- Gerar link
- Outros aplicativos
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Grotesco
Neorrealismo
Rafael Reginato Moura
em
- Gerar link
- Outros aplicativos
Teto da Galleria degli Uffizi - Florença |
Derivado da palavra italiana
grotta (ou gruta, no português), a
manifestação estética do grotesco remonta à Antiga Roma. Mais precisamente,
enquanto objeto de atenção, ao Domus
Aurea, a casa dourada do imperador Nero[1]. As escavações arqueológicas
ocorridas no Domus Aurea a partir do
século XIV intentavam resgatar o passado romano, motivo posterior de grande
interesse dos renascentistas. Durante as escavações, foram encontrados
elementos decorativos incomuns que no início do século XVI causaram admiração e
fascínio nos renascentistas. Era uma decoração fantasiosa, ornamental, com motivos
naturais misturados, tais como aves, animais, plantas e frutas, que não guardava
semelhança com o estilo clássico predominante em Roma. A beleza ornamental do
grotesco acabaria sendo absorvida, sem abrir mão de seu caráter de estranhamento,
muitas vezes metamórfico, às vezes cômico, às vezes fantástico, às vezes bizarro,
pela arte decorativa do pintor Rafaello.
Dado o grande volume de
trabalho, especialmente na segunda década do século XVI, Rafaello forma sua célebre equipe de ajudantes, dotados de
habilidades específicas. Cabe a Giovanni
da Udine a tarefa de criar os estuques grotescos das chamadas Logge di Rafaello no Vaticano. É
importante destacar que Giovanni da Udine
realizou uma importante descoberta: refez o procedimento usado na época
romana para a elaboração do estuque, mesclando à cal um pó finíssimo de mármore
e resultando em um modelo mais refinado e brilhante, resistente e duradouro. A
força ornamental e artística trazida pelo estilo grotesco às Logge di Rafaello no Vaticano explorou
tematicamente, e sob o consenso do papa Leone
Decimo, traços da natureza, dos mitos clássicos, da história, das religiões
místicas e do hebraísmo, abarcando ainda instrumentos de música, armas, cenas
de guerra, de jogo, de caça, de dança, entre outros que, à guisa de representar
a unidade das artes sob a cultura do renascimento e sob os auspícios da igreja
católica, não disfarçou a mescla ou união do sagrado e do profano.
Giovanni da Udine, Detalhe da decoração grotesca
da
Loggetta do cardeal Bibbiena, 1516, Vaticano |
Percorrendo os sendeiros do
grotesco e preservando sua aura pagã, o pintor milanês Giuseppe Arcimboldo compôs quadros ou paradoxos visuais, em um
misto de maneirismo e naturalismo, onde imagens da natureza como frutas,
verduras e flores formavam, em conjunto, fisionomias humanas, as suas famosas
cabeças compostas. A partir de então o estilo grotesco, à medida que se
dissemina pela Europa, também passa a ganhar alcunhas pejorativas, como um
adjetivo que representasse o ridículo, o antinatural, o excessivo, o monstruoso[2], o bizarro, o vulgar, não
mais uma expressão estética do período romano tardio. É com o romantismo
francês que o estilo grotesco ganha uma nova relevância e interpretação que
admitisse o seu paradoxo formativo[3], o de uma arte que pudesse
representar tanto o belo quanto o deformado.
Na França, Victor Hugo abre
espaço para uma arte inesgotável a partir do grotesco que, em sua derivação ou
união com o belo, constituiria o “moderno”[4]. O sublime residente na
arte grotesca, conforme o escritor francês, permitiria pensar em infinitas
possibilidades artísticas, ou seja, “o belo tem somente um tipo; o feio tem
mil”[5]. Essa mistura, fusão ou
profusão do belo e do feio no grotesco, que não se esgota no romantismo nem nas
ideias de Victor Hugo, pode ser visível, por outro lado, no romance Notre Dame de Paris, onde a figura do
quasímodo, o corcunda, reúne a beleza da bondade e a imperfeição da deformação
física. Não se deve deixar de notar também que o principal cenário parisiense
do romance, a Catedral de Notre-Dame, com suas gárgulas e quimeras góticas no
exterior, contribuem visualmente para a atmosfera grotesca do romance.
De Rafaello até após
Victor Hugo, num devir-louco como nos propõe Deleuze, que nunca se detém, ou também
anacronicamente como uma montagem de tempos heterogêneos à maneira de
Didi-Huberman, o estilo grotesco ganhou diversas formas, variadas obras. Desde
os trípticos de Bosch e a Parábola dos
Cegos de Peter Brueghel, passando pela série de gravuras Los caprichos de Goya, pelo Frankenstein de Mary Shelley, pelos
contos de horror de Edgar Allan Poe, pelas caricaturas pintadas por Honoré
Daumier, pelas jagunças pietás sobraçando suas esquálidas crianças em Os Sertões de Euclides da Cunha[6], pela expressão pavorosa
do grito de Edvard Munch, até chegar ao desespero monstruoso da Guernica de Picasso, até atingir as
imagens poéticas e oníricas de Breton ou as deformidades da natureza operadas
por outros surrealistas, como Salvador Dalí e Marc Chagall[7], desde então e até então o
estilo grotesco insistiu sempre em ressurgir como um avatar polissêmico, pleno
de possibilidades e relações em suas imagens dialéticas[8], maliciosas, cuja
imaginação montadora fez sobreviver no tempo a sua expressão multifacetada.
A tarefa de definir
esteticamente o grotesco ou em tentar delimitá-lo resulta inócua, caso não esteja
associada a um recorte ou a um objetivo estético. Em defesa do grotesco ou em
seu confronto, as análises se dividem entre um estilo alegre, lúdico, leve e
fantasioso ou, por outro lado, angustiante e obscuro, que foge à realidade ao
deslocar a ordem. Mas a riqueza do grotesco, como percebeu Victor Hugo e muito
antes Rafaello ao trazê-lo para
dentro da arte renascentista, parece residir, como potência, em sua composição
ou associação com outros movimentos ou escolas artísticas, com o hibridismo que
o toma sempre por origem ou novo recomeço.
Como todo realismo advém
da realidade e é para ela que retorna, pensar em um novo realismo que acolha
esteticamente também o advento da deformação, do grotesco, pode ampliar o seu
horizonte de alcance. Mário Dionísio, poeta, pintor e crítico neorrealista
português, escreveu ser necessário deformar: “deformar sempre até onde esta
palavra (liberta do sentido etimológico) possa significar dar nova forma,
escolher a forma capaz, a única de dar a toda a gente claramente aquilo que
queremos revelar”[9].
A associação ao grotesco, ao deformado neste caso, mais do que um traço
estético, apresenta-se decerto como um sintoma. Um apontamento de cura, talvez.
Ou uma marca (cicatriz, corte ou fissura) de contornos realistas. Pensar em uma
carga genética que sustenha aspectos da natureza, da animalização, da
metamorfose, da transformação, como é o caso da salutar apropriação do grotesco
por um novo realismo, passa também por visar o homem e sua condição diante do
tempo. É ao deparar-se com as deformidades humanas e dramáticas de muralistas
mexicanos como Diego Rivera e Orozco, com a descrição das vidas secas de
Graciliano Ramos que fazem de um cão mais gente do que a gente, com o
monstruoso Gadanheiro de Júlio Pomar,
com os alugados ou jornaleiros (aqueles que recebiam apenas por jornadas de
trabalho) de Alves Redol ou de Carlos de Oliveira, com a caricatura brutal e
desconsoladora do Zampanò de La Strada de
Fellini, com a violência lírica e disforme de Renato Guttuso, que se trava
contato com a riqueza estética e de linguagem que todo neorrealismo, movimento
sempre heterogêneo, permite assomar.
Em 17 de agosto de 1940,
assombrado pela aparição do quadro Café,
de Candido Portinari, ocorrido na Exposição do Mundo Português naquele mesmo
ano em Lisboa, Afonso Ribeiro proclama no semanário O Diabo, veículo que primeiro divulgou o neorrealismo em Portugal,
as seguintes palavras:
Portinari não deforma pelo próprio
prazer de deformar ou com o receio de cair na cópia servil da realidade. E não
há dúvida que o consegue. Cedo, porém, aqueles trabalhadores de mãos e pés
enormes, quase monstruosos, aqueles trabalhadores de braços grossos como
pernas, terrivelmente musculados, se nos fixam na retina, se apossam de nós. E
o efeito que o artista saca do seu processo de tal modo lhe avigora as figuras
e lhe faz realçar o conjunto da composição, não raro lha dramatizando, que nos
chegamos a convencer que semelhantes exageros se tornavam em absoluto necessários
para que os seus negros dos cafezais, os seus pescadores, toda a extensa
galeria da sua gente humilde não chegasse até nós amaneirada, falsa ou retórica[10].
Se do ponto de vista
estético, é possível perceber o grotesco como uma valorização do belo em arte
por meio do desagradável ou do feio propriamente dito, o mesmo movimento é que
o permite ampliar a visão sobre o real, admitir e incorporar à obra visual, literária
ou cinematográfica a imperfeição moral, a degradação física, o pesadelo
atormentador, a invisibilidade do sujo e bruto, a desumanidade das formas e a
humanidade do conteúdo, para não fugir à grande polêmica que envolveu o
movimento neorrealista, ao menos em Portugal, cujos críticos se limitavam a ver
nas suas obras apenas um conteúdo ideológico, sem valorizar sua forma ou
linguagem.
A valorização estética de
um novo realismo, que permita descobrir o quanto de grotesco ou “deformidável”
a realidade filtrada contempla, parece restar como um importante elemento a
saciar a “necessidade de realidade” de que fala o crítico português António
Pedro Pita e que, de ciclos em ciclos, por vezes sobrepostos, retorna como um
desejo reprimido, como um afã de justiça espiritual, como uma diferença na
repetição, ou como uma estranha imagem que, não inadvertidamente, ainda nos figure
bastante atual.
Como citar: MOURA, Rafael Reginato. "Estilhaços grotescos do Antigo ao Neorreal". In "Literatura Italiana Traduzida", v. 1, n. 10, out. 2020.
Disponível em https://repositorio.ufsc.br/ handle/123456789/213725
Referências:
BENJAMIN, Walter. “Franz Kafka. A propósito do
décimo aniversário de sua morte”. In Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet.
São Paulo: Brasiliense, 1994.
BERTIN, Juliana. “O monstro invisível:
o abalo das fronteiras entre monstruosidade e humanidade”. In CAPELA, Carlos
Eduardo; WOLFF, Jorge; ESCALLÓN, Bairon Oswaldo; CORREA, Joaquín. Outra travessia – Revista de literatura, Florianópolis,
n. 22, 2º semestre de 2016, p. 37-54.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto
Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo,
1974.
DIONÍSIO,
Mário. A Paleta e o Mundo. 2. ed.
Volume 1. Lisboa: Europa-América, 1956.
FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France
(1974-1975). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010.
MONTANARI, Tomaso. “Uma história do
retrato barroco”. In Velazquez. Trad. Mônica Esmanhotto, Simone Esmanhotto. Coleção Grandes
Mestres, volume 12. São Paulo: Abril, 2011.
PITA, António Pedro. “O
neo-realismo entre a realidade e o real”. In Novos realismos. Org. Izabel Margato e Renato Cordeiro Gomes. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2012.
SILVA, Carina Zanelato. “O grotesco
na representação das heroínas kleistianas Thusnelda e Penthesilea”. In CAPELA,
Carlos Eduardo; WOLFF, Jorge; ESCALLÓN, Bairon Oswaldo; CORREA, Joaquín. Outra travessia – Revista de literatura, Florianópolis,
n. 22, 2º semestre de 2016, p. 13-35.
STEVENSON, Robert Louis. O estranho caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde.
Trad. Fernando Dias Antunes. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008.
ZUCCARI,
Alessandro. Raffaello e le dimore del
Rinascimento. Art e Dossier, Firenze, n. 7, nov. 1986, p. 4-19.
[1] Wolfgang Kayser, em O grotesco: configuração na pintura e na
literatura. (Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2013), chama atenção para o fato de que o fenômeno
do grotesco é mais antigo do que o seu nome, compreendendo a arte chinesa,
etrusca, asteca, germânica antiga e outras mais, sem esquecer a literatura clássica
grega e outras manifestações poéticas remotas.
[2] Uma cosmogonia do monstro parece
resultar útil para a análise de possíveis filiações grotescas. Já no século XV,
Vasari, ao verificar as descobertas no chamado palácio romano de Tito, faz
referência a uma moda bárbara à época e a uma preferência por se “pintar
monstros nas paredes”, ao invés de retratos do mundo real. Ressalta-se que, ao
se referir ao grotesco realista e pós-romântico do século XIX, Wolfgang Kayser
divide as figuras grotescas em três tipos: 1) a figura extremamente grotesca na
imagem de sua aparência e nos movimentos; 2) os personagens excentricamente
bizarros, exóticos, selvagens e ameaçados pela loucura; 3) as figuras
“demoníacas”, de aspecto e conduta grotescos. Esses três tipos grotescos
permitem uma aproximação com Michel Foucault e sua distinção ou atravessamento
entre o monstro físico e o monstro moral, ou seja, a monstruosidade que reside,
por um lado, na forma de se comportar e, por outro, no aspecto físico. No
entanto, ao pensar o grotesco e sua plêiade de relações, não se deve reduzir o
seu alcance a uma distinção física-moral ou física-psicológica, uma vez que a
própria categorização do monstro, como afirma Juliana Bertin, situa-se em uma
posição intersticial, impura, híbrida, em um dentro/fora. Esse lugar dobrado do
monstro, que parece não escapar ao grotesco, é o que une as duas expressões em
uma única “monstruosidade-grotesca” ao observar-se a figura do Sr. Hyde, de
Robert Louis Stevenson, que “mal se assemelha a um ser humano” ou “mais parece
um troglodita, ou um monstro de um velho conto infantil” e em cuja figura é
possível ver “a expressão do Diabo”. Mais adiante, o mordomo do Dr. Jekyll, ao
contrastá-lo com o Sr. Hyde, não hesita em distingui-los: “O meu patrão é um
homem alto e bem constituído; e aquele mais parecia um anão”. A alusão à figura
do anão, aqui comparada à descompostura física do Sr. Hyde, mais próxima do
bizarro e repulsivo, também mereceria maior atenção como avatar grotesco que,
entre a deformação e a metamorfose física, parte humano, parte monstruoso,
quase a sugerir também em seu estranhamento visual uma sensação de encolhimento
moral, atravessa séculos de arte e literatura. Diego Velázquez, também nas
artes visuais, integrou às representações de personagens da corte espanhola
anões e palhaços. Ao se referir a essas obras, Tomaso Montanari afirma que “a
figura do rei e a de seus familiares se alternam nos quadros com as dos ‘vermes
da corte’, os anões e os bufões”. Pensar no anão, enquanto figuração do
grotesco, de sua incompletude ou condição deforme, é deparar-se com um vasto
caminho que não exclui nem mesmo a recente produção cinematográfica, seja na
aparição mais sutil e passageira de dois deles no plano de fundo de uma cena em
que, no primeiro plano, os dois personagens principais dialogam no
longa-metragem Scoop, de Woody Allen,
seja na personificação anã da editora do jornal para o qual trabalha o
personagem Jep em A grande beleza, introduzindo
um paradoxo visual da ordem do estranhamento grotesco diante da estética do
belo clássico romano que, ao longo do filme de Paolo Sorrentino, vai sendo
moralmente desconstruída ou tornada ruína.
[3] Conforme Carina Silva, a inserção
do elemento grotesco na arte romântica foi visto como um contraponto à harmonia
e à perfeição desenvolvidas pelos clássicos, estabelecendo como projeto
estético a aproximação da arte à vida.
[4] Parafraseando Walter Benjamin,
Didi-Huberman menciona, em Diante do
tempo (Trad. Vera Casa Nova, Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2013), que “o moderno é tão variado
quanto os diferentes aspectos de um mesmo caleidoscópio”.
[5] Cf. HUGO, Victor. Do Grotesco e do Sublime. Tradução e notas de Celia Berretini.
São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 33.
[6] Para compreensão, sugere-se a
leitura de Euclides da Cunha e a pietà
sertaneja, disponível em https://biblioo.cartacapital.com.br/euclides-da-cunha-e-a-pieta-sertaneja/.
[7]
Ainda que considere as obras
surrealistas do século XX como de natureza grotesca, Wolfgang Kayser acrescenta
que a força sugestiva dos programas surrealistas se desvaneceu e o phatos das auto-interpretações já não
produz mais efeito, restando saber, agora que só contam consigo mesmas, se as
obras surrealistas possuem bastante valor artístico para entrarem na história
do grotesco.
[8]
Pensar um percurso anacrônico
para o grotesco, advindo de uma montagem estilhaçada, de tempos heterogêneos da
mesma forma de que é constituído o grotesco, ganha suporte na teoria de
Didi-Huberman que, ao reler Warburg e Benjamin e o fato de ambos terem colocado
a imagem no centro nevrálgico da “vida histórica” sem reduzi-la a um documento
da história, estabelece para a obra de arte uma “temporalidade com dupla face”,
devir que reside nos termos de uma fulgurante e intermitente “imagem
dialética”.
[10] Cf. ALVARENGA, Fernando. Afluentes Teórico-Estéticos do Neo-Realismo
Visual Português. Porto: Edições
Afrontamento, 1989, p. 56.
- Gerar link
- Outros aplicativos