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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Francesca Cricelli
Igiaba Scego
Prosa contemporânea
em
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IGIABA SCEGO é uma das revelações da
literatura italiana contemporânea. Jornalista e pesquisadora, colabora com
diversos veículos como L’Internazionale,
Lo straniero, La Repubblica e L’Unità, além
de integrar o grupo de pesquisa de Altos Estudos em Ciências Humanas da
Universidade Ca’ Foscari de Veneza. Igiaba esteve no Brasil recentemente como convidada
especial da Festa Literária Internacional de Paraty. Junto com o poeta suíço de
língua italiana Fabio Pusterla, Igiaba integrou uma das mesas no palco
principal da Flip, com mediação da escritora Noemi Jaffe. Traduzi seus três
livros publicados no Brasil até agora: o romance Adua (Nós, 2018), o relato autobiográfico Minha casa é onde estou (Nós, 2018) e Caminhando contra o vento (Buzz & Nós, 2018), um ensaio sobre
Caetano Veloso, uma de suas grandes paixões.
Igiaba é dona de uma escrita original: o
estilo e a forma com que decide abordar os temas que coloca em cena é bastante único,
pois consegue variar de um registro de alta erudição da língua italiana e
lançar mão, ao mesmo tempo, de uma narrativa que preserva algo da tradição de
uma sociedade em que a transmissão oral das histórias é o mais comum, algo que
vem de sua origem somali, sobretudo pela parte materna. Mais do que um leitor, as
histórias de Igiaba pedem um ouvinte: há sempre alguém para quem a história é
contada. Tendo estreado em 2005 com a publicação de Pecore Nere (Laterza, 2008), juntamente com Gabriella Kuruvilla,
Laila Wadia e Ingy Mubiayi, Igiaba resgata, com grande maestria literária, o
inenarrável da experiência colonialista italiana, permeando suas narrativas com
uma parte da história ainda muito suprimida na Itália. Igiaba transita por
referências históricas para repensar o presente. Em sua escrita há como que um
rio caudaloso e subterrâneo, além da beleza do desencadeamento das orações subjazem
questões políticas prementes e feridas não cicatrizadas, por exemplo, o não
reconhecimento das atrocidades dos anos em que a Itália dominou a Somália como
colônia, ou mesmo o direito de aquisição e exercício da cidadania por parte dos
filhos de imigrantes, a questão da lei jus
solis — até hoje não reconhecida na Itália — e outros temas particularmente
polêmicos na atual conjuntura política italiana, como a reforma da lei de imigração,
o livre trânsito entre os países e o fechamento dos portos.
Ainda que pudéssemos dizer que a autora
se insere na linhagem da literatura pós-colonial contemporânea, rotulá-la dessa
forma seria também reduzir o valor do seu trabalho literário. Podemos pensar
numa literatura que se mantém como Jano, com uma face voltada para o passado e
a outra não apenas para o futuro mas também para o presente, sem esquecer o
processo de colonização, preocupando-se sobretudo com uma contínua descolonização
das ideias e dos ideais. Mas a escrita de Igiaba vai sempre um pouco além, pois
problematiza todos os vértices, todos os enredos e pontos de vista. Há que observar
com atenção a profundidade da pesquisa e a maestria por trás de sua escrita.
A voz narradora dos filhos de
imigrantes — ou novos imigrantes — na Europa já é um fato consolidado em outros
países, como na França. Nesse sentido, destaco dois escritores recentemente
publicados no Brasil: o franco-marroquino Abdellah Taïa, autor do romance
epistolar Aquele que é digno de ser amado
(Nós, 2018), e a franco-argelina Leila Slimani, cujo romance Canção de ninar (Tusquets, 2018)
conquistou o Goncourt (prestigiada premiação literária francesa). Além desses,
poderíamos citar ainda Atiq Rahimi que aborda o seu processo de exílio na
França egresso do Afeganistão em A balada
do cálamo (Estação liberdade, 2017), e Scolastique Mukasonga, que narra a
sua trajetória como sobrevivente do genocídio em Ruanda em seus livros Baratas e Nossa Senhora do Nilo (Nós, 2017). Porém, reduzir a produção tão
rica e vasta — da qual que esses autores são exemplos — com o rótulo de
literatura pós-colonial ou literatura-testemunho certamente seria uma nova
forma de reducionismo ou até apagamento.
ADUA
Adua, a protagonista do romance homônimo,
conta sua história à estátua de elefante esculpida por Bernini, na praça Santa
Maria Sopra Minerva, em Roma, ouvinte de pedra que tem sobre si o menor
obelisco do mundo. Adua é também o nome da batalha culminante e decisiva da Guerra
da Abissínia, travada em 1.° de março de 1896 entre as forças italianas
comandadas pelo general Oreste Baratieri e o exército abissínio de negus Menelik II. A derrota italiana nessa
guerra manteve suas ambições coloniais no Corno da África adormecidas por
muitos anos. A protagonista do romance de Igiaba é uma jovem que emigrou nos
anos de 1970 para a Itália, seduzida pelo sonho de se tornar uma diva do cinema
como Marilyn Monroe. Porém, as coisas acabaram de forma muito pior para ela. A
história do romance divide-se entre as vidas de Adua e de seu pai, conhecido
como Zoppe, que serviu aos fascistas italianos como intérprete na década de
1930. Os capítulos alternam-se entre Adua, Zoppe e os “sermões”, ou seja, os
pitos que a protagonista recebe do pai. A relação difícil entre os dois é um
dos eixos do romance, que fala sobre os corpos e os efeito do colonialismo, da
humilhação e dos abusos nesses mesmos corpos: o corpo do pai, o corpo da filha
e o corpo de uma personagem que surge mais tarde, Titanic, jovem imigrante,
sobrevivente da travessia do Mediterrâneo que acaba se casando com Adua. O
leitor vai construindo a trama através da leitura de um relato que ocorre nos
anos de 1930 e outro que se passa entre 1960 e 1970, até enfim chegarmos aos
dias de hoje. Igiaba olha para a história a partir de personagens que estariam
de fato esquecidas se não existissem como parte de sua narrativa: é através
deles que compreendemos não somente o drama pessoal de cada um mas neles também
identificamos as marcas do tempo, do colonialismo, da política, do machismo e
do abuso. Um aspecto fundamental do romance é que não há uma pasteurização do
bem e do mal, pois todas as personagens carregam alguma marca que desperta
empatia mas também ódio. A própria Roma e também Mogadíscio são personagens do
romance. Outro aspecto que se repete tanto em Adua quanto em Minha casa é
onde estou é o enxerto de palavras somalis no texto: expressões, nomes de
comidas e cantigas, tudo transcrito de acordo com a leitura fonética destas
palavras em italiano. Em minhas traduções, optei por preservar esta mesma
grafia. No final do romance, há um glossário elaborado pela autora com a
explicação da terminologia somali. A linguagem híbrida de Igiaba Scego não se manifesta
somente neste recurso, mas também na própria narrativa, que ora se assemelha à
narrativa oral, típica dos povos nômades do Corno da África, ora se manifesta
com monólogos, diálogos e descrições. Apresentamos aos leitores um trecho do
livro:
2
Sermão
Fica
quieta, Adua. Tire esses cotovelos da mesa. E limpe essa boca suja. As costas
retas, pelo amor de Deus. Por que você fica toda envergada? Está com as mãos
sujas, lave-as imediatamente se não vai apanhar. Isso é jeito de olhar para o
seu pai, Zoppe, sua malcriada? Você é como sua mãe, Asha, a Temerária, aquela
safada. Tua mãe, aquela puta, que morreu deixando-me aqui sozinho com o meu
amor. Como ousou morrer? Hein? Como ousou? Maldita fêmea! E você? Você também
vai morrer? Você tem os olhos iguais aos dela, não suporto isso! Mas você vai
ver como eu vou te endireitar. Não estou de brincadeira, tem que andar na
linha, mocinha. A música agora mudou, não é como no matagal, quando te mimavam.
E, se você não obedecer, você sabe bem o que vai acontecer, não sabe? Pronto,
então fique reta com estas costas e por caridade não choramingue. Isso me
destrói os tímpanos. Quieta. Isso, fique quieta!
MINHA CASA É ONDE ESTOU
Este relato autobiográfico publicado em
2010 na Itália venceu o prêmio Mondello 2011. Aqui há algo também presente no
romance Adua, pois a narrativa
pessoal da autora está sempre em relação com a história — desta vez a história
dos seus países, a Itália e a Somália, mas também das suas cidades, Roma e Mogadíscio,
além da história da sua família. A obra é dedicada à Somália, “onde quer que
ela esteja”, nas palavras da autora. Começa com uma epígrafe de Refugiados, de Nuriddin Farah, na qual
se lê: “encontrei minha morada num território de fronteiras incertas, com as
quais normalmente defino o país da minha imaginação”. Minha casa é onde estou é um livro denso, com muitas notas
históricas e explicativas, mas é também um relato caracterizado por uma beleza
insólita. Acompanhamos a narrativa e o desenvolvimento do percurso pessoal de
Igiaba em seu processo de individualização, percurso em que faz um acerto de
contas com o que significa ser italiana, ser somali e, principalmente, ser o
indivíduo único que se é: como inscrever a si mesma em sua própria história.
Esta é a busca pela sua morada. O leitor que fruir deste texto e do romance Adua poderá reconhecer as refrações de
um no outro, pois há no romance nuances que parecem emergir da experiência pessoal
de Igiaba. A história começa com um jantar em família em Londres, na casa de um
dos irmãos da autora. Ele e um primo começam a relembrar como era Mogadíscio
antes da guerra, começam a desenhar a cidade no papel, e Igiaba vai ajudando e
completando com suas lembranças até o momento em que seu sobrinho, muito
novinho, pergunta: “Essa também é sua cidade, tia?” O questionamento,
aparentemente muito inocente, cria um rombo na escritora. Apresentamos aqui um
pequeno trecho deste capítulo:
“É a sua cidade, tia Igiaba?”
Eu não sabia o que responder. A pergunta
era repentina. Inesperada. Um contra-ataque. Eu não conseguia voltar para meu
meio campo. Embaraço.
Minha mãe balançou a cabeça.
Refletia.
“Não basta” disse quase resmungando.
“O quê?”
“Isso”, respondeu, indicando um ponto entre
ela e o horizonte.
“Isso o quê?” perguntei então, um pouco
irritada.
“Maabka,
o mapa”, suas palavras misturavam-se, língua materna e italiano. “Não basta
para tornar sua aquela cidade.”
“Não? De verdade?” Eu não sabia se estava
fazendo uma pergunta ou uma afirmação.
“Claro que não. Aquela no mapa não é a sua
cidade. Não pode mentir para a criança.”
“Não quero mentir para a criança. Não
poderia nunca. Mas…”
“Mas…?”
“…”
“Digamos que é minha de certa forma. Mas
também não é. Entende, filha?”, ela disse, e depois acariciou-me docemente a
cabeça.
Ainda hoje não sei se entendi direito
aquelas palavras. Meu rosto se transformou num ponto de interrogação suspenso
no vazio.
É a minha cidade?
Ou não é?
Eu estava numa encruzilhada.
Este breve texto, longe de pretender
exaurir as questões apresentadas nos livros de Igiaba Scego publicados no
Brasil, é antes um convite e um estímulo para que os leitores se aproximem da obra
rica e profunda da autora, e para que se coloquem também na encruzilhada, junto
à autora, em busca do seu próprio trajeto de leitura.
como citar: CRICELLI, Francesca. Ler e traduzir Igiaba Scego. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.3, março. 2020.Disponível em
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209907 |
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Vídeo recomendado:
Flip 2018 - "Minha casa", com Igiaba Scego e Fabio Pusterla
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