La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Notas sobre a paixão da leitura em Michele Mari, por Victor Rafael Gonçalves Bento






Michele Mari. Foto de Emiliano di Mauro.


Uma leitura bem-feita [...] nada mais é que a verdadeira, que a autêntica e, acima de tudo, a real culminação do texto, que a real culminação da obra; é como um coroamento, como uma graça particular e final [...] Trata-se, literalmente, de uma cooperação, uma colaboração íntima, interior [...] e também uma elevada, uma suprema, singular e desconcertante responsabilidade. É um desígnio maravilhoso e quase assustador que tantas grandes obras, que tantas obras de grandes homens e de homens tão grandiosos possam ainda receber algo em acréscimo, uma finalização, um coroamento feito por nós [...] por nossa leitura. Que responsabilidade assustadora, a nossa. [2]




1.

           George Steiner, num magistral ensaio chamado “O leitor incomum”, faz uma distinção entre leitor clássico e o leitor de nossos dias. O primeiro tem sua imagem pintada por Jean-Baptiste-Siméon Chardin no quadro Le philosophe lisant de 1734. O segundo renunciou à autoria, ao auctoritas, e vagueia absorto no mundo. A “arte clássica da leitura”, como definiu e analisou Steiner a partir da pintura de Chardin, caracteriza-se pelo encontro cerimonioso entre leitor e o livro, para o qual o leitor investe sua melhor roupa e um chapéu para o que seria quase uma espécie de culto, como um estudioso da Torá; essa leitura carrega consigo, ainda, uma ampulheta, que indica a vida eterna do livro e a vida efêmera do leitor, do homem; três medalhões pousam sobre a mesa: é a continuidade do texto nas inscrições dos objetos; os fólios, os livros atrás do leitor, evidenciam seu apreço pela biblioteca; por fim, a pena, essa extensão da mão que permite o mudo diálogo entre leitor e autor. Toda essa iniciação à leitura, que encontra no Ocidente seu período mais intenso, entre os séculos XVIII e XIX, tem como centro uma única exigência: o silêncio. É preciso que o leitor de Chardin se recolha no interior da leitura para ouvir calmamente as palavras.
            Tornou-se obsoleto para nós, como aponta Steiner (2018), o encontro tão formal do leitor com o livro – vemos isso ainda em raras ocasiões como a leitura da bíblia e da Torá. Nosso tempo de leitura é cronometrado, e a velha concepção do “livro da vida” caiu por terra, com a mudança na crítica literária da noção de obra e autor. A pena do philosophe lisant se tornou uma caneta imperiosa com objetivos puramente acadêmicos. O silêncio que nos é caro é interrompido pelo toque do celular, uma ligação desconhecida, um fone de ouvido que conduz a atenção a outros níveis – para alguns, a única forma de ler é ouvindo música. Teríamos, portanto, perdido essa aura que envolve a leitura? Tornamo-nos “leitores menores”? Qual a importância que damos aos livros e a leitura?
Le philosophe lisant, Jean-Baptiste Chardin, 1734.


2.

           O conto “Oito escritores” de Michele Mari, dentre outras características, é uma celebração do ato de ler. Nele, Mari põe em disputa os grandes autores e suas grandes obras que formaram e formam a escrita e o pensamento do escritor italiano de Milão; autores que são, a um só tempo, um único autor; obras que são uma única obra. Poe, Stevenson, Defoe e outros compõem o mapa de navegação daquele que, quando menino, devorava os livros de aventura. Em relação a isso, Mari nos diz, em uma entrevista à revista Il Libraio de 2018[3], que ter escrito seu romance de aventura Roderick Duddle foi uma espécie de regressão àquela fase da infância, na qual ainda temos a ingenuidade, a pureza que nos permite aventurar-se pela leitura. Em “Oito escritores”, sua infância leitora também é retomada, e agora ela precisa pagar com o próprio sangue o preço da consciência crítica do Mari adulto.
            Em “Oito escritores”, o pequeno Mari precisa encontrar aquele escritor que destoa dos demais, aquele cuja voz lhe deu um “narrar disforme”. Tal busca se assemelha a uma aventura em alto mar, comportando todos seus ganhos e perdas e diante da qual não é possível parar; ainda que doa no próprio menino, é preciso que ele lance ao Asfódelos um a um os suspeitos, sem cometer a injustiça de estar privilegiando algum. Sobram Melville e Stevenson, e ambos formam o mundo como o dia e a noite, cada um com seu reino  a harmonia do universo segundo a mitologia grega. Porém, já em vias de progredir na sua navegação, sobem à luz os escritores que foram descartados, e quando a sangria do “narrar disforme” parecia já estancada, ela reabre-se novamente. O próprio Mari nos elucida esse final, que é, todavia, um começo:
[...] Sim, e também este [Oito escritores] é um conto sobre crescimento. Crescer, fundamentalmente, quer dizer aprender a crítica, a arte da distinção, a arte da separação, as hierarquias, as diferenças [...]. No que diz respeito ao sentido final do conto, é mais importante a última página do que todas as outras. É como aprender etiqueta, aprender a comer bem na ponta da língua e depois dizer para si: ‘Bem, agora conheço as regras, então quando acontecer de eu ser convidado pelo embaixador poderei comer corretamente, porém em casa prefiro comer o frango com as mãos’. Trata-se de aprender alguma coisa para ter o luxo, em certo sentido, de regredir”[4].
            Essa estonteante viagem que avança regredindo, também pode ser lida como uma metáfora do próprio movimento da leitura e da escrita do estudioso: studiare e stupire (estudo e espanto), nos diz Agamben (2016), é o ritmo do estudo de quem recebeu um choque diante daquilo que o tocou, e experimenta momentaneamente um estado de estupefação, sente-se incapaz de progredir no estudo; porém, essa estupefação do que o estudioso aprende é o que o faz querer retornar para esfera do estudo e ir adiante na sua tarefa. É nessa alternância entre sofrimento e paixão, obscuridade e clareza, que embarcamos na viagem fantástica da leitura e do estudo. No caso de Mari, “lia como que mergulhado numa grande treva atravessada por relâmpagos e sulcada por sutis rastros luminosos”[5].

3.

           Mari é apaixonado pelo antigo. Sua aversão ao novo atinge o ponto de, ao ver uma embalagem de shampoo no supermercado com os dizeres “nova fórmula”, de pronto, recusa-se a comprá-lo. Gosta de cultivar a tradição. Como não seria, portanto, o pequeno Mari  um “leitor clássico”? Seus gostos e referências possuem, evidentemente, inclinação para os clássicos antigos. Isso não quer dizer que Mari seja um nostálgico ou algo do tipo, antes um anacrônico no sentido rigoroso do termo: aquele que toma o tempo presente como uma força disruptiva e pode, através dela, compreender que o passado está sempre passando. “Oito escritores” reflete isso em potência ao revisitar suas leituras de infância e fazer delas uma nova experiência.
            Ora, seguindo o princípio de Steiner (2018) de que a arte clássica da leitura se trata “de um silêncio vibrante de emoção e de uma solidão abarrotada de vida [e que] a pesada cortina separa o leitor do resto do mundo – do que é mundano”[6], o pequeno Mari que encontrou na biblioteca de seus avós o exemplar de La freccia nera de Stevenson e o leu em três dias, sente esse véu de separação entre o pesado silêncio da leitura e a vida comum:
Terminada em três dias a leitura, justamente no momento indefeso que vem depois da ilusão fantástica, quando, do luxo, somos restituídos à necessidade de nossa vida e, depois de abandonar uma plenitude de significados, ainda não conseguimos recuperar uma outra (e, na verdade, parece-nos que nunca mais poderemos recuperá-la de modo tão veloz e tão profundo, como quando estávamos em harmonia com aqueles punhais, com aquelas criptas, com aquelas astronaves).”[7].
            Os livros e a leitura têm a potência necessária para uma vida mais feliz. Apesar de – e por causa de – suas páginas tétricas e obscuras, sua leitura nos encanta e apaixona. Ainda que Mari exalte “aquele livro que exerce quase uma violência física no leitor”[8], não pode deixar de lê-lo ou escrevê-lo para fazer estancar a sangrenta infância, ou, justamente aí, fazê-la retornar a jorrar.

4.

           Mari resguardou a memória dos clássicos. Como ele mesmo diz, em entrevista à revista Il tascabile[9]: “Eu, quando escrevo, por mais autocentrado e autorreferencial que seja, sinto-me como uma espécie de porta, que permite a comunicação com os séculos passados, sinto-me uma espécie de passagem, um órgão através do qual a tradição revive”. Num mito de Roma narrado por Plutarco[10], conta-se que Rômulo, ao fundar a cidade eterna, cavou uma fossa circular onde hoje é o Foro Romano, e nela lançou as primazias de todas as coisas. Esta fossa circular, nomeada mundus, era fechada por uma pedra, a manalis lapis (lápide), que ficava fechada durante o ano todo, exceto três dias, marcados no calendário romano como mundus patet, ou o “mundo está aberto”. Eram três dias solenes e de festa, nos quais era proibido qualquer atividade produtiva. Quando se anunciava o mundus patet, isto é, a abertura da manalis lapis, todos os segredos enterrados vinham à tona, então instaurava-se uma comunicação entre vivos e mortos, entre céu e inferno, o passado imemorial que tocava o presente. Nesse sentido, Mari parece compreender uma lógica em que o único modo de acesso ao presente é abrindo a porta do passado, ou melhor, a soleira que confina esses tempos – ele mesmo é essa soleira –, para fazer com que as almas dos defuntos, os fantasmas portadores de outros tempos, revivam e convivam no presente.
Tal como no philosophe lisant há uma luz que ressalta a página do livro e o rosto do lecteur, e que leva Steiner junto com Chardin a essa irrefutável conclusão: “ler bem é ser lido pelo que se lê”[11], Mari é atravessado por todos os fantasmas da tradição, e o fato de ainda pulsar nele isso que para muitos foi enterrado, demonstra que ainda existem leitores que praticam a “arte da leitura clássica”.
            Assim, uma sociedade, que a partir da metade do século vinte vai se liberando aos poucos da exigência e profundidade que uma lecture bien faite [leitura bem-feita] proporciona, que atrofia sua memória, não mais aprende de cor, não tem mais poemas dos grandes poetas na ponta da língua  – porque reconhecer a monumentalidade de um escritor é a chaga da época –, essa sociedade atrofia também o próprio ato de leitura, e a paixão implícita torna-se penosa, arrastada. Como diz Steiner: “A pólis grega via a si mesma como um veículo transmissor orgânico dos ensinamentos de Homero, da pressão estabelecida pelos precedentes heroico-políticos estabelecidos por ele”[12].
            Para Steiner, a definição de intelectual é o leitor de lápis em punho. Mari é um intelectual. Ora, o menino do conto “La freccia nera” e “Oito escritores” é um verdadeiro leitor de lápis em punho. No primeiro, sua atenção se demora em uma única frase, meticulosamente ele separa uma a uma as palavras das duas edições, compara-as, reflete sobre elas, opõe e liga seus significados. Já em “Oito escritores” ele risca, apaga e sublinha os pensamentos dos grandes escritores, aponta essa e aquela característica que lhe marcou. Isso demonstra que o leitor é capaz de escrever aquele livro que está lendo, pois ele se põe em jogo com o próprio autor.
            Porém, a lição mais importante nesse momento para nós é a seguinte: com o declínio da leitura apaixonada, a memória atrofiada, o desgosto pelos clássicos, aquilo que para a pólis grega ou para um menino da era vitoriana era uma informação ou leitura corriqueira, como ler Homero ou fazer escansão de versos, para nós tornou-se hermético. Encontrar pistas nas leituras de hoje que levam a Dante, Virgílio e toda uma tradição latina ou grega que aguarda os três dias do mundus patet, é tarefa difícil para o século XX e XXI. Nesse sentido, Mari superou o leitor comum e sua paixão o tornou um leitor incomum, raro. Que responsabilidade assustadora, a nossa.

Biblioteca de Michele Mari, em Milão. Foto de Emiliano di Mauro.


Referências

AGAMBEN, G. Ideia da prosa. Trad., prefácio e notas João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
MARI, M. Oito escritores. Trad. Andrea Santurbano. São Paulo - Florianópolis: Rafael Copetti Editor, 2019.
______. Tu, sanguinosa infanzia. Torino, Einaudi, 2009.
SEVIGNANI, L. L. Giorgio Agamben. Altro-ritratto nello studio. 2019. 85-86 p. Corso di Laurea Magistrale in Filologia e Critica Letteria - Dipartamento di Lettera e Filosofia, Università degli Studi di Trento, Trento. 2019.
STEINER, G. Nenhuma paixão desperdiçada. Trad. Maria Alice Máximo. São Paulo: Editora Record, 2018.

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[2] Charles Péguy, apud George Steiner. “O leitor incomum”. In: Nenhuma paixão desperdiçada. Trad. Maria Alice Máximo. São Paulo: Editora Record, 2018.
[3] Disponível em: <https://www.illibraio.it/michele-mari-intervista-915499/>. Acesso em: 11/04/2020.
[4] “Sì, e anche questo è un racconto sulla crescita. Crescere fondamentalmente vuol dire imparare la critica, l’arte della distinzione, l’arte della separazione, le gerarchie, le differenze [...]. Per quanto riguarda il senso finale del racconto, è più importante l’ultima pagina di tutte le altre. È come imparare l’etichetta, imparare a mangiar bene in punta di forchetta e poi dirsi: ‘Bene, adesso so le regole quindi quando capiterà di essere invitato dall’ambasciatore potrò mangiare come si deve, però a casa mia preferisco mangiare il pollo con le mani’. Si tratta di imparare qualcosa per avere il lusso, in un certo senso, di regredire”. Tradução minha.
[5] MARI, M. Oito escritores. Trad. Andrea Santurbano. São Paulo – Florianópolis: Rafael Copetti Editor, 2019. p. 4.
[6] Steiner, id., p. 22.
[7] "Finita la lettura in capo a tre giorni, proprio nel momento indifeso che succede all’illusione fantastica, quando da quel lusso siamo restituiti alla necessità della nostra vita e abbandonata una pienezza di significati non be abbiamo ancora recuperata un’altra". Tradução minha. In: MARI, M. “La freccia nera”. In: Tu, sanguinosa infanzia. Torino, Einaudi, 2009.
[8] Mari, id., p. 36.
[9] "Io quando scrivo, per quanto autocentrato e autoriferito, mi sento una specie di porta che mette in comunicazione con i secoli passati, mi sento una specie di passaggio, un organo attraverso il quale la tradizione rivive". Tradução minha. Entrevista de 2016. Disponível em: <https://www.iltascabile.com/linguaggi/intervista-a-michele-mari/>. Acesso em: 11/04/2020.
[10] SEVIGNANI, L L. Giorgio Agamben. Altro-ritratto nello studio. 2019. 85-86 p. Corso di Laurea Magistrale in Filologia e Critica Letteraria - Dipartamento di Lettere e Filosofia, Università degli Studi di Trento, Trento. 2019. Disponível em:<https://www.researchgate.net/publication/337335766_Tesi_di_Laurea_Magistrale_DISSERTACAO_in_Filologia_e_Critica_Letteraria>. 
[11] Steiner, id., p. 19
[12] Steiner, id., p. 26


como citar: GONÇALVES, Victor. Notas sobre a paixão da leitura em Michele Mari. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.5, jun. 2020. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209832