La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

O primeiro testemunho de Primo Levi, por Aislan Camargo Maciera



O papel de Primo Levi (1919 -1987) na cultura italiana do período pós Segunda Guerra é significativo: Levi é testemunha privilegiada de uma das maiores tragédias do século XX, a Shoah, e, ao mesmo tempo, um dos principais escritores da literatura italiana do Novecento. O início de sua carreira como escritor está intimamente ligado à sua experiência como prisioneiro dos nazistas. A deportação para um dos campos de concentração de Auschwitz foi responsável por modificar, definitivamente, todo o panorama de sua vida, ao mesmo tempo em que seria responsável também por transformá-lo em um dos maiores representantes da narrativa italiana contemporânea.
No Brasil, a tradução de sua primeira obra, Se questo è un uomo, publicada na Itália, originalmente, em 1947, só é lançada em 1988, com o título É isto um homem?, pela editora Rocco. De fato, Primo Levi era pouquíssimo conhecido por aqui até a década de 80, período no qual já eram numerosos autores e obras sobre o nazi-fascismo, a Segunda Guerra e a Shoah. Mas por que um escritor tão reconhecido no âmbito europeu, ligado diretamente a um dos maiores traumas da história humana, demorou mais de quarenta anos para ser traduzido e apresentado ao leitor brasileiro?
A tardia recepção de Primo Levi no Brasil é, de certo modo, consequência direta de sua complexa e, por que não dizer, também tardia recepção na Itália. A sua obra de estreia – nascida da necessidade quase vital de contar a sua experiência no Lager, e dos relatos orais que fazia desde que fora libertado do campo – teve um difícil itinerário até chegar ao grande público e receber atenção por parte da crítica.
Em diversas entrevistas e declarações a respeito de sua estreia na literatura, Levi destacava que muitos editores se recusaram a publicar seus escritos. Os relatos de um químico sobre a própria deportação para os campos de concentração nazistas pareciam não chamar a atenção do mercado editorial, já inundado por muitas narrativas de sobreviventes. Vários testemunhos se multiplicavam. Alguns nasciam das mãos de literatos consagrados pela crítica e, por isso, acabavam tomando a frente na literatura de testemunho sobre o Lager. É o caso de Ernst Wiechert, professor e escritor alemão, muito lido nos anos 30, e famoso pela oposição radical ao nazismo. O posicionamento radicalmente contra o regime de Hitler levou Wiechert à deportação para o campo de Buchenwald, onde permaneceu por quatro meses. O fruto dessa experiência é um livro de memórias sobre sua prisão, Der totenwald, de 1946. Outros vinham de homens novos, cuja experiência no campo fez com que pegassem a pena somente para dizer aquilo viram, sentiram, viveram. Obviamente, o químico Primo Levi representava um exemplo desse segundo grupo e, em tal contexto, apenas mais um, dentre tantos, que se propuseram a falar da Shoah.
Das refutações que Levi sofreu por parte dos editores, o caso mais famoso e mais marcante, por tudo o que o envolvia, foi o da Editora Einaudi. As principais discussões da crítica em torno desse argumento estão relacionadas à pessoa que teria sido a responsável por tal refutação: a escritora Natalia Ginzburg. Natalia, também de origem judaica, viúva de Leone Ginzburg (antifascista, membro da Resistência, torturado e morto em Roma pelos alemães, em 1944), teria sido a editora responsável por recusar os primeiros escritos de Primo Levi. A autora sempre declarou que a recusa não partiu exclusivamente dela, mas sim de uma comissão de editores que não achavam aqueles escritos adequados para aquele momento. Dentre tais editores, estaria também o escritor antifascista Cesare Pavese.
Após a recusa da Einaudi, Se questo è un uomo seria publicado em 1947, pela pequena editora De Silva, de Franco Antonicelli, outro grande intelectual da luta contra o fascismo. A pequena parcela da crítica que se preocupou com a obra no período de seu lançamento, e nela reconheceu algum valor – temos apenas algumas poucas resenhas publicadas em jornais da época –, pareceu enxergar naquele químico, que narrou a sua experiência durante a deportação, um potencial escritor.
O escritor Lorenzo Gigli, por exemplo, em “Erano uomini”, artigo publicado pelo jornal Gazzetta del Popolo, em dezembro de 1947, fala da abordagem científica da realidade. Ao comentar a obra de Levi, pontuando que muito já se tinha escrito a respeito dos crimes cometidos pelos nazistas nos campos de extermínio, o crítico diz que nenhum relato o havia chamado a atenção como “o diário de Primo Levi, onde a ‘demolição’ científica do indivíduo é narrada em termos de fria crônica, sem a mínima concessão”. Gigli concebe o “diário” como uma exposição do “inferno sobre a Terra, não tanto pelos episódios aos quais se refere, mas sim pelos significados e perspectivas que eles representam”. Em suma, “o diário de Levi” é escrito com um intuito diferente da acusação e da vingança. É mais uma contribuição “ao estudo da condição humana, que tem intenção de relatar a experiência biológica e social: a luta feroz para sobreviver, a seleção dos indivíduos, os afogados e os sobreviventes”.
            As primeiras críticas, apesar de pouco numerosas e, muitas vezes, pouco entusiasmadas, já conseguiam depreender de sua obra as características que marcariam a sua literatura: a escrita consciente e leve; o tom de serenidade; o desespero, mesmo que existente, contido, por vezes travestido de irônico riso amargo. Em seus primeiros trabalhos como escritor, Primo Levi ficou mais conhecido como um químico que escrevia e se aventurava pelo campo da literatura, por ser uma testemunha de Auschwitz.
            Das críticas iniciais, sem dúvida, a que merece mais destaque é aquela feita Italo Calvino, publicada pelo jornal LÚnità, em maio de 1948. Em artigo intitulado “Un libro sui campi dela morte: Se questo è un uomo”, Calvino tece elogios à capacidade narrativa de Levi, capaz de narrar o inenarrável, comunicar o incomunicável, aquilo que “passa todos os limites do dizível e do humano”:

(...) Primo Levi ci ha dato su questo argomento [i campi d’annientamento] un magnifico libro che non è solo una testimonianza efficacissima, ma ha delle pagine di autentica potenza narrativa, che rimarranno nella nostra memoria tra le più belle della letteratura sulla Seconda guerra mondiale.
(...) Levi non si limita a lasciare parlare i fatti, li commenta senza forzar mai la voce e pure senza accenti di studiata fredezza. Studia con pacatezza accorata cosa resta di umano in chi è sottoposto a una prova che di umano non ha nulla.

Calvino observa a grande capacidade – e a grande serenidade – narrativa do autor, observador quase imparcial, estudioso da natureza e da condição humana naquele ambiente de exceção, marcado pelo terror e pelo rebaixamento do homem. Levi não deixa transparecer, em sua obra, pelo menos, nenhum exagero sentimentalista a respeito do que testemunhou; ao contrário, seus olhos de cientista lhe dão a capacidade de suspender juízos e julgamentos, fator que será marca registrada de toda sua narrativa.
A grande experiência da vida de Levi, antes narrada oralmente aos amigos nos círculos sociais ou nos passeios ao longo do rio Pó, tem a possibilidade de chegar ao grande público, pela primeira vez, dois anos depois de sua volta para casa. Mas o testemunho parece ter tido mais um efeito de curiosidade do que propriamente de alarme ou, para melhor dizer, reflexão sobre aquele evento e a própria condição humana. A narrativa é nutrida pelos fatos e personagens nascidos da observação e da memória do narrador, os quais se mesclam às suas reflexões. O “diário da deportação” – maneira como a obra foi tratada durante muito tempo – não atinge o sucesso editorial: com uma tiragem de 2500 exemplares – foram vendidas em torno de 1500 cópias –, não foi sucesso de público, e não suscitou o interesse da grande crítica, restringindo-se àqueles que se interessavam pelo assunto da deportação, ou porque o tinham vivido direta ou indiretamente, ou porque eram estudiosos e curiosos.
            Em um segundo momento, porém, a obra começa a atingir um apelo de público, o que a leva a ser publicada pela Einaudi, em 1958. A publicação, porém, encaixa-se na coleção de ensaios da editora, e não na de literatura. Mas, é a partir daí, que a difusão da obra de Primo Levi atinge outro patamar. Mas, mesmo assim, chega tardiamente ao Brasil, somente após a sua morte.
             

           
Primo Levi em Fevereiro de 1948 (Arquivo da família)


Capa da primeira edição pela Editora De Silva

É isto um homem? é uma narrativa dividida em dezoito breves capítulos, contando com menos de duzentas páginas. Em 1976, o autor adiciona um “Apêndice”, no qual responde as perguntas mais recorrentes que surgiam a respeito de sua obra, nos encontros que mantinha com estudantes para narrar a sua experiência.