La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

À altura da voz da Piazza de Ferrari, por Rafael Reginato Moura


 


Foto da estátua equestre de Giuseppe Garibaldi na Piazza de Ferrari, em Gênova.

Ao fundo, o Teatro Carlo Felice (imagem do autor)

 

 

Gênova, 9 de agosto de 2015.

Piazza de Ferrari

 

Garibaldi solitário, montado em seu alazão, alça-se monumental próximo ao centro da praça. Às suas costas, o magnífico prédio neoclássico do Teatro Carlo Felice. Os dias quentes do verão italiano tornavam a praça vazia, com poucos transeuntes. Eu e minha esposa atravessávamos a praça no meio da tarde. Havíamos chegado naquela mesma tarde a Gênova e, sem querer perder tempo, deixamos a bagagem no hotel e saímos a caminhar pela cidade natal de Cristóvão Colombo e do famoso porto que no século XIX assistiu a famílias inteiras deixarem a Itália atrás do sonho de uma vida próspera no chamado novo mundo. Eu acompanhava à época minha esposa em seu pós-doutorado pelo programa do governo federal “Ciências sem Fronteiras”, e havíamos deixado Lisboa para conhecer algumas cidades da Itália durante aqueles dias de férias escolares de verão na Europa. A Piazza de Ferrari, onde se situa a estátua equestre de Garibaldi, ficava a dois quarteirões do hotel. Para saciar nossa curiosidade, ela logo descortinou diante de nossos olhos os seus magníficos prédios históricos e o harmonioso fontanário central. Como ficaríamos apenas dois dias na cidade, não poderíamos perder muito tempo na merecida contemplação dos detalhes arquitetônicos da piazza. Queríamos ainda chegar ao duomo da cidade, a Cattedrale di San Lorenzo, e dar uma avistada na região do próprio porto.

Já nos aprontávamos para deixar o local quando escutei o homem sentado na beira da calçada, de rosto envelhecido e barba ainda escura, gritar: “Fascista”! Acompanhei o olhar fuzilante daquela curiosa figura, tentando compreender o significado da cena, em direção ao lado oposto da Piazza de Ferrari, onde as ruas se abrem para escritórios e lojas comerciais. Não consegui distinguir ninguém, nada, nenhum destinatário da mensagem do homem sentado na calçada. Ao alto, Garibaldi continuava solitário. O homem havia gritado para o vazio? Para alguém? Para todos? Mal eu sabia que aquele grito e a expressão de contrariedade do homem permaneceriam inexplicavelmente muito tempo na minha memória até fazer algum sentido. No início, o estranhamento maior adveio da fonética da palavra, pronunciada em italiano como se lesse em português [fachista], ao invés de “fascista”. Só depois, já estudando a língua italiana, eu compreenderia a mesma escrita nas duas línguas, mas suas pronúncias distintas. Descobriria também a origem etimológica da palavra “fascismo”, oriunda no italiano de fascio, que em português significa “feixe”, símbolo de união e autoridade difícil de romper.

Mais tardio ainda foi descobrir, já durante o meu mestrado em literatura, as nuances e idiossincrasias de diversos regimes fascistas na Europa, especialmente o de Salazar que durou mais de quatro décadas em Portugal. Ainda nesta época o eco da voz daquele homem vociferando no vazio da Piazza de Ferrari retumbava longinquamente em meus ouvidos. Somente depois, com o mestrado já concluído, é que pude tomar melhor conhecimento e seguir os rastros artísticos do que representou o afrontamento ao fascismo italiano. Foi o tempo de ler o testemunho, ao mesmo tempo cruel e distanciado, vivenciado por Primo Levi em Se questo è un uomo e a riqueza de episódios que demonstram o falseamento espetaculoso da realidade, ou o seu desnorteamento, operado contra os prisioneiros nos campos de concentração. Foi também o tempo de ler a descrição física de Ítalo Calvino distinguindo os rosados, carnudos e imberbes nazistas alemães dos rostos amorenados, ossudos, de bigode e barbinha dos fascistas italianos. Foi ainda o tempo de assistir ao neorrealismo, por vezes lírico, por vezes violento, do longa-metragem Roma, città aperta, de Roberto Rosselini, um retrato original de uma Roma ocupada pelos nazistas. Ou ao “quase autobiográfico” Amarcord, de Federico Fellini, misturando alegoria e sátira para retratar com ironia sarcástica o regime fascista na Itália. Em todos esses encontros e momentos, quase como se a formar um mosaico de sentidos, não raras vezes grotesco, a remota voz indignada do homem à calçada de Gênova me perseguiu, como se prenunciasse uma realidade que já não ousasse envergonhar-se, querendo ressurgir.

Hoje, quando vejo práticas autoritárias disfarçadas de liberais se multiplicando sorrateiramente, quando em meio a uma pandemia a vida passa a ser um joguete político, quando a cultura e a educação são atacadas por interesses escusos, e quando até o termo “fascismo” tenta ser surrupiado de seu legítimo lugar na história, eu volto a escutar, agora mais claramente, a voz cansada, mas alerta, daquele homem nunca esquecido em uma piazza de Gênova.


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Como citar: MOURA,Rafael Reginato. "À altura da voz da Piazza de Ferrari". In Literatura Italiana Traduzida, v. 1, n. 9, set. 2020. 

Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/212877