La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

A crítica militante de Pier Paolo Pasolini, por Gesualdo Maffia






A centralidade do papel da crítica militante no conjunto da obra de Pasolini é, hoje em dia, um dado adquirido entre os seus especialistas, mas não sempre suficientemente valorizado fora do contexto italiano. Os três volumes de ensaios e artigos Passione e ideologia (1960), Empirismo eretico (1972) e Descrizioni di descrizioni (póstumo, 1979), dos quais só o segundo foi traduzido integralmente para o português (de Portugal), são obras decisivas para entender de forma mais complexa o multiforme gênio pasoliniano. 






Pelo estilo, temas, força moral e intelectual, formas, instrumentos de divulgação e discussões suscitados, a crítica de Pasolini se caracteriza como fortemente orientada para a militância, o que primeiramente implica, na minha opinião, em uma imediatez e rapidez de empoderamento e envolvimento nos debates político-culturais contemporâneos. O crítico literário o faz usando o recurso da análise linguística e literária, e sabe que o êxito de seus incitamentos, de suas intervenções escandalosas, pode ser efêmero ou duradouro, representando sempre uma espécie de aposta com muitos riscos e poucas certezas, mas que, no entanto, deve ser levada até o fim.[1]

O conceito de crítica militante aqui considerado é pensado numa acepção que deve obrigatoriamente ser maleável e ampla. Isto porque Pasolini não era especialista nem acadêmico, mas um intelectual que se movia entre antigo e moderno de maneira diferente, herética, às vezes incompreensível para os contemporâneos; seja porque a atividade crítica de Pasolini se encontra em toda a sua produção, aquela propriamente pensada como parte do debate literário, cultural, político, e aquela artística em todas as áreas em que se aventurou (poesia, romance, cinema, teatro, pintura etc.); seja, por fim, porque a concepção de crítica militante na Itália foi e é em parte ainda hoje terreno de conflito entre quem se ocupa dela nos meios de comunicação e informação tradicionais e novos (jornais e revistas, livros especializados ou de divulgação, debates radiofônicos e televisivos, sítios genéricos e temáticos, blogs, podcasts, redes sociais e assim por diante). 

Na tentativa de oferecer uma definição que possa guiar na análise da crítica pasoliniana, parece-me ser útil adotar para os volumes Passione e ideologia e Empirismo eretico a definição mista de obras crítico-ensaístico-poéticas, talvez um pouco redundante e contraditória, mas eficaz. Nestes livros, a prosa pasoliniana é exercitada de maneira diferenciada: temos autênticos estudos eruditos; ensaios teóricos; resenhas de poesia, de narrativa, de estudos críticos; polêmicas em versos. Tudo isto tem alguma coerência, nos a nos 1950, com o que Alfonso Berardinelli chama “poemeto engajado”, isto é, a poesia civil das Cinzas de Gramsci, baseada em “um autobiografismo retoricamente ostensivo”.[2] Enquanto nos anos 1960 a violência ideológica e a “sociologia passional” dão vida a páginas críticas fortemente subjetivas, nas quais Pasolini “não busca mediações objetivas, mas se abandona a humores e ideias sobre destinos do mundo completamente pessoais” e legitimadas pelo fato de ser ele a pronunciá-las: terrorismo também presente na última fase poética.[3]





Enfrentar a prosa crítica pasoliniana significa imergir em um universo autoral no qual entrelaçam-se constantemente gêneros, estilos, humores em relação ao objeto artístico por vezes analisado ou tomado como alvo, que pode ser literário em sentido estrito ou amplo, de modo às vezes críptico, às vezes didascálico, incisivamente, obsessivamente. Podemos acrescentar outros conceitos, outros adjetivos para tentar definir essa prosa, mas tentemos sinteticamente pensá-la a partir da definição tripartida utilizada acima. 


Crítico no momento em que enfrenta, por um lado de modo acadêmico, convencional, tradicional (sem medo de ser desmentido, pois Pasolini soube e quis sê-lo, sendo seus principais mestres diretos e indiretos, inclusive academicamente, sobretudo no início de sua experiência crítica nos anos 1940-50, Carlo Calcaterra, Gianfranco Contini e Roberto Longhi, por exemplo); por outro lado de modo militante (e é uma militância suficientemente forte a ponto de incentivar nele “as muitas ideias brilhantes, as tendências críticas bem desenhadas, os julgamentos eficazes ou geniais”; limitando, porém, “a formação de uma linguagem crítica compacta, de registro seguro, não hesitante, e transmissível”[4]) um tema ou problema da história literária italiana, citando autores e estudiosos em nota (mesmo se frequentemente de maneira não literal), percorrendo a história da crítica, propondo esquemas e conceitos interpretativos de tipo literário, sociológico, antropológico e psicológico com uma maleabilidade e desenvoltura que fizeram mais de um crítico torcer o nariz, depois voltar atrás (como aconteceu com Cesare Segre) diante dos êxitos sucessivos das patrie lettere ou da capacidade de antecipação das ainda imaturas descobertas críticas pasolinianas (a plurivocidade conceitualizada depois por Mikhail Bakhtin identificada por Pasolini em Dante, como uma forma ante litteram de discurso indireto livre).[5]


Pensemos agora na definição de ensaística de Alfonso Berardinelli: a “ensaística [é] o gênero literário em que a situação empírica de quem escreve e a finalidade prática da escrita (finalidade comunicativa, cognitiva, persuasiva, descritiva, polêmica) são os primeiros responsáveis pela organização estilística do texto”.[6] Pasolini é ensaísta pela capacidade de usar livre e criativamente os conceitos e os temas que caem sob a sua lente crítica, e ligá-los à realidade de um debate político-cultural em que, assim que entrou na arena da popularidade intelectual, sempre deu sua opinião. 


E também é poeta nessa tipologia de textos em prosa, pela linguagem usada, as imagens traçadas, a capacidade de perceber o que está por trás, inexplicado ou inexplicável, de outro autor... e de si mesmo, expondo recordações pessoais usadas como exemplos empíricos que ilustram o significado mais profundo de uma racionalíssima reflexão sobre a literatura e sobre o mundo. Aliás, às vezes, parafraseando a afirmação provocatória e paradoxal de Giovanni Raboni, mais poeta que em sua obra poética em sentido estrito.[7] Opinião que se pode compartilhar, se pensarmos em seus últimos livros de poemas (mas não, como faz Raboni, em toda a sua produção em versos) em termos de uma incapacidade de escrever e se exprimir em versos, adquirida ou desejada, e não como vontade de oferecer outro tipo de poesia, uma poesia absorvida pela prosa por causa da urgência antilírica ou alírica do presente.[8] Pasolini, recolhendo o poético em outros autores contemporâneos e anteriores a ele, nos restitui, resgata ou nega o valor deles, enriquecendo-o com sua sensibilidade pessoal. Em muitos desses escritos, o espírito poético que anima toda a obra pasoliniana nunca desaparece completamente. 


Relativamente aos objetos e às finalidades da crítica pasoliniana, grande importância adquirem, sobretudo na crítica dos anos 1950, uma visão e uma interpretação geral do percurso da literatura italiana das origens até o século XX, que Pasolini contribui para complicar e ampliar, nobilitando (ou também apenas justificando literariamente) a existência dos diversos filões das literaturas dialetais e regionais presentes na Itália. 


Pasolini enfrenta essas questões nas costas de dois gigantes: Antonio Gramsci e Gianfranco Contini. 


Antonio Tabucchi, reconstruindo o itinerário literário e intelectual de Pasolini, releva como, diferentemente de “certos movimentos separatistas” mais recentes do panorama político e cultural italiano, ele retira, em parte de Gramsci, “o objetivo de defender as línguas regionais como formas específicas da consciência histórica nacional”.[9] Mais em geral, um estudioso que analisou de maneira sistemática a relação de Pasolini com Gramsci (além da relação com Contini e Carlo Emilio Gadda), ou seja, Franco Ferri, sintetiza o resultado dessa relação em termos de “uma consciência histórico-crítica, integral, do existente (a começar pela função desempenhada pelos intelectuais na específica realidade social, política e cultural da nação)”.[10]


Se por um lado Contini está constantemente presente na crítica pasoliniana dos anos 1950 e 1960 com a aplicação de seu método estilístico, de seus conceitos e as referências mais ou menos explícitas às suas análises linguístico-literárias; do outro também fornece um quadro interpretativo da história literária italiana, que integra a consciência histórico-sociológica de matriz gramsciana, e que incentiva em Pasolini a valorização do dado plurilinguístico dantesco que dá forma à tradição literária paralela (tanto plebeia quanto requintada) ao monolinguismo de Petrarca. 


É fácil identificar em Pasolini o que Alberto Asor Rosa definiu como “o implícito gosto pela história literária, pela periodização, os agrupamentos, os grandes quadros sinóticos”.[11] É uma atitude que já se manifesta nos dois panoramas sobre a literatura dialetal e popular publicados em Passione e ideologia, a propósito dos quais Sergio Pautasso comenta: “relendo agora esses estudos nota-se em toda sua relevância a tendência de buscar nessas expressões de arte popular a carga de autenticidade de forças genuínas não contaminadas por hipotecas intelectuais a serem enxertadas em nossa estrutura cultural”.[12]


Como destaca Franco Brevini em sua enciclopédica antologia de poesia dialetal italiana, em 1948 Mario Sansone podia se lamentar com razão da falta de estudos sobre literaturas dialetais italianas. Hoje, em vista dos progressos da linguística e as “modificadas perspectivas da italianística, parecem já sepultados os preconceitos contra a literatura em dialeto”, sob muitos aspectos caso literário da segunda metade do século XX, em vista do aumento em qualidade e quantidade dos textos, mesmo faltando ainda coletâneas exaustivas de textos anteriores ao século XX.[13]


Mas quando Pasolini prepara, ao começo da década de 1950, as suas antologias sobre os dialetais e a literatura popular, ainda é um dos poucos a crer que tenha significado valorizar, além da simples arqueologia erudita ou a pesquisa etnológica, a literatura marginal, regional, menor. Não apenas como fato estético, mas também pelos aspectos políticos implícitos no reconhecimento da dignidade das culturas populares, mesmo se muitas vezes menos bem realizadas do que a produção do centro literário. Não que Pasolini não acreditasse na importância da excelência literária (a verdadeira e não somente retoricamente alardeada) ou não reconhecesse em muita produção dialetal exercícios requintados e divagações de perspicazes intelectuais; mas porque, ao mesmo tempo, percebia que pensar a literatura italiana em formas novas, mais amplas, era também um modo para superar a odiada concepção elitista, centralizadora e burguesa (pequeno-burguesa) da cultura, sobretudo escolar. Nos primeiros anos do segundo pós-guerra esta ainda estava atrasada, também graças à herança fascista, sobre a retórica ressurgimental quando se tratava dos mitos da literatura nacional enquadrados como construtores dos fundamentos, nos séculos da fragmentação política, da nova Itália. Além de seus mitos, muito mais contraditórios, da unificação política, que associavam nos mesmos quadros comemorativos o rei Vittorio Emanuele II e seu ministro conservador Cavour, o revolucionário democrático morto em fuga Giuseppe Mazzini e o revolucionário socialistóide Giuseppe Garibaldi. 


Escrever uma história da literatura nacional nunca foi uma operação neutra. Para tentar entender melhor a questão, vamos fazer um paralelo com outra realidade nacional em construção no século XIX: a Alemanha. Na Itália, assim como na Alemanha, a opção político-ideológica sob esta operação tinha, nos primeiros tempos da unificação, um significado fortíssimo. Era preciso fazer crer que a tradição fosse de todos. Mas enquanto na Alemanha a presença já plurissecular de uma língua substancialmente comum para a maioria da população, além do prestígio de escritores que se sentiam ainda contemporâneos a autores pouco anteriores como Goethe e os românticos, tornava essa operação menos difícil e artificiosa, na Itália as coisas não eram tão simples, e os resultados completamente imprevisíveis. O problema da língua literária tinha sido resolvido na Alemanha por um reformador religioso, Lutero, que definira a língua mais adequada para sua Bíblia “interrogando ‘a mãe em casa, as crianças na rua, o povo no mercado’”; na Itália, ao contrário, “o salão, a cúria, a biblioteca contaram bem mais do que a praça” para forjar uma língua “feita para falar, mais do que aos homens, aos príncipes ou às damas”.[14]




Pasolini e sua mãe (década de 60)


Pasolini, gramscianamente convencido que quando há um problema ou uma mudança linguística evidente numa sociedade, quer dizer que ao mesmo tempo existem outras de ordem política e social mais ou menos manifestas, em seu trabalho de estudioso da poesia dialetal e popular, e de valorizador das funções Verga e Pascoli na literatura (não só naquela em língua italiana) do século XX, talvez tenha buscado contribuir para uma maior democratização da ideia de literatura na Itália contemporânea. 


Tradução de Francisco Degani





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[1] Esta me parece ser uma das mais estimulantes sugestões oferecidas pelo ensaio de ONOFRI, Massimo. La ragione in contumacia. La critica militante ai tempi del fondamentalismo [A razão em contumácia. A crítica militante em tempos de fundamentalismo]. Roma: Donzelli, 2007. 

[2] BERARDINELLI, Alfonso. Da poesia à prosa. Trad.: Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac Nayfi, 2007, p. 98. 

[3] MENGALDO, Pier Vincenzo. “Pier Paolo Pasolini”. IN: Profili di critici del Novecento [Perfis de críticos do século XX]. Torino: Bollati Boringhieri, 1998, p. 81. 

[4] Idem, p. 77. 

[5] Sempre Mengaldo nota (Ibidem, p. 80) que “justamente o intuicionismo e a incerteza conceitual e metodológica seriam então o que consentiu a Pasolini a sua – um pouco “corsária” – liberdade de movimentos, fugindo das discutíveis categorias (contra as intenções) de simples molduras nas quais os quadros eram pintados com sinceridade, genialidade, arrogância, e se não com uma linguagem crítica pontual, com uma ‘pronúncia’ e sensibilidade críticas inconfundíveis”. 

[6] BERARDINELLI, Alfonso. “La forma del saggio”[A forma do ensaio], IN: BRIOSCHI, Franco e DI GIROLAMO, Costanzo. Manuale di letteratura italiana. Storia per generi e problemi. IV. Dall’Unità d’Italia alla fine del Novecento [Manual de literatura italiana. História por gêneros e problemas. IV. Da Unidade da Itália ao final do século XX]. Torino: Bollati Boringhieri, 1996, p. 809. 

[7] Cfr. RABONI, Giovanni. “Pasolini. Fu vera gloria?”[Pasolini. Foi verdadeira glória?]. IN: “L’Espresso”, 22 de outubro de 1995, p. 25. 

[8] Sobre as tendências da poesia italiana a partir dos anos 1960, em que se delineia a presença da assim chamada (por Eugenio Montale) “poesia inclusiva”, ver TESTA, Enrico. Cinzas do século XX: três lições sobre a poesia italiana. PETERLE, Patricia e DE GASPARI, Silvana (orgs.). Prefácio de Lucia Wataghin. Rio de Janeiro, 7letras, 2016. Especialmente a “Primeira lição”, pp. 23-46. 

[9] TABUCCHI, Antonio. “Controtempo”[Contratempo]. IN: Di tutto resta un poco. Letteratura e cinema [De tudo fica um pouco. Literatura e cinema]. Milano: Feltrinelli, 2013, p. 28. 

[10] FERRI, Francesco. Linguaggio, passione e ideologia. Pier Paolo Pasolini tra Gramsci, Gadda e Contini [Linguagem, paixão e ideologia. Pier Paolo Pasolini entre Gramsci, Gadda e Contini]. Roma: Progetti Museali Editore, 1996,p. 141. Sobre a relação Gramsci-Pasolini ver também os escritos de VOZA, Pasquale. “La lunga fratellanza di Gramsci”[A longa irmãdade de Gramsci]. IN: La meta-scrittura dell’ultimo Pasolini. Tra “crisi cosmica” e bio-potere [A meta-escrita do último Pasolini. Entre “crise cósmica” e bio-poder]. Napoli: Liguori, 2011, pp. 83-98; “Puro eroico pensiero e questione sociale della lingua: il Gramsci di Pasolini”[Puro pensamento heróico e questão social da língua: o Gramsci de Pasolini]. IN: Gramsci e la “continua crisi” [Gramsci e a “contínua crise”]. Roma: Carocci, 2008, pp. 91-111. D’ORSI, Angelo. “Gramsci, Virgilio di Pasolini?” [Gramsci, Virgilio de Pasolini?]. IN: “Movimento-revista de educação”, a. 4, n. 6, 2017, pp. 202-24. 

[11] ASOR ROSA, Alberto. “Prefazione”[Prefácio]. IN: Passione e ideologia [Paixão e ideologia]. Milano: Garzanti, 2009, p. VIII. 

[12] PAUTASSO, Sergio. “Pasolini: passione e ideologia”[Pasolini: paixão e ideologia]. IN: Le frontiere della critica [As fronteiras da crítica]. Milano: Rizzoli, 1972, p. 166. 

[13] BREVINI, Franco. “Avvertenza del curatore”[Nota do organizador]. IN: La poesia in dialetto. Storia e testi dalle origini al Novecento [A poesia em dialeto. História e textos das origens ao século XX], vol. I. Milano: Mondadori, 1999, p. XIII. 

[14] BREVINI, Franco. “Una nazione senza stato” [Uma nação sem estado]. IN: La letteratura degli italiani. Perché molti la celebrano e pochi la amano [A literatura dos italianos. Porque muitos a celebram e poucos a amam]. Milano: Feltrinelli, 2010.


como citar: MAFFIA, Gesualdo. A crítica militante de Pier Paolo Pasolini. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.3, março. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209909