui distinguir ninguém, nada, nenhum destinatário da
mensagem do homem sentado na calçada. Ao alto, Garibaldi continuava solitário. O
homem havia gritado para o vazio? Para alguém? Para todos? Mal eu sabia que aquele
grito e a expressão de contrariedade do homem permaneceriam inexplicavelmente muito
tempo na minha memória até fazer algum sentido. No início, o estranhamento maior
adveio da fonética da palavra, pronunciada em italiano como se lesse em português
[fachista], ao invés de “fascista”. Só depois, já estudando a língua italiana, eu
compreenderia a mesma escrita nas duas línguas, mas suas pronúncias distintas. Descobriria
também a origem etimológica da palavra “fascismo”, oriunda no italiano de fascio,
que em português significa “feixe”, símbolo de união e autoridade difícil de
romper.
Mais tardio ainda
foi descobrir, já durante o meu mestrado em literatura, as nuances e idiossincrasias
de diversos regimes fascistas na Europa, especialmente o de Salazar que durou mais
de quatro décadas em Portugal. Ainda nesta época o eco da voz daquele homem vociferando
no vazio da Piazza de Ferrari retumbava longinquamente em meus ouvidos. Somente
depois, com o mestrado já concluído, é que pude tomar melhor conhecimento e seguir
os rastros artísticos do que representou o afrontamento ao fascismo italiano. Foi
o tempo de ler o testemunho, ao mesmo tempo cruel e distanciado, vivenciado por
Primo Levi em Se questo è un uomo e a riqueza de episódios que demonstram
o falseamento espetaculoso da realidade, ou o seu desnorteamento, operado contra
os prisioneiros nos campos de concentração. Foi também o tempo de ler a descrição
física de Ítalo Calvino distinguindo os rosados, carnudos e imberbes nazistas alemães
dos rostos amorenados, ossudos, de bigode e barbinha dos fascistas italianos. Foi
ainda o tempo de assistir ao neorrealismo, por vezes lírico, por vezes violento,
do longa-metragem Roma, città aperta, de Roberto Rosselini, um retrato original
de uma Roma ocupada pelos nazistas. Ou ao “quase autobiográfico” Amarcord, de
Federico Fellini, misturando alegoria e sátira para retratar com ironia sarcástica
o regime fascista na Itália. Em todos esses encontros e momentos, quase como se
a formar um mosaico de sentidos, não raras vezes grotesco, a remota voz indignada
do homem à calçada de Gênova me perseguiu, como se prenunciasse uma realidade que
já não ousasse envergonhar-se, querendo ressurgir.
Hoje, quando vejo
práticas autoritárias disfarçadas de liberais se multiplicando sorrateiramente,
quando em meio a uma pandemia a vida passa a ser um joguete político, quando a cultura
e a educação são atacadas por interesses escusos, e quando até o termo “fascismo”
tenta ser surrupiado de seu legítimo lugar na história, eu volto a escutar, agora
mais claramente, a voz cansada, mas alerta, daquele homem nunca esquecido em uma
piazza de Gênova.
__________________________
Como citar: MOURA,Rafael Reginato. "À altura da voz da Piazza de Ferrari". In Literatura Italiana Traduzida, v. 1, n. 9, set. 2020.
Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/ handle/123456789/212877
- Gerar link
- Outros aplicativos