La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Objetos poetantes: um poema de Guido Cavalcanti, por Patricia Peterle


Projeto Valerio Magrelli - Millennium Poetry: Viagem sentimental na poesia italiana

Uma escrita em negativo, despersonalização do próprio sujeito que escreve, uso do soneto e, ao mesmo tempo, recurso de formas dialogantes, todos esses são traços que podem ser atribuídos à poesia moderna. Ou, pelo menos, a certa tendência da poesia de romper com algumas categorias tradicionais, em especial modo com a chamada lírica. Até aqui tudo bem!
Acontece que essas marcas já podem ser encontradas na poesia medieval italiana, nos textos de Guido Cavalcanti (1255-1300), poeta do Dolce Stil Novo. Poeta dramático, melancólico e irônico, que sabe usar muito bem os instrumentos de seu laboratório – como veremos no poema abaixo –, criando inclusive uma dramaticidade, uma performance completamente inovadora na articulação das palavras no verso e nas construções semânticas de seus textos. Um poeta medieval que antecipa a modernidade? Provavelmente sim.
Sem título , 1948. Saul Steinberg Papers, Beinecke Rare Book and Manuscript Library, Yale Univ.

A beleza sobre-humana da mulher e sua contemplação, características mais evidentes do Dolce Stil Novo – movimento do qual participaram Guido Guinizelli e Dante Alighieri – , dividem o palco da página em branco, quando se fala em Cavalcanti, com o lado trágico do amor, das sensações por ele enxertadas na alma e na mente (intelecto) até uma espécie de aniquilação das potências vitais[1]


Os traços do irracional, da afecção e da violência, alguns dos desdobramentos do amor, estão relacionados com uma visão averroísta, com um frutuoso conúbio entre poesia e filosofia, que perpassa pela Idade Média. Nesse sentido, o eixo Amor-Morte, considerando a performance inerente aos elementos de cada poema, aparece mediado por desvios que a mão do poeta vai delineando, por meio de algumas ações como “ver” e “dizer”. Não poderiam ser casuais, como aponta Maria Corti, as diversas ocorrências desses verbos ou dos substantivos a eles relacionados na poesia cavalcantiana.[2] A dramatização toma corpo também por meio da presença dos “spiriti” ou “spiritelli” que animam a cena poética ao inquietarem e perturbarem, sensações advindas, no mais das vezes, do olhar fulgurante e desnorteante. O olhar é, sem dúvida, um limiar entre o dentro e o fora. 
De dentro para fora e de fora para dentro, é justamente esse movimento complementar que parece ser intrínseco aos poemas de Cavalcanti. É, ainda, por meio dele que as sensações de fraqueza, medo, aflição, angústia, apreensão, espera, fruto de um evento, que pode ser o olhar, vão tomando para si a “encenação poética”. A escrita de Guido Cavalcanti traz, nesse sentido, traços de teatralidade, como alguns críticos já assinalaram: teatralidade, portanto, no som, no ritmo, nos movimentos, às vezes cíclicos, que o próprio poema constrói. 
O soneto abaixo, “Somos as tristes penas aturdidas” [Noi siàn le triste penne isbigotite], é um dos mais famosos. Nele, os protagonistas são os instrumentos da escrita que parecem estar à procura de alguém que os possa acolher:





Noi siàn le triste penne isbigotite,
le cesoiuzze e ’l coltellin dolente,
ch’avemo scritte dolorosamente
quelle parole che vo’ avete udite.

Or vi diciàn perché noi siàn partite
e siàn venute a voi qui di presente:
la man che ci movea dice che sente
cose dubbiose nel core apparite;

le quali hanno distrutto sì costui
ed hannol posto sì presso a la morte,
ch’altro non v’è rimaso che sospiri.

Or vi preghiàn quanto possiàn più forte
che non sdegn[i]ate di tenerci noi,
tanto ch’un poco di pietà vi miri 



Somos as tristes penas aturdidas,
tesourinhas e lâmina dolente,
que escrevemos dolorosamente
aquelas palavras por vós ouvidas.

Vamos contar de nossas despedidas
e por que a vós viemos ao presente:
a mão que nos movia conta que sente
coisas dúbias no coração surgidas;

as quais tão destruíram este ser
e o deixaram assim à beira da morte,
que nada mais restou senão o lamento. 

Vamos rogar ora quanto mais forte
para que nos deixais permanecer,
até que algum dó vos abra um alento
(traduçao Patricia Peterle)



                  Os objetos da escrita ganham vida nos versos de Cavalcanti, são eles que falam. Poderíamos então, afirmar que são “objetos poetantes”. O primeiro verso já chama a atenção por sua modernidade. São as “tristes penas aturdidas”, ou seja, estarrecidas, que falam e ao mesmo tempo se apresentam ao lado de outros objetos, as tesourinhas e lâmina – as dramatis personae.[3] O que chama a atenção, aqui, é o estado de angústia e aflição em que se encontram esses instrumentos que, agora, não se dirigem mais ao poeta, mas sim à amada ou ao leitor. A repetição e a rima de “dolente” e “dolorosamente” acentua esse estado de alma. Se o primeiro quarteto contextualiza a situação desses objetos-sujeitos, personificados pelos sentimentos descritos, o segundo explica o motivo do estarrecimento, a mão que fazia uso deles diz que sente coisas dúbias (no sentido de terríveis) que surgiram em seu coração. É interessante notar que nessas estrofes a figura do poeta não está em primeiro plano: sua presença é dada por elementos indiretos indo desde as tristes penas, tesourinhas (elementos externos ao corpo do poeta) até às partes do corpo como a mão, essencial para o ato de escrever, e o coração, espaço dos sentimentos e de vitalidade (elementos internos ao corpo do poeta). O “eu” do poeta é substituído pelos “nós” dos instrumentos para escrever. Do poeta não se sabe praticamente nada, como fica registrado na forma pela qual ele é trazido no primeiro verso do primeiro terceto do soneto: a partir do pronome demonstrativo “costui”[4], que na tradução resultou na substantivação do verbo ser. Essa espécie de distanciamento talvez resulte da falta de “inteireza”, uma vez que na construção e na finalização desse terceto, se descobre que do poeta restam apenas suspiros, gemidos, lamentos. Da mão “certeira” que movia e mexia os instrumentos, apontando para uma fisicidade e concretude corporal – a partir de um detalhe –, o que sobra é uma voz que não articula palavras como antes, mas que geme.
            É com o anafórico “Vamos” [Or] que no terceto final, uma vez já tendo explicitada a partida e seus motivos, esses instrumentos tomam a liberdade para ir ao encontro de uma outra “mão”, por isso eles rogam para que não sejam desprezados e para que suas preces possam causar piedade em quem os escute. O sofrimento nesse soneto parece estar presente em cada verso, mas há, paradoxalmente, um tom de allegretto que embala e dá o ritmo. Talvez seja esta uma lição apreciada por Giorgio Caproni no último dístico de “La gente se l’additava”: “che sembri scritta per gioco, / e lo sei piangendo: e con fuoco”.
Poema que faz parte do livro Il seme del piangere (1959) e que possui uma série de relações já estudadas com a poesia cavalcantiana. Não é à toa que, com isso, um outro nome do século XX pode ser lembrado, não mais de um poeta, mas de um prosador que delineou alguns traços da literatura por vir: Italo Calvino. De fato, em Seis propostas para o próximo milênio, livro fruto do convite para participar dos encontros "Charles Eliot Norton Poetry", na Universidade de Harvard, a primeira conferência é dedicada à “Leveza”, que ecoa tanto nos versos de Cavalcanti como nos de Caproni. Afirma Calvino: “Quero pois dedicar essas conferências a alguns valores ou qualidades ou especificidades da literatura que são particularmente caros, buscando situá-los na perspectiva do novo milênio”.[5]
            Há uma demanda, no poema de Cavalcanti, por parte dos instrumentos que o poeta deixou de usar, pois querem continuar a escrever. O sofrimento amoroso não é um tema leve, mas, como bem lembra Calvino, ele “se dissolve em entidades impalpáveis”[6]. A escrita da poesia é vida, ou seja, dá sentido à vida desses instrumentos. Uma operação mais do que moderna, que coloca a elegante e refinada poesia de Cavalcanti, anacronicamente, num diálogo direto com a nossa contemporaneidade. A forma dialogante, os instrumentos que endereçam sua prece por piedade para uma suposta amada ou leitor, é mais uma inscrição no signo do moderno e no traço de teatralidade.
Esse caráter moderno foi percebido por alguns poetas que revisitam em vários e diferentes momentos seus poemas. Aqui, seria impossível registrar todas as ocorrências, mas gostaria de citar algumas emblemáticas. T.S. Eliot, em Ash-Wednesday (1930), propõe uma variação de uma das baladas mais famosas de Cavalcanti, também conhecida como balada do exílio: “Because I do not hope to turn again”. “Perch’i’ no spero di tornar giammai”, central para pensar o “eu” como um personagem, balada que possui uma série de ligações com o soneto das “tristes penas aturdidas”, é também revisitada por Giorgio Caproni na abertura do já citado Il seme del piangere (1959), ou nos versos anafóricos de Antonella Anedda: “Perché non spero eccomi nel lutto”, “Poiché non spero più che avanzando [...]” e “Poichè non spero più resto davanti alla mia forma”, no poema “Corsica 1980”, em Salva com nome (2012). Mas não seria possível não lembrar da tradução e dos textos dedicados por Ezra Pound à poesia de Cavancati.[7] Pound, Cavalcanti e Haroldo de Campos formam sem dúvida uma triangulação. O poeta e teorizador da Poesia Concreta recorre mais de uma vez aos poetas do Dolce Stil Novo em diferentes momentos. É a Guido Cavalcanti, mestre e amigo de Dante, a quem Haroldo recorre para pensar e refletir sobre o autor da Comédia. Abre-se aqui um vórtice de leituras, traduções e contaminações, nas palavras do próprio Haroldo: “traduz (treslê?/ tresluz)”. Temos um Cavalcanti que chega a Haroldo, via Pound, via Dante.[8] Esses entrelaçamentos, trans(entre)tecido”, ficam mais claros no volume Pedra e luz na poesia de Dante Alighieri (1998), no qual encontramos uma proposta de tradução para o português da mesma balada cavalcantiana acima mencionada. “Porque eu não espero retornar jamais, / Baladeta, à Toscana / Vai então, reta e plana” são os primeiros versos da tradução de Haroldo que, nas páginas seguintes desse pequeno e precioso volume, assumem também uma coloração própria: “Porque eu não espero retornar jamais / à Lira Paulistana, / Diz aquela Diana [...]”
Retomando a poesia italiana mais recente, e ainda recorrendo aos versos de Antonella Anedda, em Salva com nome (1992), em que os instrumentos entre escrita e costura se hibridizam, os versos “so cosa si prova a essere sopraffatti / so cosa significa scivolare via dalla vitauna pelle più nuda” evocam os cavalcantianos de “Somos as tristes penas aturdidas”. A refinada métrica e o embalo das rimas, junto com os espíritos mais corpóreos podem ser alguns dos elos que podem conduzir a outra poeta, Patrizia Cavalli, sem falar do papel importante que o olhar tem em sua poética. Vejamos os seguintes versos: “tutti i miei sensi raccolti in uno / che era tutti e non era nessuno. / Un impasto densissimo amoroso”, último poema de L’io singolare proprio mio. Ironia, musicalidade e pensamento fazem parte da alquimia cavalliana. 
Num outro viés, num hic et nunc, em sua última coletânea Enrico Testa, cavalcantianamente, se estica e escala as tombas do cemitério abandonadas, recuperando uma imagem do poeta medieval, consagrada em uma das novelas do Decameron – também lembrada por Calvino. Nos versos de Cairn (2018), o eu poético aparece numa busca, como as “penas aturdidas”, com aquilo que também lhe é muito caro, não a amada, mas as sombras caras de sua infância. E os versos são um meio de mantê-las vivas. O sofrimento amoroso tratado por Cavalcanti, na visão de Calvino, traz uma trindade que provavelmente retorna nesses versos de Testa: 1) é levíssimo; 2) está em movimento; 3) é um vetor de informação – (“a literatura como função existencial, a busca da leveza como reação ao peso do viver”[9]).
The Spiral, 1966. Saul Steinberg Papers, Private collection.

Enfim, retomando mais uma vez Italo Calvino, no texto dedicado a Saul Steinberg, que se dirige, agora, diretamente ao soneto de Guido Cavalcanti, ele afirma: “é um soneto que fala de dores quase em cada verso, contudo seu efeito, sua música, é um alegro com brio de uma extraordinária leveza”.[10] Segundo o escritor de As cidades invisíveis, esses versos abrem a poesia moderna e será preciso esperar o Mallarmé de “Brisa Marinha” para perceber que o lugar onde se situa a poesia é, justamente, a página em branco: “Este papel vazio com seu branco anseio”, na tradução de Augusto de Campos.

A lição de Guido Cavalcanti parece evidente na poesia de Valerio Magrelli, que a elege em Millennium Poetry, para inaugurar – junto com outros textos iniciais da literatura italiana – um percurso totalmente pessoal e inédito que nessa antologia vai das origens até o século XX. Incursão que trata de eleições, escolhas e descartes. É justamente a leveza, identificada por Italo Calvino em Cavalcanti, que parece atrair Magrelli, poeta este também da leveza. “Que a matéria provoque o contágio” é um verso de Exercícios de tiptologia, em 66 poemas (2019), que poderia se conectar a outros momentos como a reflexão sobre o planejamento das coisas e da vida: “essa mecânica uniforme / que indica a sabedoria do espírito / não conduz até ele nossa mente / que vagueia em busca de outras razões”. Magrelli expõe seus instrumentos mais íntimos, mesmo quando eles parecem mais desgastados ou deteriorados: “Estou apontando o pensamento / como se o fio estivesse gasto / e o traço agora opaco. / Os olhos se consomem como lápis [...]”, versos lidos em 66 poemas. As diferentes operações realizadas por cada um desses poetas e ainda por tantos outros que não foram mencionados, além do próprio Magrelli, pode estar sintetizada num poema de poucos versos que expõe os gestos que se cruzaram nessas linhas:

O poema

Os poemas devem ser sempre relidos,
lidos, relidos, lidos postos para carregar;
cada leitura efetua a recarga,
são aparelhos para recarregar sentido:
e o sentido aí se acumula, zunido
de partículas à espera,
suspiros retidos, tinidos,
de dentro do cavalo de Troia.[11]


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Essa é a primeira postagem do projeto Valerio Magrelli - Millennium Poetry: Viagem sentimental na poesia italiana, iniciativa promovida pelo Istituto Italiano di Cultura di São Paulo durante esta Pandemia de Covid-19.

“Cruzaremos oito séculos de poesia italiana seguindo um percurso autoral. Exclusivamente para o público do IICSP, graças à colaboração da Editora Emons, o poeta Valerio Magrelli apresenta e ilustra em áudio trechos da própria particularíssima antologia de poesia italiana. A proposta é enriquecida pelas traduções e comentários (literatura-italiana.blogspot.com) em português dos professores Patricia Peterle e Andrea Santurbano da UFSC e Lucia Wataghin da USP.”

Os trechos serão publicados pelo canal YouTube do IIC nas datas abaixo. Para acessar, é preciso estar inscrito na NewsLetter do IICSP.






[1] CONTINI, Gianfranco (Org.). Poeti del Duecento. Vol. 2. Milano, Napoli: Riccardo Ricciardi, 1960, pp. 487-490
[2] CORTI, Maria. “Introduzione”. In: CAVALCANTI, Guido. Rime. Milano: BUR Rizzoli, 1992, pp. 5-25.
[3] O léxico presente nesse soneto retorna em alguns outros poemas de G. Cavalcanti, formando uma espécie de constelação de sua própria obra. Para o termo “isbigotite” (arturdidas), ver REA, Roberto. “Per il lessico di Guido Cavalcanti: sbigottite”, In: Critica del testo, VI/2, 2003.
[4] A rima no texto em italiano entre “costui” e “noi” é uma rima perfeita, que vem da tradição siciliana.
[5] CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 11.
[6] Ibid., p. 24.

[7] POUND, Ezra. Pound's Cavalcanti: An Edition of the Translation, Notes, and Essays. Org. David Anderson. Princeton: Princeton University Press, 1983.

[8] Interessante notar que o procedimento de Haroldo, a saber, ler Cavalcanti a partir de Dante também havia sido já empreendido por Gianfranco Contini. A relação com Cavalcanti é fundamental para Dante, basta pensar nos textos dedicados ao amigo, à sua presença na própria Comédia e na Vida Nova. Para uma leitura crítica dessas relações, ver o ensaio de Andrea Lombardi “Haroldo de Campos e a interpretação luciferina”.
[9] CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 39.
[10] CALVINO; Italo. “A pena em primeira pessoa (Para os desenhos de Saul Steinberg). In: Assunto encerrado – discursos de literatura e sociedade. Trad. Roberta Barni. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 349.
[11] Todos os poemas de Valerio Magrelli têm como referência sua antologia brasileira. MAGRELLI, Valerio. 66 poemas. Trad. Patricia Peterle e Lucia Wataghin. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2019.



como citar:  PETERLE, Patricia. Objetos poetantes: um poema de Guido Cavalcanti. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.4, abril. 2020.Disponível em 
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209880