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Entre prosa e poesia: o experimentalismo de Elio Pagliarani, por Agnes Ghisi e Helena Bressan Carminati
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Agnes Ghisi
elio pagliarani
Helena Bressan Carminati
em
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Cartaz do filme baseado na obra de Pagliarani |
Durante as décadas de 1950 e 1960, período do chamado "boom econômico" italiano, acontece, no país, a passagem de uma sociedade baseada economicamente em um sistema agrícola para uma sociedade industrial e urbana (TESTA, 2016). Com o auxílio recebido pelo Plano Marshall, a Itália pôde pensar na reconstrução de suas cidades e se desenvolver em vários setores, especialmente nas esferas comerciais e industriais, visando (re)estabelecer-se a partir dos rastros deixados pela Guerra. Em consequência dessas transformações socioeconômicas, que estavam intimamente ligadas à vida moderna, e da difusão da língua standard com os meios de comunicação de massa, o campo cultural não pôde ficar alheio. A produção literária passa por questionamentos e é repensada, com outros instrumentos e formas, em que o uso e a relação com a língua, bem como, com a nova realidade estabelecida ganham novas atribuições.
Nesse momento, com o surgimento das indústrias e da produção em massa, forma-se também uma nova classe social, a classe trabalhadora, habitante das periferias dos grandes centros econômicos em desenvolvimento. O ritmo da vida muda e, com isso, a relação com o tempo é abalada. Essas mudanças vêm refletidas na literatura da época, como por exemplo, na produção poética, na qual da produção lírica, de tom elevado e uma constante centralidade do “Eu”, passa-se para uma poesia outra, marcada por uma linguagem mais acessível, com uso de vocábulos antes nunca usados, e que se dá pela aproximação a outras manifestações artísticas, como a narrativa e a dramaturgia, descentralizando a figura do “Eu” -- agora “eu”(s).
Elio Pagliarani (1927-2012) escreve La Ragazza Carla, objeto de estudo deste texto, nesse zeitgeist, entre 1954 e 1957, anos que sucederam o imediato pós-guerra e que foram marcados pela urbanização e industrialização desenfreada. A literatura desse período, chamada de vanguarda, traçava “caminhos e percursos diferentes, mas que apresentavam um denominador em comum: a ideia de uma literatura que deveria focar mais na linguagem e nas formas de expressão, do que na tentativa de “representar” ou “simular” a “realidade” por meio do discurso literário” (PETERLE, 2012, p. 115). É, então, uma literatura experimental.
La Ragazza, segue então esta corrente, entrelaçando prosa e poesia com aspectos dramáticos, e é considerada a mais marcante ruptura com o pós-hermetismo e o neorrealismo, além de ter marcado o início do movimento neo-vanguardista, que se desenvolve nos anos 1960 na Itália. O poema narra a história de Carla Dondi, jovem de 17 anos que mora na periferia com a família e trabalha como datilógrafa* na cidade de Milão, numa empresa “à sombra do Duomo”. O poema trata, dentre outros, da relação de Carla com a cidade, e por consequência, com a sociedade dos anos '50 na Itália. Além da jovem, a narrativa apresenta outras personagens que interagem entre si, apresentando interposte persone, bem como, "um narrador e um plot bem definido" (ZUBLENA in GIOVANUZZI, 2003, página 60).
Capa do livro |
O caos social desse período é reforçado pela linguagem de Pagliarani: versos quebrados, sintaxe fragmentada e algumas interações que o texto estabelece com a página. O autor se distancia dos cânones e da poesia erudita para se ater a pequenos detalhes do cotidiano, como: "sembra a Carla di credere, e sta attenta a non muoversi / ché il sonno di sua madre è così lieve nel divano accanto / - ma dormirà davvero, con Angelo e Nerina / che fanno cigolare il vecchio letto / della mamma!" ("a Carla lhe parece crer, e está atenta para não se mexer / que o sono de sua mãe é tão leve no sofá ao lado / - mas estará mesmo dormindo, com Angelo e Nerina / que fazem ranger a velha cama / da mãe!"). A tradição poética italiana do final do século XIX e início do XX não só não abordava temas como esses, como sempre fez uso de uma linguagem mais rebuscada.
A obra de Pagliarani, por sua vez, faz uso de uma linguagem cotidiana, com marcas da oralidade que percorrem todo o poema, e algumas expressões que inserem o leitor na rotina de Carla e da classe proletária da época, fazendo referência à maneira com que se expressavam, criando, com isso, um quadro de seu estilo de vida. Além disso, essa linguagem segue o ritmo da industrialização e da mecanização da vida, como o movimento das mãos de Carla em sua função de datilógrafa. Um ritmo, então, também mecanizado e marcado pela ausência de pontuação e pela sintaxe fragmentada, isto é, pela ausência de sentido, como em "Il ponte sta lì buono e sotto passano / treni carri vagoni frenatori e mandrie dei macelli / e sopra passa il tram, la filovia di fianco, la gente che cammina / i camion della frutta di Romagna" ("a ponte está ali firme e embaixo passam / trens carros vagões frenadores e rebanhos dos açougues / e em cima passa o bonde, a linha ao lado, as pessoas que caminham / o caminhão de Frutas da Romagna"). Nesse trecho podemos observar a evocação de imagens cotidianas da vida de Carla e elementos próprios desse período, como trens e bondinhos.
Ainda, dentro do contexto do cotidiano de Carla, Pagliarani apresenta, em alguns trechos, a linguagem empresarial, marcada por forte presença da língua inglesa, ressaltando, assim, como a intervenção norte-americana invade os espaços de desenvolvimento sócio-econômico da sociedade italiana, portanto, também de sua cultura. Observemos: "È dalla fine estate che va a scuola / Guida tecnica per l’uso razionale / della macchina / la serale / di faccia alla Bocconi, ma già più / Metodo principe / per l’apprendimento / della dattilografia con tutte dieci / le dita" ("Desde o fim do verão vai à escola / Guia técnica para uso racional / da máquina / à noite / em frente à Bocconi, mas ainda mais / Método príncipe / para a aprendizagem / da datilografia com todos os dez / dedos"), e "A third world war / FONDAMENTO DEL DIRITTO DELLE GENTI, L’ISTITUTO / DELLA GUERRA È ANTICO QUANTO GLI UOMINI: A DIRIMERE / LE CONTROVERSIE FRA GLI STATI, SIA PURE COME EXTREMA RATIO" ("A third world war / FUNDAMENTO DO DIREITO CIVIL, O INSTITUTO / DA GUERRA É TÃO ANTIGO QUANTO OS HOMENS: PARA RESOLVER / AS CONTROVÉRSIAS ENTRE OS ESTADOS, EMBORA COMO EXTREMA RATIO"). Nesse trecho, temos diversos elementos sendo trabalhados ao mesmo tempo, como no caos das fábricas: a interação com a página, a constante quebra em versos que causa um ritmo mais veloz, a tipografia (caixa alta, itálico), as linguagens empresarial e narrativa, bem como, o uso da língua inglesa.
Por fim, para retomar a questão do zeitgeist e de Carla como símbolo de toda uma geração que se vê privada de um futuro concreto, marcada pela constante alienação que o estilo de vida causava, evidenciamos um trecho representativo: "Carla, / sensibile scontrosa impreparata / si perde e tira avanti, senza dire / una volta mi piace o non lo voglio / con pochi paradigmi non compresi / tali, o inaccettati; desideri / precisi da chirarirsi non le avanzano / a fine mese" (Carla, / sensível ranzinza despreparada / se perde e continua andando, sem dizer / alguma vez eu gosto ou não quero / com poucos paradigmas inclusos / tais, ou não aceitados, desejos / que precisam se esclarecer não duram nela / até o fim do mês"). Essa juventude vê suas aspirações sumirem em meio ao caos da vida urbana capitalista e industrial; o desabrochar de Carla é lento e privado de consciência, visto que é tomada por uma apatia constante, que não lhe permite perceber o que acontece a seu redor e sequer consigo mesma. Por isso, seu amadurecimento acontece quase de maneira automática, mecânica, como já comentado. Apesar do uso de interposte persone, Pagliarani faz com que Carla se expresse em poucos momentos do poema, o que pode ser lido como sua pouca consciência de mundo, sua extrema passividade ao que lhe é imposto.
A obra de Pagliarani é fruto de um período contraditório, de uma realidade complexa que se deixa perceber, hoje, através de experimentações poéticas, de língua e de forma, que se mesclam à prosa e ao drama, e através da polifonia coletiva da geração do boom econômico. Os artifícios linguísticos empregados por Pagliarani representam uma abertura da própria literatura, e esse poemetto marca não só a ruptura com a tradição poética, como também, o início do período de experimentação neo-vanguardista. A obra não foi traduzida no Brasil e traduzi-la seria uma tarefa árdua, justamente por essas questões experimentais, e que exigiria grande esforço e criatividade. O filme homônimo, de Alberto Saibene (2015), também não chegou às lojas brasileiras. Entretanto, há, na rede, especialmente no YouTube, material interessante para conhecer um pouco mais da obra. A comunicação que fizemos em 2017 pode ser assistida no nosso canal, aqui.
A obra de Pagliarani é fruto de um período contraditório, de uma realidade complexa que se deixa perceber, hoje, através de experimentações poéticas, de língua e de forma, que se mesclam à prosa e ao drama, e através da polifonia coletiva da geração do boom econômico. Os artifícios linguísticos empregados por Pagliarani representam uma abertura da própria literatura, e esse poemetto marca não só a ruptura com a tradição poética, como também, o início do período de experimentação neo-vanguardista. A obra não foi traduzida no Brasil e traduzi-la seria uma tarefa árdua, justamente por essas questões experimentais, e que exigiria grande esforço e criatividade. O filme homônimo, de Alberto Saibene (2015), também não chegou às lojas brasileiras. Entretanto, há, na rede, especialmente no YouTube, material interessante para conhecer um pouco mais da obra. A comunicação que fizemos em 2017 pode ser assistida no nosso canal, aqui.
*Uma relação interessante que se pode traçar é entre a personagem de Pagliarani e a de Lispector, Macabéa, que também era datilógrafa. Ademais, a obra de Clarice pode ser lida como fruto do mesmo zeitgeist de forte industrialização e urbanização que o Brasil viveu nos anos 1970.
**Aqui, podemos criar uma ponte temática entre a obra de Pagliarani e os filmes de Antonioni (mais especificamente, a trilogia da incomunicabilidade: L'Avventura (1960), La Notte (1961) e L'Eclisse (1962)), que também trazem personagens alienados e dessensibilizados pela vida urbana, mas de caráter burguês.
REFERÊNCIAS
GIOVANNUZZI, Stefano. Gli anni ‘60 e ‘70 in Italia: due decenni di ricerca poetica. Gênova: Edizioni San Marco dei Giustiani, 2003.
PAGLIARANI, Elio. La ragazza Carla. Milão: Il Saggiatore, 2016.
PETERLE, Patrícia. “O grupo 63 e a “desordem cultural”.” In: Literatura de Vanguarda e Política - O Século Revisitado. Niterói: Editora Comunità, 2012.
TESTA, Enrico. Cinzas do século XX: três lições sobre a poesia italiana. 1ª Edição - Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
como citar: GHISI, Agnes. CARMINATI, Helena Bressan. Entre prosa e poesia: o
experimentalismo de Elio Pagliarani. In Literatura Italiana Traduzida,
v.1., n.2, fev. 2020.Disponível em
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209952 |
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