La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Literatura “de urgência”: experiências de manicômio em L´altra verità. Diario di una diversa, de Alda Merini e Diário do hospício, de Lima Barreto, por Lucia Wataghin

 

Imagem: pxhere.com

Meu propósito é pensar em pontos de vista sobre experiências de “manicômio” de dois escritores de valor, que sofreram longas internações em instituições psiquiátricas, que denominaram, respectivamente, “manicômio” e “hospício”: a poeta Alda Merini (1931-2009), mulher, de condição socioeconômica modesta, na Milão dos anos sessenta e setenta, e o escritor Afonso Henrique de Lima Barreto (1881-1922), homem, negro, modesto amanuense na Secretaria da Guerra e jornalista na Rio de Janeiro do começo do século XX. Alda Merini foi internada pela primeira vez em 1965 no instituto Paolo Pini de Milão e sofreu internações por cerca de 14 anos (1965-1978), com diagnóstico de esquizofrenia; Lima Barreto foi internado nos anos 1917, 1918, 1919, 1920, no Hospital dos Alienados (“hospício”) do Rio de Janeiro, por delírios e alucinações devidos ao alcolismo, e morreu em 1922. Os dois autores dedicaram especificamente a essas experiências textos narrativos de caráter diarístico, que pertencem a um gênero que definimos, com Luciana Hidalgo, “literatura da urgência”[1]:  textos caracterizados pela urgência de situações de extremo sofrimento e dificuldade, que nascem em relação, ou como reação a essas condições; se encontram no limite entre documental e ficcional, e pela forte relação com experiências autobiográficas podem ser definidos autoficcionais, segundo uma formulação de Serge Doubrovsky. Não se quer aqui sugerir nenhuma relação entre a qualidade da obra literária e a doença mental e/ou a condição material de internação em hospitais psiquiátricos. Há muita autoconsciência e ironia seja em Merini, seja em Lima Barreto (“Cada poeta vende seus apuros [guai] melhores”, é um aforismo de Merini) e é verdade que, como disse Brodsky, mesmo nos casos de poetas que tiveram um “destino horroroso” (como ele mesmo, preso nos anos sessenta pelo regime soviético, e mantido inclusive em hospitais psiquiátricos), como os que tiveram o azar de nascer na Europa nos anos vinte e trinta, “a identidade de um poeta deve ser construída mais ao redor de estrofes que de catástrofes”[2]. Quero aqui apenas apontar para semelhanças e diferenças entre expressões literárias mais diretas das reações dos dois autores à violência da instituição e da doença, pensar em dois exemplos de escritas literárias de resistência ao mesmo tipo de situação-limite, indicar alguns dos temas que formam a rede de relações entre doença psíquica e experiência literária: da ideia da escrita como cuidado de si à oposição aos processos de despersonalização e aniquilação impostos às pacientes pela doença, os tratamentos médicos e as instituições, no âmbito da relação com as diversas autoridades: das instituições psiquiátricas, das leis, das famílias, do sistema social, da tradição.
Nesse limiar entre gêneros, encontramos muitos textos, diários, memórias, confissões: de Dostoevski a Lima Barreto, de Amelia Rosselli a Alda Merini, muitos autores se dedicaram a temas relacionados ao binômio literatura e instituições de reclusão, privativas de liberdade, como manicômio, cárcere, campos de prisão etc.: em Memórias da Casa dos Mortos (1861), Dostoiévski fala de seus quatro anos de reclusão na Sibéria, de 1850 a 1854, em campos de trabalho forçado, em que “quase todos os detentos falavam de noite e deliravam”[3], aludindo às relações de proximidade entre dor e doença mental; textos mais ou menos precisamente relacionados com o tema são também, de Amelia Rosselli, Sanatorio (1954), escrito durante a permanência no sanatório Bellevue na Suíça e Storia di una malattia (1977), documento-relato de delírios e persecuções, onde observamos  limites sutis entre escrita literária e discurso delirante.
Os diários de manicômio de Merini e Lima Barreto apresentam características comuns: são autobiográficos, têm um claro compromisso com a busca da “verdade” dos fatos, têm ambição de sinceridade, intenção de testemunho e denúncia, são exemplos de escrita de resistência, exercício de fortalecimento do escritor contra a doença e contra as condições de vida nas instituições; por fim, tratam da angustiante relação com a autoridade. Os dois autores têm intenção de transformar esperiências autobiográficas em literatura; no entanto, Merini publica seu diário diretamente como obra literária, enquanto para Lima Barreto o diário é um rascunho do romance, em que a experiência será filtrada novamente. O Diário do hospício é a base do romance, inacabado, O cemitério dos vivos (coincidência, por antítese, do título com o dostoievskiano Memórias da casa dos mortos); inspirado pela leitura de A China e os Chins  e pelas gravuras que encontra no livro Recordações de viagem de Henrique C. R. Lisboa (1888); em mérito, registra o significado da expressão “o cemitério dos vivos”: “Nas imediações da cidade, um lugar apropriado de domínio público era reservado aos indigentes que se sentiam morrer. Dava-se-lhes comida, roupa e o caixão fúnebre em que se deviam enterrar”[4].
Merini informa ter se inspirado, no seu Diario di una diversa, na História de uma alma, de Santa Teresa de Lisieux; no Diário, assim como na poesia, observamos uma forte conexão com experiências místicas e com os martírios cristãos; o manicômio é definido terra santa, onde “o martírio se tornava tão alto, a ponto de beirar o êxtase”, ao sair para um passeio, com outras internadas, tem uma “visão de Santa Teresinha que amava se definir ‘pequena andorinha de Deus’”, em outra ocasião, se vê como crucificada, vivendo a paixão de Cristo. Mas também declara: “Como disse, não escrevo essas coisas apenas para fazer delas um romance. Eu desejo que a doença mental seja finalmente desmistificada e reconduzida à sua verdadeira base, que é um distúrbio da emotividade”.  E ainda, “O diário é uma obra lírica em prosa, mas é também uma exegese, uma imploração e a completa destruição de toda filosofia e de todo ato conceitual”; no segundo post scriptum às “Notas à margem”, escreve “Com este volume Alda Merini coloca à disposição dos outros suas experiências, para um profícuo êxito da psicanálise e para uma emancipação humanística da psiquiatria”.[5]
Os dois diários nos fornecem ao mesmo tempo autorretratos dos autores nessas situações e retratos das condições sociais, desfavorecida, feminina e negra, nos quais é central o tema da relação com a autoridade. As gravíssimas humilhações (em ambos, punições estarrecedoras, vergonha pela exposição da nudez em público, com conotações sexuais em Merini, porque os corpos nus são “deixados à mercê da obscena cobiça dos outros”), os sofrimentos de todos os tipos, o cotidiano de manicômio e hospício, as relações sociais, os fármacos, os pacientes, as infermeiras (“seres desprovidos de qualquer sentimento humano”), a degradação dos corpos (“bagno di pena”, ou banho de punição) [6]; a crueldade e a arrogância “clínica” dos médicos, que Lima Barreto discute e satiriza em vários pontos do diário, amargamente), a perda de “todo o direito sobre o (...) corpo – escreve Barreto – era assim como um cadáver de anfiteatro de anatomia”[7]. Ambos tratam o manicômio como inferno[8]; para o brasileiro, a loucura é pior que a morte: “Todos eles (os pacientes) estão na mão de um poder que é mais forte do que a Morte. A esta, dizem, vence o amor; a loucura, porém, nem ele[9].
Há, certamente, uma tematização direta da relação com a autoridade, com diferentes níveis de articulação, de sofisticação, de cultura, e diferentes relações com a tradição, a sociedade culta e com a lingua culta.
A relação com a tradição é tematizada diretamente por Merini, por exemplo,  quando dedica uma poesia a Maria Corti, autoridade da crítica, afirmando seu valor como poeta, mas se autodefinindo “simples”:
 
A Maria Corti
    Questa malagevole sorte
mi fa soffrire
perché non sono che una semplice
e la pazzia ahimè
è un albero troppo alto
perché possa toccarlo![10]

 

É uma declaração de humildade diante da sociedade culta, talvez, mas também diante do mistério da doença mental, e é, finalmente, uma afirmação de si. Lima Barreto tem consciência da sua superioridade intelectual, inclusive em relação às autoridades médicas e toda sua obra se coloca como afirmação e desafio às instituições. Diante das humilhações, lembra outros grandes humilhados da história da literatura e aposta no seu talento:
 
Voltei para o pátio. Que coisa, meu Deus! (...) Todos nós estávamos nus, as portas abertas, e eu tive muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoiévski, na Casa dos mortos. Quando baldeei, chorei; mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoiévski, que pior deviam ter sofrido em Argel e na Sibéria. // Ah! A Literatura me mata ou me dá o que eu peço dela.[11]
 
Literatura ou morte, resgate pela literatura – a pergunta tem a ver com o lugar do intelectual e do artista no mundo:
 
em nenhuma carreira se enriquece ou mesmo se sobe em honraria, sem ter nascimento ou fortuna, ou senão empregando muita abdicação de suas opiniões, ou – o que é pior - perdendo muito de sua autonomia e independênca intelectual na gratidão por seu protetor.[12]
 
A pressão das condições econômicas e sociais é tão grande que o escritor precisa se perguntar se com todo o seu imenso talento e sua obra, pode conseguir um lugar no mundo, viver e escrever, ou se deve viver nas piores condições e morrer miserável e desclassificado.
Em ambos os diários, reconhecemos elementos presentes na inteira obra desses dois autores: misticismo, erotismo, desvelamento da intimidade em Alda Merini, análise social e histórica, racionalismo, resguardo da intimidade pessoal em Lima Barreto.
Mais notáveis ainda talvez sejam as diferentes considerações sobre o mistério da loucura: Lima Barreto demonstra angústia e preocupação, mas contesta as teorias positivistas que atribuíam a doença a taras, hereditariedade; ele não tem doença mental, é alcoolista; tem horror da doença, mas não se considera louco (“De mim para mim, tenho certeza que não sou louco”, escreve, nas primeiras páginas do Diário), dos companheiros de sofrimento, no hospício, diz: “eu passo e perpasso por eles como um ser vivente entre sombras”. Afirma: “Não há dinheiro que evite a Morte, quando ela tenha de vir; e não há dinheiro nem poder que arrebate um homem da loucura”; observa, no hospício, “o horror misterioso da loucura”, “a mais triste moléstia da humanidade”, “o espetáculo da loucura, (...) dos mais dolorosos e tristes espetáculos que se pode oferecer a quem ligeiramente meditar sobre ele”, “a loucura, a degradação humana – horror desse espetáculo”[13]; faz perguntas como homem racional e critica a psiquiatria, os preconceitos, a ignorância dos médicos, das instituições e do senso comum.
Alda Merini indaga os mistérios da doença mental, detém-se na ideia das revelações oferecidas pela doença e, em versos notáveis, por “quel vecchio infinito manicomio / che è l´ospedale della gente ignuda”.[14]
Num poema enigmático, interroga o manicômio:
 

Il manicomio è una grande cassa di risonanza

e il delirio diventa eco

l´anonimità misura,

il manicomio è il monte Sinai,

maledetto, su cui tu ricevi

le tavole di una legge

agli uomini sconosciuta.[15]

 
A escrita é sim testemunho, cuidado de si e resistência, mas é também o lugar onde se espera uma revelação, porque a experiência do manicômio é reveladora; no manicômio se recebe ao mesmo tempo a lei do encarceramento e a lei, aos homens desconhecida, da doença.

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Como citar: WATAGHIN, Lucia. "Literatura 'de urgência': experiências de manicômio em L´altra verità. Diario di una diversa, de Alda Merini e Diário do hospício, de Lima Barreto". In "Revista de Literatura Italiana", v. 2, n. 3, mar. 2021.  Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/220897.



[1] HIDALGO, Luciana. Literatura da urgência. Lima Barreto no domínio da loucura. São Paulo: Anablume, 2008.
[2] BRODSKY, Joseph. A musa em exílio. HAVEN, Cynthia L. (org.). Trad. Diogo Rosas G. Belo Horizonte/Veneza: Ed. Ayiné, 2018, p. 174.
[3] DOSTOEVSKIJ, Fëdor. Memorie dalla casa dei morti. Trad. Enrichetta Carafa d´Andria. Roma: Biblioteca Economica Newton, 1995,  p. 29. (Tradução minha)
[4] LIMA BARRETO. Diário do hospício. O cemitério dos vivos. MASSI, Augusto e MOURA, Murilo Marcondes (org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 169.
[5] MERINI, Alda. L´altra verità. Diario di una diversa. Milão: BUR, 1997, pp. 106, 107, 66, 120, 133, 145 (traduções minhas).
[6] Idem, pp. 95, 30, 38.
[7] LIMA BARRETO, op. cit., p. 194
[8] LIMA BARRETO, op. cit., p. 41; MERINI, Alda, op. cit., pp. 37, 100.
[9] LIMA BARRETO, op. cit., p. 74.
[10] MERINI, Alda. Il suono dell´ombra. Poesie e prose 1953-2009. BORSANI, Ambrogio (org.). Milão: Mondadori, 2010, p. 281. (A Maria Corti. ... Essa árdua sorte / me faz sofrer / porque sou apenas simples / e a loucura,  ai de mim, é uma árvore demasiado alta / para que eu possa tocá-la!). Tradução minha.
[11] LIMA BARRETO, op. cit., p. 36.
[12] Idem, p. 123.
[13] Ibidem, p´. 34, 47, 74, 167, 175, 162, 104.
[14] MERINI, Alda. Il suono dell´ombra, op. cit., p. 550 (daquele velho infinito manicômio / que é o hospital da gente nua”). Tradução minha.
[15] Idem, p. 204 (O manicômio é uma grande caixa de ressonância /e o delírio se torna eco / a anonimidade medida, / o manicômio é o monte Sinai, / maldito, em que recebes / as tábuas de uma lei / aos homens desconhecida). Tradução minha.