Os partidos e o vírus: a biopolítica no poder de Roberto Esposito

Os partidos e o vírus: a biopolítica no poder* 

de Roberto Esposito

Quando se começou a falar de “biopolítica”, a novidade foi recebida com certo ceticismo. Parecia uma noção pouco verificável na realidade. Depois a situação mudou rapidamente. Os embates foram se fazendo mais densos, até se tornarem impressionantes. Dos procedimentos biotecnológicos, usados para modificar eventos antes tidos naturais, ao terrorismo suicida, até a mais recente crise imigratória, questões de vida e de morte se instalaram no centro das agendas dos conflitos políticos. Até que a explosão do coronavírus, com as consequências geopolíticas que dele se ramificaram, levou ao extremo a relação direta entre vida biológica e intervenções políticas. 

Damien Hirst sculpture Wretched War

            

Três foram as etapas fundamentais. A primeira é o deslocamento do objetivo político de cada indivíduo para determinados segmentos da população. São muitas as camadas da população que necessitam de práticas profiláticas, e ao mesmo tempo são protegidas e mantidas à distância, consideradas em risco, mas também portadoras de risco do contágio. Isso é também o resultado da verdadeira síndrome imunitária que há muito tempo caracteriza o novo regime biopolítico. O que se teme, mais ainda que o mal em si, é a sua circulação descontrolada num corpo social exposto a processos de contaminação generalizados. Naturalmente, as dinâmicas da globalização potencializaram tal temor num mundo que parece ter perdido toda e qualquer fronteira interna. A violenta oposição por parte dos partidos soberanos, mais do que como uma prossecução do velho nacionalismo, deve ser interpretada nessa chave imunitária.

Roberto Esposito

A segunda etapa da dinâmica biopolítica em curso tem a ver com o duplo processo de medicalização da política e de politização da medicina. Trata-se também nesse caso de uma transformação que remonta ao nascimento da medicina social. Mas, a aceleração em curso parece ultrapassar o limiar de vigilância. De um lado a política, esfumadas as próprias coordenadas ideológicas, acentuou sempre mais um caráter protetivo diante de riscos reais e imaginários, perseguindo medos que frequentemente ela mesma produz. Por outro lado, a prática médica, mesmo em sua autonomia científica, não pode deixar de levar em consideração condições relativas aos contextos nos quais opera. Por exemplo, as consequências econômicas e políticas que as medidas sugeridas determinam. Isso explica de alguma forma a surpreendente diversidade de opiniões entre os maiores virologistas italianos sobre a natureza e os possíveis resultados do coronavírus.

O terceiro sintoma, talvez ainda mais inquietante, da trama entre política e vida biológica é dado pelo deslocamento dos procedimentos democráticos comuns rumo a disposições de caráter emergencial. A decretação da urgência tem uma longa história. Em sua base está a ideia que em condições de risco elevado, mais do que a vontade do legislador, prevalece o estado de necessidade. Se, por exemplo, um terremoto devastasse um território, se determinaria um estado de urgência que poderia facilmente virar um estado de exceção. É o que está acontecendo nesses dias, com as várias medidas aprovadas pelo governo central e pelo governo dos estados, com o risco de uma indevida sobreposição entre os dois poderes. Tal impulso rumo ao estado de exceção é muito mais inquietante porque tende a homologar os procedimentos políticos dos Estados democráticos a dos Estados autoritários, como a China. Com a advertência que, nesse terreno, os Estados autoritários, pela própria natureza de seu tipo de poder, estarão sempre mais na frente que os democráticos. 

Trad. Patricia Peterle

*Repubblica, 28/02/2020
https://rep.repubblica.it/pwa/commento/2020/02/28/news/i_partiti_e_il_virus_la_biopolitica_al_potere-249847971/

como citar: ESPOSITO, Roberto.  Os partidos e o vírus - a biopolítica no poder. Trad. Patricia Petere. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.4, abril. 2020.Disponível em

https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209893