La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Experimentação e tradição: as cobaias de Valerio Magrelli, por Patricia Peterle


Valerio Magrelli (1957) é, sem dúvida, uma das grandes vozes do panorama literário italiano contemporâneo. Romano de nascença conta com 40 anos de uma carreira de grande repercussão entre o público em geral e a crítica mais especializada, sendo traduzido para diferentes línguas, dentre elas inglês, espanhol, francês. Poeta, tradutor e professor de literatura francesa na Università di Roma III, Magrelli é da mesma geração de outros poetas que vêm ganhando espaço em nosso mercado editorial, como Fabio Pusterla e Enrico Testa já traduzidos. 



Sua escrita poética tece relações com outros saberes, como a filosofia e a ciência; precisão e paciência caminham juntas em sua escrita. Como ele mesmo já afirmou, há um prazer pelo jogo

com os instrumentos da poesia e do poético, que vai sendo tensionado em várias dimensões e direções. Jogar com os versos e jogar em versos toca tons civis, morais, políticos, delineando paisagens naturais, topografias e paisagens tecnológicas. 

66 poemas, livro recém publicado e apresentado por Joca Reines Terron no Istituto Italiano di Cultura de São Paulo, com tradução de Patricia Peterle e Lucia Wataghin, é uma antologia que percorre sete livros, que abarcam mais de quatro décadas de trabalho: Ora serrata retinae (1980), Naturezas e nervuras (1987), Exercícios de tiptologia (1992), Legendas para a leitura de um jornal (1999), Distúrbios do sistema binário (2006), O sangue amargo (2014) e As cobaias (2018). A palavra de Magrelli se abre para o diálogo com as de autores que lhe são caros: Rilke, Auden, Nabokov, Berkeley, Rousseau, Mandelstam, Michaux, Luzi, Caillois, Larkin, Nietzsche, Baudelaire, Montale, Dante, Pagliarani, Borges.

Ora serrata retinae é marcada pela precisão, pela questão do olhar, como já está colocado no título
Valerio Magrelli com Caroline Weiss,
autora das ilustrações da tradução. 
em latim, que indica uma parte específica do olho humano, aquela região anterior à retina, circular e sinuosa. O segundo poema dessa série apresenta essa problemática: “
A escrita / não é espelho, ou melhor, / o vidro pontilhado do chuveiro / onde o corpo se esborralha / e somente sua sombra transparece / incerta mas real”. E ainda: “A miopia se torna então poesia, / tendo de se aproximar do mundo / para separá-lo da luz.”. Magrelli assim vai acompanhando o curso comum dos acontecimentos, o ritmo ordinário da vida e das coisas, a experiência. Naturezas e nervuras a relação com olhar se confirma mais uma vez, como se lê nos seguintes versos, “Muitas vezes imaginei que os olhares / sobrevivem ao ato de ver”, e é agora colocada ao lado de outro sentido, o da escuta, “a rachadura / negra, fixa, / sinal de uma tempestade / que continua trovejando /sobre a paisagem sonora, / de esmalte.” Em Exercícios de tiptologia a poesia parece tender à prosa, aqui estão algumas reflexões sobre o trabalho do tradutor, figura alegorizada na imagem do “O embalador”, que faz mudar de casa as palavras, colocando em foco um cuidado com algo que não lhe pertence e, no entanto, manuseia. “O embalador” é introduzido por uma epígrafe de Nabokov “O que é a tradução? Numa bandeja a cabeça pálida e flamejante de um poeta”, que, por sua vez, não deixa de apontar para a atividade de Magrelli como tradutor de língua francesa (Valéry, Verlaine, Debussy, Tzara, Breton, Apollinaire...). Legendas para a leitura de um jornal traz uma veste antilírica por meio de anúncios de jornais e outras formas do verso, escuta-se nessas páginas a voz crítica diante de uma vida coisificada, tratada como mercadoria, movida por banalidades e mentiras midiáticas. Talvez uma nova possibilidade para a chamada poesia empenhada na contemporaneidade (“O sopro da morte e da mercadoria, ao longo da interminável cordilheira de merda / que Sísifo vai acumulando.”). Decepção, ironia guiam a voz poética que busca uma partilha com o outro: “Os poemas devem ser sempre relidos, / lidos, relidos, lidos, postos para carregar; / cada leitura completa a carga, / são aparelhos para recarregar sentido”. A ironia política, as idiossincrasias e as paixões retornam em O sangue amargo, que vai do sentimento paternal pelo filho que no banho recita os célebres versos de Conde Ugolino da Divina Comédia (Inf. Canto XXXIII) a toda uma geração jovem que não encontra trabalho, referência aos jovens convalescentes que se mantêm “acordados / sem nunca trabalhar”, até ao rumor do secador de cabelos com vozes de um recente passado de guerra: “Ouço dialetos eslavos, / ameaças, muitos tiros: / um dia escutei quase dez minutos / para acompanhar as fases de um pente-fino / num longínquo povoado dos Balcãs.” Ao final, As cobaias reúne textos nos quais retornam o ambiente doméstico e familiar, relações que compõem o próprio sujeito na tensão entre singularidade-pluralidade, cruzamento de tempos, marcas de um passado que só pode sobreviver e é necessário ao tempo presente: “As rugas, as rugas, as rugas... / Mas essas rugas contam os sorrisos / que semeaste nos anos. / Por que apagar os rastros / daquela luz derramada no mundo?”

É a relação com o fora que deixa marcas na subjetividade inscrita nessas páginas, presente sim, mesmo sendo esgarçada, despotencializada; trata-se de um eu que necessita da pluralidade para sua singularidade. No que diz respeito ao próprio trabalho com a língua poética, Magrelli afirmou na entrevista publicada em Vozes: cinco décadas de poesia italiana (2017) que: “Se a escritura é a ligação que une autor e leitor, se cada sociedade se estabelece com o compartilhamento de uma linguagem, a poesia tem a função de levar a comunicação ao seu limite último”.

66 poemas é, do ponto de vista poético, um livro riquíssimo, de muitas experimentações, diálogos com a tradição literária, em que Valerio Magrelli encena um fluxo contínuo e aporético: uma vez que, a poesia exige uma aproximação e, ao mesmo tempo, uma subtração diante dos materiais verbais do jogo do comércio cotidiano. 


como citar: PETERLE, Patricia. Experimentação e tradição_ as cobaias de Valerio Magrelli. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.4, abril. 2020. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209897