La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Ecos do manicômio num poema de Alda Merini, por Agnes Ghisi








Alda Merini nos Navigli, Milão
(Fonte: Corriere della Sera)
Alda Merini (1931 - 2009) foi uma poeta italiana cuja história de vida é marcada por uma particularidade: o internamento manicomial. De família pobre e com educação formal restrita em razão da Segunda Guerra Mundial, a poeta desenvolveu sua relação com a escrita de maneira muito íntima e precoce. Assim, se insere na cena cultural milanesa já na adolescência e traça relações de amizade (e não só) com nomes importantes para a literatura italiana da segunda metade do século XX, como Giacinto Spagnoletti e Giorgio Manganelli.

Já nos anos 1950 havia sido diagnosticada com distúrbios psicológicos e sido internada por pequenos períodos de tempo em hospitais psiquiátricos. Anos mais tarde, em meados dos anos 1960, já mais velha, casada e com duas filhas pequenas, Alda Merini é enviada para o então chamado Manicômio Paolo Pini, onde permaneceu “presa” por quase duas décadas. Os terrores dessa experiência são expressos em versos tempestuosos que surgem depois de um longo silêncio poético. A realidade do pós-manicômio é lida em chave de não aceitação, de tragédia, como se pode observar no poema intitulado “Anche l’oggi sarà dentro la storia” [Hoje também fará parte da história], presente em Destinati a morire (1980), em que a autora parece tentar “exorcizar” tal situação:

Anche oggi sarà dentro la storia
della mia vita ma non era l’oggi
che io volevo quand’ero bambina
oggi è un oggi diverso, senza grida
afono e grigio come una fontana
oggi è l’oggi di ieri manifesto
solo nel mio respiro prigioniero:
o larghe nubi come fonderei
volentieri il mio passo
dentro quel cielo che racchiude tutta
tutta l’avversità del mio destino.*

Em tradução livre: 

Hoje também fará parte da história
da minha vida, mas não era o hoje
que eu queria quando era criança
hoje é um hoje diverso, sem gritos
afônico e cinza como uma fonte
hoje é o hoje de ontem manifestado
apenas na minha respiração prisioneiro:
ó, grandes nuvens, como fundarei
voluntariamente o meu passo
dentro daquele céu que abarca toda
toda a adversidade do meu destino.**

Nesses versos, o “eu” reflete insatisfeito sobre a situação atual de sua vida, que não condiz com aquilo que esperava para si próprio - e, aqui, consideremos uma relação íntima entre “eu” do poema e Alda Merini, para assim pensarmos na insatisfação da poeta com a condição de vida depois das duas décadas de internamento manicomial. A recorrência da palavra oggi [hoje] reforça a necessidade em lidar com o presente, imposta pelo próprio “eu”, é um auto-convencimento. Por mais que não o queira, faz parte da sua história. É um hoje morto como uma fonte cinza, sem água, sem vida e nem voz. A sua repetição é acentuada pela reincidência das letras que a compõem, e ressoam enfaticamente em termos como: grigio [cinza] e prigioniero [prisioneiro] (efeito que se perde na tradução para o português). Ainda assim, ecoam, mais suavemente, em quase todas as palavras usadas no poema, que repetem continuamente o som do “o” e do “i”. Distanciam-se destes, como que em oposição, as palavras: vita [vida], storia [história] e bambina [menina/criança]. Rompida a inocência dos sonhos e dos planos de vida, resta o agora, com o qual deve-se lidar ao enfrentar o passado.

Esses ecos formam uma paisagem cinza e apática, e fazem alusão aos vinte anos de internamento, em que a experiência humana da autora é reduzida a quase nada, visto que em muitos de seus relatos (presentes na obra L'altra verità, 1986, por exemplo) a autora explora o aspecto desumano e cruel com que eram tratados os pacientes manicomiais tanto dentro quanto fora dos hospitais psiquiátricos - como quando comenta que "pelo modo como reduziram [a nós ex-pacientes manicomiais] socialmente, não se pode mais viver, até porque a sociedade nos é hostil"; ou ainda, "as enfermeiras, mulheres sem nenhuma cultura, que não sabiam nada sobre Freud, nem mesmo haviam ouvido falar a seu respeito, nos tratavam como escravas" -, isso sem contar o efeito de estagnação e horror causado pelos tratamentos de choque. Então, esses dias de prisão cinza e sem vida são evocados com insatisfação e sensação de injustiça nos versos de Anche l'oggi sarà dentro la storia.

A obra Destinati a morire é a primeira tentativa da autora de retomar a escrita enquanto ofício, visto que nos anos finais de seu internamento manicomial o médico Enzo Gabrici, que escreveu o prefácio da obra Lettere al dottor G (que se refere justamente a Gabrici, a quem Merini dedicou alguns poemas), havia recomendado terapia por meio da escrita como forma de buscar fazer com que Merini reestabelecesse uma estabilidade emocional e subjetiva. É uma obra que recolhe poemas de antes e de depois do internamento manicomial e, portanto, se configura como uma forma de colmatar o período de silêncio. A questão da loucura e da experiência nos manicômios é tema recorrente a partir de então.

*Há uma leitura do poema disponível aqui.
**A tradução deste poema tem objetivo essencialmente de facilitar a compreensão para o público leitor.


como citar: GHISI, Agnes. Ecos do manicômio num poema de Alda Merini. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.4, abril. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209884