La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Antonio Tabucchi: uma aventura portuguesa, por Agnes Ghisi




"Filho, disse a Velha, ouve, assim não pode ser, tu não podes viver em dois lados, o lado da realidade e o lado do sonho, isso provoca alucinações, tu és como um sonâmbulo que atravessa uma paisagem de braços estendidos e tudo aquilo em que tocas fica a fazer parte do teu sonho, eu própria, que sou velha e gordo e peso oitenta quilos, sinto-me dissolver no ar ao tocar na tua mão, como se ficasse também a fazer parte do teu sonho." (p. 18)
Edição da Cosac Naify, 2015
      Requiem, uma alucinação é um pequeno romance escrito em português pelo italiano Antonio Tabucchi (Vecchiano, 1943 - Lisboa, 2012). "Isso é uma aventura portuguesa" nos adverte o protagonista pouco depois de mencionar O Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa. Nas notas, Tabucchi nos explica sua questão linguística: no sonho que realmente tivera e lhe inspirara a escrever esse livro, o pai lhe pergunta em português "quantas letras tem o alfabeto latino?", ainda que, ao longo da conversa, ele tenha percebido, sentido, a música rústica do toscano, como nos explica também nas notas. A questão linguística, então, era esta: qual a língua natural para essa narrativa, o português ou o italiano? "Tinha à minha frente folhas cheias de riscos e de palavras: um texto penoso, de escrita desajeitada e artificial. Pareceu-me ter cometido, com as minhas boas intenções, um ato quase perverso: viera até mim uma voz numa dada língua e eu travestira-a" (p. 120). Assim nasceu esse livro em português: de uma tentativa de recriar um sonho, de extendê-lo e nele encontrar reflexões, e não necessariamente explicações.

      A partir do sonho que tivera com o pai, Tabucchi trilha caminhos que vacilam entre o real e o fictício, entre a memória, ou o sonho, e a (re)criação. Nesse romance, mão há dúvidas de que todas as certezas são volúveis, afinal, como tantas personagens nos afirmam, todos os espaços percorridos pelo protagonista (que é o Tabucchi personagem) são espaços da memória e dos sonhos, e os acontecimentos narrados podem ou não ter tomado lugar no plano do real, da mesma forma que no plano do fictício. Além disso, há a convergência de tempos, Tabucchi quando fala com seu amigo Tadeus, no cemitério, em sua tumba, faz passado e futuro se encontrarem no momento presente da narrativa, que é o mesmo da memória e dos sonhos: um tempo intangível e impossível. A história se dá num ritmo tranquilo ainda que lesto, e isso porque a escrita de Tabucchi é concisa e natural (isto é, no plano oposto do que ele nos diz ter resultado sua escrita em italiano).

Alcântara seen from the river Tejo
"Por que é que aceitei este encontro aqui no cais?, tudo isto é absurdo"

      O aspecto onírico da narrativa é incorporado também pela fantasmagoria de Lisboa, que se apresenta nesse livro sempre esvaziada de pessoas, a não ser das personagens que Tabucchi encontra. Mesmo lugares que o narrador espera encontrar mais gente estão vazios, e aqueles que ele tem certeza estar abarrotado de pessoas, como as praias, são evitados em favor de uma tentativa de assimilar a alucinação que está vivendo. Além da fantasmagoria, o "calor horroroso" também fortalece a aura alucinatória, a malemolência e o desconforto que assolam o protagonista, que começa a história no cais de Alcântara, e está à espera de um amigo, "o grande poeta do século XX" ou ainda O Convidado, Fernando Pessoa. É lendo Pessoa, debaixo de uma árvore em Azeitão, que começa essa "aventura portuguesa", e é como se o protagonista tivesse essa alucinação num sono enquanto lê O Livro do Desassossego e por ele se inspirasse, isto é, por causa dele se desassossegasse.
      "O que é que me aconselhas, perguntei, uma camisa ou uma camisola? A Velha Cigana pareceu refletir um instante. Aconselho-te uma camisola Lacoste, disse depois, são as mais fresquinhas, se queres uma Lacoste falsa custa quinhentos escudos, uma autêntica cusa quinhentos e vinte. Caramba, disse eu, uma Lacoste por quinhentos e vinte escudos parece-me muito barata, mas qual é a diferença entre a falsa e autêntica? Para teres uma Lacoste autêntica, é simples, disse a Velha Cigana, primeiro compras a falsa, que custa quinhentos escudos, depois compras o crocodilo, que custa vinte escudos e que é autocolante, colas o crocodilo no seu lugar e aí tens uma camisola autêntica." (p. 17)
      Nos sonhos, enquanto os sonhamos, as coisas são exatamente aquilo que aparentam ser, isto é, não há questões de autenticidade; até que o deixem de ser. As personagens de Tabucchi raramente têm nomes, e em sua maioria são nomeadas com aquilo que as caracteriza -- o Rapaz Drogado, o Cauteleiro Coxo, o Chauffeur de Taxi, a Velha Cigana -- o que não reflete em suas personalidades, visto que são personagens tão complexas e cheias de dimensões quanto o protagonista, o que tensiona ainda mais a relação entre realidade e alucinação. A aclimação se dá no plano da incerteza: sobe-se uma rua conhecida e, sem que se perceba, termina-se na contramão da rua em que se queria chegar, como se tudo estivesse mesmo um tanto às avessas. Apesar de tudo, enquanto se sonha, a realidade do sonho é penetrante e envolvente, delirante, e certamente a sentimos como real. E enquanto há diálogos que estão mesmo pautados em situações irreais -- como quando nosso protagonista diz ao Cauteleiro Coxo que o conhece mas não sabe de onde: "agora não saberia dizer, tenho uma impressão absurda, tenho ideia de o ter encontrado num livro, mas talvez seja o calor e a fome [...] ah, agora lembro-me, era O livro do desassossego, você é o Cauteleiro Coxo que maçava inutilmente o Bernardo Soares, aí está onde o encontrei, nesse livro que estava a ler debaixo de uma amoreira numa quinta em Azeitão" (p. 9) -- muitos outros estão firmemente enraizados numa conversa cotidiana, banal. Ou seja, a tensão -- entre a lucidez e a alucinação; presente, passado, e futuro; eu e o outro; lugares da memória/do sonho e lugares concretos -- é a chave principal da narrativa, é como a história começa e termina, e como ela se desenvolve.

      Requiem nos possibilita muitas leituras, nos oferece inúmeras alternativas, que apenas citarei aqui, para não nos demorarmos muito mais: há Tadeus, que poderia ser lido quase como um alter ego do Tabucchi protagonista; há a sepultura de Tadeus, que é a de número 4664, como um espelho, um portal para se embranhar ainda mais na dimensão alucinatória do sonho; há um parágrafo que faz uma recapitulação das estéticas literárias do século XX, como uma maneira de resgatar tudo o que havia acontecido até então e que, de certa maneira, pode-se encontrar na obra; há a omissão do encontro com Isabella; há questões de psicanálise, como a relação com o pai, que o próprio Tabucchi aborda nas notas finais, bem como, a questão da língua; entre tantas outras. Ainda, as notas finais criam um bom contraste entre língua literária e língua de crítica literária, e ainda faz pensar nos outros registros linguísticos que também aparecem na obra. Requiem é complexo e conciso, o que ressalta sua riqueza em termos de narrativa. Essa obra que cria uma ponte entre Portugal e Itália é construída numa narrativa leve, natural, e cheia de humor.

      Por fim, o poema de Fernando Pessoa que inspirou Tabucchi a ir a Portugal:

Tabacaria (Álvaro de Campos)

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.


como citar: GHISI, Agnes. Antonio Tabucchi: uma aventura portuguesa. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.3, março. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209911