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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Agnes Ghisi
Alda Merini
poesia contemporânea
em
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Alda Merini (Milão, 21 de Março, 1931 - Milão, 1 de Novembro, 2009) |
Pensar o "fazer a poesia" parece ser atividade recorrente e inevitável para alguns poetas e críticos. A partir das reflexões que fazem do que é o poético, encontramos nuances de um pensamento que se elabora enquanto se dá a escritura e a leitura - o fazer -, que resulta em versos (metapoema), textos críticos, ou resenhas de outras obras. Neste texto, proponho uma interpretação de Colori, de Alda Merini, com o viés auto-reflexivo que o exercício poético pode trazer. Ainda que um poema primaveril, elaborado em sua juventude, ele nos traz conceitos filosóficos, como o "devir", conceito que perpassa a história da filosofia, de Heráclito a Deleuze. Para maior acessibilidade, proponho também uma tradução do poema para o português, visto que a autora ainda não foi traduzida no Brasil.
Prigent, em Para que poetas ainda? (2017), considera a poesia uma perturbação, uma inquietação do poeta - em Colori podemos observar certo desassossego causado pelas cores que invadem os olhos do "eu". Sendo a poesia uma forma de interpretar o mundo e de expressão uma visão particular, ela propõe novas
leituras, novos pontos de vista: é uma iconoclastia incorporada a uma
chance dada ao leitor. Então, parte de fazer a poesia é
apresentar um pouco de si ao outro, expor-se de certa maneira.
Talvez por isso seja tão difícil separar a obra do artista, deixar de
lado a biografia e ver o resultado pelo que ele é, isoladamente, ainda que o texto fale por si só. Quando
Merini escreveu Colori em 1949, segundo a data que consta na obra
organizada por Maria Corti, a "miúda de Milão" tinha meros 18 anos e estava inserida
(e bem recebida) na cena literária milanesa há poucos anos. Então, apesar de jovem, Merini já se coloca como uma força poética em constante movimento e que nem mesmo o manicômio seria capaz de calar.
Nesse poema, Merini nos traz um "eu" em primeira pessoa (s'io riposo) que nos imerge nesse repouso, que, por sua vez, se torna quase um delírio: os olhos que se fecham e vão rumo à escuridão tranquila (ao espaço imperturbado) são penetrados por cores que não levam a "fugas ou fantasias", mas a um êxtase, uma contemplação. Entretanto, a transcendência não se dá, o eu é jogado de volta ao seu aspecto terreno, limitado e limitante. A perturbação que a poesia causa, nos versos de Merini, é uma agitação suave, reflexos desse espírito jovem, primaveril. As cores, para esse "eu", são um desejo inquieto, que não se resolve, que é vital; são uma explicação muito humilde e soberana aos questionamentos que o "eu" naturalmente se faz. Isto é, a poesia, esse movimento -- as cores que penetram a escuridão, as perguntas que invadem o sossego -- é o que leva o "eu" a se expressar, a escrever, a refletir sobre suas inquietações.
Nesse poema, Merini nos traz um "eu" em primeira pessoa (s'io riposo) que nos imerge nesse repouso, que, por sua vez, se torna quase um delírio: os olhos que se fecham e vão rumo à escuridão tranquila (ao espaço imperturbado) são penetrados por cores que não levam a "fugas ou fantasias", mas a um êxtase, uma contemplação. Entretanto, a transcendência não se dá, o eu é jogado de volta ao seu aspecto terreno, limitado e limitante. A perturbação que a poesia causa, nos versos de Merini, é uma agitação suave, reflexos desse espírito jovem, primaveril. As cores, para esse "eu", são um desejo inquieto, que não se resolve, que é vital; são uma explicação muito humilde e soberana aos questionamentos que o "eu" naturalmente se faz. Isto é, a poesia, esse movimento -- as cores que penetram a escuridão, as perguntas que invadem o sossego -- é o que leva o "eu" a se expressar, a escrever, a refletir sobre suas inquietações.
Pensemos ainda na luz que penetra o prisma. É sua decomposição, seu esmiuçar-se que interessa ao "eu" quando diz "a luz me impele, mas a cor / me atenua": o que lhe é dado puramente, não lhe basta, é preciso esmigalhar e decompor para então encontrar alguma razão; algo que, por fim, é intangível, mas que não o "eu" não deixa nunca de buscar. Os "por quês" nem sempre encontram os "porques" adequados ou satisfatórios. Eis o limite da condição humana: suspeitar da plenitude sem jamais alcançá-la, reconhecer-se no estranho, familiarizar-se no estrangeiro, experimentar a transformação sem nunca deixar de ser o que se é - terreno. É a contínua perturbação, enquanto se está vivo, de se propor a refletir.
Para Nancy (Fazer, a poesia), a poesia é uma eterna construção de sentido (de acesso de sentido, além de acesso ao sentido -- e sempre por vias difíceis), é, enfim, um "devir". Mais que isso, para o filósofo, poesia é o próprio fazer, é o exercício de reflexão em si, essa busca contínua por algo inalcançável, movimento que não se esgota. Para tanto, cada leitura que se propõe de um autor é apenas uma entre tantas - um feixe de luz do prisma. Como o poeta que escreve e busca apresentar algo ao outro, ao mundo, o leitor interpreta e propõe, de volta, uma sua visão de mundo também.
Para Nancy (Fazer, a poesia), a poesia é uma eterna construção de sentido (de acesso de sentido, além de acesso ao sentido -- e sempre por vias difíceis), é, enfim, um "devir". Mais que isso, para o filósofo, poesia é o próprio fazer, é o exercício de reflexão em si, essa busca contínua por algo inalcançável, movimento que não se esgota. Para tanto, cada leitura que se propõe de um autor é apenas uma entre tantas - um feixe de luz do prisma. Como o poeta que escreve e busca apresentar algo ao outro, ao mundo, o leitor interpreta e propõe, de volta, uma sua visão de mundo também.
Colori
S'io riposo, nel lento divenire
degli occhi, mi soffermo
all'eccesso beato dei colori;
qui non temo più fughe o fantasie
ma la "penetrazione" mi abolisce.
Amo i colori, tempi di un anelito
inquieto, irresolvibile, vitale,
spiegazioni umilissima e sovrana
dei cosmici "perché" del mio respiro.
La luce mi sospinge ma il colore
m'attenua, predicando l'impotenza
del corpo, bello ma ancor troppo terrestre.
Ed è per il colore cui mi dono
s'io mi ricordo a tratti del mio aspetto
e quindi del mio limite.
{22.Dic.1949}
[De La Presenza di Orfeo, 1953, em Fiore di Poesie, curadoria de Maria Corti, Einaudi, 2014]
Cores
Se eu repouso, no lento devir
dos olhos, me detenho
ao excesso feliz das cores:
aqui não temo mais fugas ou fantasias
mas a "penetração" me anula.
Amo as cores, tempos de um desejo
inquieto, irresolúvel, vital,
explicação humilde e soberana
dos cósmicos "por quês" do meu fôlego.
A luz me impele, mas a cor
me atenua, pregando a impotência
do corpo, belo mas ainda tão terreno.
E é pela cor a que me dou
que de repente me lembro do meu aspecto
e, assim, do meu limite.
[tradução Agnes Ghisi, revisado por Elena Santi, 2018]
"Tudo flui e nada permanece, tudo dá forma e nada permanece fixo." Esse é conceito de "devir"[1] em Heráclito, que aparece no primeiro verso desse poema. E assim é a poesia, a cada leitura algo novo, uma outra tonalidade, nunca a mesma mas sem nunca deixar de estar em movimento, em transformação. O encontro entre poeta e poesia retoma também o princípio do fogo como princípio do "devir": o fogo é eternamente vivo e tudo destrói, ao mesmo tempo que tudo alimenta; a poesia, por sua vez, é o que lança a poeta ao mundo dos cósmicos por quês, mas é também intangível – não dá respostas – e, por isso, traz a poeta de volta ao seu estado limitante. Entretanto – as ideias se entrelaçam –, a poesia sai da poeta, enquanto a lança para esse espaço, juntas formam um lógos (também de Heráclito: "uma instância reunidora, sempre constante, que abriga o conflito, a convergência e a divergência" (BOCAYUVA, 2010)).
São versos que tendem à narrativa. Com isso, Merini já se insere numa cena literária que está experimentando os limites da poesia e da linguagem poética, movimentos que ganharão mais força nos anos 1960[2]. Apesar de o "eu" não ser o centro desses versos (visto que o objeto poético aqui é a poesia (que, como já dito, sai da poeta e é, com ela, um lógos)), ele não chega a ser fragmentado nem faz uso de outras figuras - seus olhos são nosso único ponto de vista. Entretanto, segundo o mesmo Caproni que sugere o uso de interposte persone como maneira de evitar a egorrea epidemica (tendência a falar sempre de si mesmo):
explicação humilde e soberana
dos cósmicos "por quês" do meu fôlego.
A luz me impele, mas a cor
me atenua, pregando a impotência
do corpo, belo mas ainda tão terreno.
E é pela cor a que me dou
que de repente me lembro do meu aspecto
e, assim, do meu limite.
[tradução Agnes Ghisi, revisado por Elena Santi, 2018]
"Tudo flui e nada permanece, tudo dá forma e nada permanece fixo." Esse é conceito de "devir"[1] em Heráclito, que aparece no primeiro verso desse poema. E assim é a poesia, a cada leitura algo novo, uma outra tonalidade, nunca a mesma mas sem nunca deixar de estar em movimento, em transformação. O encontro entre poeta e poesia retoma também o princípio do fogo como princípio do "devir": o fogo é eternamente vivo e tudo destrói, ao mesmo tempo que tudo alimenta; a poesia, por sua vez, é o que lança a poeta ao mundo dos cósmicos por quês, mas é também intangível – não dá respostas – e, por isso, traz a poeta de volta ao seu estado limitante. Entretanto – as ideias se entrelaçam –, a poesia sai da poeta, enquanto a lança para esse espaço, juntas formam um lógos (também de Heráclito: "uma instância reunidora, sempre constante, que abriga o conflito, a convergência e a divergência" (BOCAYUVA, 2010)).
São versos que tendem à narrativa. Com isso, Merini já se insere numa cena literária que está experimentando os limites da poesia e da linguagem poética, movimentos que ganharão mais força nos anos 1960[2]. Apesar de o "eu" não ser o centro desses versos (visto que o objeto poético aqui é a poesia (que, como já dito, sai da poeta e é, com ela, um lógos)), ele não chega a ser fragmentado nem faz uso de outras figuras - seus olhos são nosso único ponto de vista. Entretanto, segundo o mesmo Caproni que sugere o uso de interposte persone como maneira de evitar a egorrea epidemica (tendência a falar sempre de si mesmo):
“não se trata, em poesia, de encontrar vocábulos novos, mas sim de saber pronunciar inclusive os vocábulos mais comuns com sabor de novidade, como se fossem pronunciados pela primeira vez, graças àqueles significados não literais ou extra-literais que cada poeta verdadeiro sabe acrescentar, cada um a seu modo, ao normal sentido codificado de uma palavra.” (CAPRONI, 2018, p. 96)
O conceito de "devir", que perpassa a história da filosofia, aparece nesses versos com sabor de novidade e juventude. Os poemas da Merini podem ser lidos para além de seu significado literal, porque eles nos dão essa abertura de leitura, ainda que partamos desse "eu" que a poesia italiana vai tanto tentar evitar na década de 1960. Merini, colocando-se em seus poemas, é uma desobediente. Com isso, concorda com a noção de poesia que o mesmo Caproni elabora nos anos 1940: “Porque o gosto é sujeição, talvez inconsciente, a preexistentes modelos (definitivamente é imitação), enquanto o próprio ofício da poesia é sempre desobedecer esses modelos para impor novos, que por sua vez outros deverão desobedecer.” (idem, p. 97). Assim, já nesses versos primaveris ela não se sujeita, mas se impõe e busca sua própria voz, seu lógos com a poesia - e já dialoga com as ideias que a crítica francesa Hélène Cixous vai elaborar em O riso da Medusa nos anos 1970.
O/a leitor/a notará, ainda, que há duas palavras em destaque: penetração e por quês. Com isso, o poema evidencia o caráter perturbatório da contemplação (vale ressaltar, aqui, que o uso de oxímoros - evidentes ou subentendidos - será sempre mais presente na poética meriniana), e a mente que busca descanso encontra apenas inquietação. Esta vibra mais forte com a agitação da insatisfação da plenitude nunca alcançada, da não transcendência. Fazer a poesia é, então, extravasar esse movimento interno e permitir ao leitor uma partilha do sensível, como propõe Rancière (texto homônimo); é atravessar o prisma e decompor-se em novos feixes, novas tonalidades.
Se o limite está no ser terreno e não sublime, divino - onde está e o que é a poesia, de onde vêm as cores que penetram e perturbam alegremente a tranquilidade do poeta - é o próprio limite que provoca o fazer a poesia. Como nós leitores, o poeta não encontra a plenitude, há sempre algo que escapa: um espectro de cor invisível a nossos olhos mortais. Para Nancy, "a poesia não coincide consigo mesma" isto porque "é, por essência, mais e outra coisa que a própria poesia", portanto, sendo também o que não é - ela mesma um oxímoro, uma contradição, um movimento -, a poesia não nos permite acesso total, nos deixa, em algum nível, no espaço do estranhamento, da perturbação. Então, por mais que esse "eu" (e nós) se doe às cores, sua condição física de ser tangível (e não algo como uma radiação impalpável, ainda que perceptível) o limita e parte do acesso lhe é negado. Assim, o "eu" reflete, decompõe-se, perturba-se - mas não foge. A poesia é, enfim, a força motora da criação (a perturbação) e a criatura, que se renova a cada leitura, transformando-se sempre. Sendo ela parte do poeta, acaba por transformá-lo também.
Os textos discutidos que incitaram esta leitura foram:
O/a leitor/a notará, ainda, que há duas palavras em destaque: penetração e por quês. Com isso, o poema evidencia o caráter perturbatório da contemplação (vale ressaltar, aqui, que o uso de oxímoros - evidentes ou subentendidos - será sempre mais presente na poética meriniana), e a mente que busca descanso encontra apenas inquietação. Esta vibra mais forte com a agitação da insatisfação da plenitude nunca alcançada, da não transcendência. Fazer a poesia é, então, extravasar esse movimento interno e permitir ao leitor uma partilha do sensível, como propõe Rancière (texto homônimo); é atravessar o prisma e decompor-se em novos feixes, novas tonalidades.
Se o limite está no ser terreno e não sublime, divino - onde está e o que é a poesia, de onde vêm as cores que penetram e perturbam alegremente a tranquilidade do poeta - é o próprio limite que provoca o fazer a poesia. Como nós leitores, o poeta não encontra a plenitude, há sempre algo que escapa: um espectro de cor invisível a nossos olhos mortais. Para Nancy, "a poesia não coincide consigo mesma" isto porque "é, por essência, mais e outra coisa que a própria poesia", portanto, sendo também o que não é - ela mesma um oxímoro, uma contradição, um movimento -, a poesia não nos permite acesso total, nos deixa, em algum nível, no espaço do estranhamento, da perturbação. Então, por mais que esse "eu" (e nós) se doe às cores, sua condição física de ser tangível (e não algo como uma radiação impalpável, ainda que perceptível) o limita e parte do acesso lhe é negado. Assim, o "eu" reflete, decompõe-se, perturba-se - mas não foge. A poesia é, enfim, a força motora da criação (a perturbação) e a criatura, que se renova a cada leitura, transformando-se sempre. Sendo ela parte do poeta, acaba por transformá-lo também.
Livro com dedicatória |
Os textos discutidos que incitaram esta leitura foram:
BOCAYUVA, Izabela. Parmênides e Heráclito: diferença e sintonia.
CAPRONI, Giorgio. A Porta Morgana: ensaios sobre poesia e tradução. Organização e tradução de Patricia Peterle, com prefácio de Enrico Testa. 1a Edição, São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2017.
NANCY, Jean-Luc. "Fazer, a poesia". In: Demanda: literatura e filosofia (EdUFSC e Argos, 2016)
PRIGENT, Christian. "Para que poetas ainda?". In: Para que poetas ainda? (Cultura e Barbárie, 2017)
CAPRONI, Giorgio. A Porta Morgana: ensaios sobre poesia e tradução. Organização e tradução de Patricia Peterle, com prefácio de Enrico Testa. 1a Edição, São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2017.
NANCY, Jean-Luc. "Fazer, a poesia". In: Demanda: literatura e filosofia (EdUFSC e Argos, 2016)
PRIGENT, Christian. "Para que poetas ainda?". In: Para que poetas ainda? (Cultura e Barbárie, 2017)
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política (Editora 34, 2005)
[1] Conceito que perpassa a história da filosofia, alcançando até filósofos mais recentes, como Gilles Deleuze.
[2] Talvez o mais característico poema experimental dos anos 1960 seja La Ragazza Carla, de Elio Pagliarani (Rimini, 1927 – Roma, 2012), publicado em 1963. A obra é tida como um poema narrado ou um romance em versos, e é símbolo da geração do boom econômico italiano.
[1] Conceito que perpassa a história da filosofia, alcançando até filósofos mais recentes, como Gilles Deleuze.
[2] Talvez o mais característico poema experimental dos anos 1960 seja La Ragazza Carla, de Elio Pagliarani (Rimini, 1927 – Roma, 2012), publicado em 1963. A obra é tida como um poema narrado ou um romance em versos, e é símbolo da geração do boom econômico italiano.
como citar:
GHISI, Agnes. A poesia: leitura de um poema de Alda Merini. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.3, março. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209917
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