La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Entrevista com Mauricio Santana Dias, por Helena Bressan Carminati






Iniciamos esta manhã fria e "cinzenta" com a lembrança do aniversário de um dos maiores escritores do século XX: Primo Levi. Este ano, Levi estaria completando 100 anos e para relembrarmos esta figura tão importante para a literatura mundial, entrevistei o professor e tradutor Mauricio Santana Dias, que gentilmente aceitou responder algumas perguntas. 

Mauricio leciona na Universidade de São Paulo (USP) e já traduziu diversos nomes importantes da literatura italiana como Cesare Pavese, Giacomo Leopardi, Italo Calvino, dentre outros. E justamente por conta de uma recente tradução sua, o convidei para participar desta conversa/entrevista — escrita — via e-mail. A tradução recente é uma coletânea de poemas de Primo Levi publicada pela Editora Todavia, agora em julho. O livro, intitulado Mil Sóis conta com introdução, seleção, tradução e notas de Maurício, com poemas das décadas de 1940 até 1980. 


Pensando então na novidade de termos agora parte da poesia primoleviana traduzida para o português brasileiro e também por ocasião do centenário de nascimento do autor italiano, enviamos algumas questões e reflexões ao tradutor que as respondeu de modo bastante preciso e contundente — o que não deixa de se relacionar também com o estilo de Levi. Assim, considerando esta data e a relevância do escritor não somente para seus leitores mas para os tempos que vivemos hoje, Mauricio Santana Dias nos concedeu a entrevista abaixo. 


Como se deu a sua aproximação com a tradução?

Acho que com o gosto precoce pela literatura. Antes até de entrar na faculdade, já me divertia traduzindo textos breves, sem pensar que um dia isso pudesse se transformar em um "trabalho". Durante a graduação em italiano, na UFRJ, essa atividade passou a se tornar mais intensa e sistemática: lembro que cheguei a fazer traduções para editoras, quando já estava no mestrado, e o primeiro livro, curiosamente, foi do sociólogo Néstor Gascia Canclini. Pouco depois, enfrentei a grande aventura das "Cartas" de Giacomo Leopardi. 

Você já traduziu dois livros de Levi, A chave estrela e 71 Contos de Primo Levi e está traduzindo agora uma coletânea de poemas, qual a sua relação com este escritor?

Quando li Primo Levi pela primeira vez, foi um impacto. Depois de Se questo è un uomo, fui lendo tudo dele e muito da crítica sobre sua obra. Quando em 2004 surgiu a possibilidade de traduzir três livros de Levi para a Companhia das Letras (71 Contos de Primo Levi é, na verdade, uma reunião dos livros de contos Storie naturali, Vizio di forma e Lilit), fiquei tão entusiasmado que escrevi um ensaio breve sobre aqueles textos extraordinários, que acabou virando a introdução ao volume ("Primo Levi e o zoológico humano"). A tradução dos 71 contos também coincidiu com meu primeiro ano como docente de literatura italiana na USP, e certamente as duas atividades — as aulas e a tradução — se alimentaram reciprocamente. O fato é que, quanto mais leio Levi, mais o admiro como escritor, certamente um dos maiores que o século XX teve. 

Quais são as maiores diferenças entre traduzir a prosa de Levi e a sua poesia?

Dito de modo bem simplificado, traduzir prosa é trabalhar de modo extensivo, e poesia, de modo intensivo. A forma hiper concentrada do verso impõe ao traduzir um processo de reescritura que se dá em múltiplas etapas: são muitas as versões, emendas, trocas de uma palavra por outra, de escuta do texto até chegar ao poema que será editado e publicado.
Embora Levi não faça versos de forma fixa, há nele uma clara tendência ao hendecassílabo italiano — que traduzimos pelo decassílabo em nosso sistema métrico —, que é o grande verso da tradição italiana, desde Dante e Petrarca. Isso tem que aparecer de algum modo na tradução, assim como a frequente intertextualidade com poetas como Dante e Leopardi, mas também Shakespeare, Heine, Coleridge, T. S. Eliot, Rilke, etc. Não que traduzir a prosa dele não demande grande atenção e cuidado, inclusive com o ritmo — todo grande escritor tem um ritmo inconfundível —, mas com a poesia isso se dá em outro patamar. 

Esta coletânea de poemas foi pensada a partir da obra italiana Ad ora incerta (1984) que reúne os poemas de Levi? Quais foram os seus critérios de seleção dos poemas?

Usei como texto-base a edição das obras completas organizada por Marco Belpoliti, selecionando poemas não só de Ad ora incerta, que Levi publicou em vida, mas também alguns do volume póstumo reunidos em Altre poesie. Levi sempre datava seus poemas, como se eles formassem uma espécie de diário em versos. Muitos são de fato autobiográficos, ligados à experiência de Auschwitz, ao trabalho como cientista e escritor, à vida familiar. Outros exploram zonas distintas, que eu sintetizaria como a convergência da história humana (ou simplesmente vivente) com a história do cosmo, da matéria inerte e infinita que nos interpela. Como cientista que era, Levi estava particularmente interessado, eu diria até obcecado, com as descobertas recentes no campo da astrofísica, com a entropia, com os buracos negros (chegou a se referir a Auschwitz como um buraco negro e a lhe dedicar um poema, "Estrelas negras").
A seleção que fiz buscou dar conta dessas linhas de força, e espero que as escolhas tenham sido adequadas e tenham resultado em um livro forte e impactante, como deveria ser. De resto, não posso deixar de registrar que a tradução desses poemas neste momento histórico em que fascismos e totalitarismos retornam sob novas formas aqui e noutras partes do mundo, com a ascensão em massa do que há de pior no humano, é, também, um gesto político em sentido amplo. 

Você teve algumas dificuldade mais específica de tradução em algum dos poemas? Se sim, quais foram as estratégias para amenizá-las?

Cada um deles apresentou dificuldades próprias, em maior ou menos grau. Talvez a maior dificuldade, sobretudo em poesia, seja alcançar simultaneamente a alta condensação semântica e a música interna de cada poema. Além disso, Levi é um escritor da palavra precisa e clara, que não admite o vago ou o aproximativo. Já se disse que seus textos são como esculpidos na pedra, e o tradutor não pode falhar nesse ponto.

Levi, em uma entrevista para Antonio Audino em 1984, afirmou que "escrever em prosa ou em poesia é comunicar". Você percebe esta "comunicação" nos poemas? 

Certamente. Aliás, esse é um dos temas recorrentes de Levi, já desde a alusão a Coleridge no título Ad ora incerta, que fala da necessidade que o velho marinheiro tem de "contar sua história". No breve texto de apresentação a Mil Sóis, faço referência a essa urgência de comunicação. Nos anos 1980, quando passou a publicar com certa regularidade seus poemas no jornal turinense "La Stampa", Levi chegou a afirmar que tinha percebido uma resposta maior de seus leitores aos poemas, mais que aos textos em prosa, como se a poesia, por seu poder de síntese e brevidade, fosse um canal de comunicação mais eficaz. 

Pensando na expressão "comunicação" citada acima, Gilles Deleuze em O ato de criação afirma que "a obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência". O que você teria a dizer sobre isso?

Nesse caso, eu diria simplesmente que Levi e Deleuze estão atribuindo significados distintos à palavra "comunicação" e ao conceito de "obra de arte" — que, retirados do contexto em que ambas as obras foram concebidas, dizem bem pouco, ou podem até induzir ao equívoco. 

Como foi o processo de tradução dos poemas? Levi afirmou em uma entrevista que não conseguia "poetare" todos os dias da semana, isso se reflete no seu processo tradutório também? Você traduz, espera alguns dias, continua, ou é um fluxo mais contínuo?

No meu caso, quase sempre a primeira versão é muito rápida. Depois vem o paciente trabalho de lima e reescrita a que já me referi. Mas, uma vez que tinha decidido fazer esse livro, não deixei de traduzir e reescrever os versos até a primeira prova da editora, com que tive um diálogo excelente, sobretudo com Leandro Sarmatz, ele mesmo escritor e poeta. Curiosamente, esse foi um dos livros que concluí com maior rapidez, talvez impelido pela urgência da indignação. Comecei a traduzir os poemas em dezembro do ano passado, e o livro ganhou corpo em janeiro, durante uma temporada que passei no Chile, quando a Todavia já tinha aceitado a proposta de publicá-lo. 

Em uma entrevista intitulada Levi: l'ora incerta della poesia, o escritor afirma que teria reformulado a conhecida frase de Adorno da seguinte maneira: "depois de Auschwitz não se pode mais fazer poesia que não seja sobre Auschwitz". Você concorda? Por quê?

Assim como a famosa frase de Adorno, a de Levi também já está se tornando quase um slogan. Melhor esquecer os slogans e tentar se aproximar da complexidade de pensamento, da "zona cinzenta", que é uma marca tanto de Adorno quanto de Levi. Dito isso, acho que Adorno concordaria com a ideia de Levi de que Auschwitz é como um "buraco negro", que sorve e ressignifica toda a história que lhe antecedeu e a que ainda está por vir. 

Retomando Deleuze, mais especificamente em seu Abecedário, quando trata sobre o "R de Resistência", cita Primo Levi como um dos autores que mais falou — de maneira profunda — sobre a vergonha de ser homem: "[...] um sentimento complexo e não unificado. A vergonha de ser um homem significa: como alguns homens puderam fazer isso, alguns homens que não eu, como puderam fazer isso? E, em segundo lugar, como eu compactuei? Não me tornei um carrasco, mas compactuei para sobreviver". O que você tem a dizer sobre essa consideração? É possível perceber também a questão da vergonha nos poemas de Levi?

Com certeza! Diria até que esse é um dos grandes temas do livro, presente na maioria dos poemas, mesmo nos que não tratam diretamente do Lager. Nos poemas, Levi vai mesmo além nessa questão, de modo ainda mais claro, direto e contundente. Há alguns assombrosos.

Para concluir nossa conversa, gostaria que você falasse um pouco sobre a importância de Primo Levi para as humanidades, pensando os tempos sombrios que vivemos no Brasil e levando em conta também a leitura que Giorgio Agamben faz de Primo Levi em O que resta de Auschwitz. 

Para elaborar essa questão, precisaria dar uma resposta muito longa e talvez enfadonha. Em poucas palavras, Levi nos confronta o tempo todo com o perigo da aniquilação, aniquilação do humano e de toda forma de vida; e, mesmo diante do horror absoluto, é capaz de manter uma extraordinária lucidez de pensamento e de fala. Consegue até ter humor — um humor quase sempre negro, é verdade. Mil sóis, o título que escolhi para a antologia, apesar de muito luminoso, é tirado de um verso dele que remete à bomba atômica. Os tempos sombrios de Hannah Arendt e o estado de exceção de Agamben estão aí, com uma evidência irrefutável, espantosa. A obra de Levi nos mantém vivos, alertas, lúcidos e em estado de atenção. 






como citar: CARMINATI, Helena Bressan. Entrevista com Mauricio Santana Dias. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.4, abril. 2020Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209898