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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Elvira Seminara
Nosso tempo
Pandemia
em
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Roma. Piazza di Spagna. 15 de março de 2020. 12 horas. skylinewebcams
Antes de mais nada, por honestidade, me delato. Eu
não leio. Desde que começou a quarentena, eu, que sempre li por trabalho, paixão
e feliz automatismo, parei de ler romances. Abri muitos, degustados e folheados,
mas depois, todas as vezes, para meu espanto, abandonados. Sentia um vago desconforto, entre intolerância e um obscuro sentimento
de culpa, como se me imergir em outras histórias fosse uma espécie de deserção
do mundo, ou sinal de ignóbil distração.
Meus dias – segunda confissão – no início da
quarentena são longamente e obtusamente passados no sofá, diante da tv, perseguindo
ansiosa e vorazmente cada atualização sobre a epidemia.
Somente depois, perseverando na estranha
rejeição, entendi o que está por trás disso. É a percepção – antes opaca e pungente,
agora clara e consciente – de já viver, com a chegada do vírus, em uma grande
narração. Uma narração poderosa e envolvente, policêntrica, que não só diz
respeito a todos, mas se desenrola sob os nossos olhos com uma pluralidade de camadas,
uma variedade de vozes narrantes e uma mudança de paisagens capaz de transformar
cada romance já escrito em uma história limitada e monótona.
Estamos dentro de um hipertexto. O advento
do Covid 19 apagou e reescreveu nossas características sociais, nossos hábitos,
nosso modo de habitar o mundo. Desmembrou nossas estruturas temporais, os códigos
de acesso ao outro, a dinâmica relacional, nossa postura no espaço. A proxêmica consolidada do nascimento.
Aliás, repaginou nossas coordenadas elementares, forçando-nos a ativar novas
maneiras de leitura e consumo do tempo e espaço, em que o primeiro é achatado
em um presente contínuo e fragmentado, sem previsões ou possibilidades de
planos, o segundo reduziu-se ao espaço da casa.
Mudou o nosso pequeno mapa pessoal, de deslocamentos
e esperas, ações e microgestos domésticos. Quando ando
pela casa, a paisagem íntima e familiar revela sombras desconhecidas, porque
superexposta a um olhar e uma escuta nunca tão presentes. Torna-se perturbadora.
Você ouve a voz da geladeira que muda com o tempo, brusca e depois lenta, eleva-se
o barulho da lava-roupas, no jardim os pássaros são mais extrovertidos. Vejo pó
e teias de aranha com um olhar (por sorte) não tão intenso, aliás preventivo. E limpo, lavo tapetes, desinfeto,
com uma ansiedade depurativa, e uma obsessão nos limites da euforia, que me levam
a consertar, recuperar, sanear. Gosto
de ativar verbos de correção, como desenodoar, desincrustar,
podar, esvaziar. Mas dessa vez não em honra a Kafka, que escreve com o machado
para rachar a crosta das coisas – não, penso
em uma subtração previdente. Não há renascimento sem perda – de produção, de
consumo, de palavras, de rejeitos e escórias. Simone Weil o chama “decriação”,
e o atribui a um Deus decidido a nos ajudar.
Gostaria de tirar o excesso – admito – remover qualquer
camada de sujeira e desgaste das coisas, aliás, as próprias coisas com todos
seus testemunhos inúteis ou molestos. Todos os objetos de casa (mas é um
sentimento que já exprimi, isto é, antes do Covid), têm o vício feroz de testemunhar
contra você, e com frequência serem memória não desejada. Não acredita?
A verdade é que não me sinto reclusa. Sinto,
e vejo ao meu redor, a vida aumentada. Não é fácil, como se vê, contar meus
dias dividindo-os em horários e ações. Perdi-os e os embaralhei, para meu
alívio. Talvez só agora entenda completamente a leveza cruel e prodigiosa que
Calvino, em sua lição americana, atribui a Hamlet.
Não posso me sentir confinada quando o mundo até
agora conhecido desmorona e se decompõe, se renova e assume novas perspectivas,
outras formas de relação e de olhar. Um novo imaginário.
Porque todo o cenário ao redor mudou. E eu faço como
John Berger, que dele fez um manifesto artístico: leio o mundo. Como o texto dos
textos. Leio e admiro, sem o peso dos símbolos e do sentido, leio e basta,
rendendo-me ao espanto.
Moro em Aci Castello, e para fazer compras costeio
o mar. É suntuoso, mas no fundo tem o aspecto de sempre (talvez mais limpo, e com
odor mais intenso). Mas pouco depois, na frente do supermercado, o mundo desliza
e se deforma. Na fila, cautelosos e desconfiados, com aquela máscara e as luvas,
perecemos aliens de passagem, vindos à terra para buscar provisões e ir embora.
Medimos mudos, sem respirar, silabas e distâncias.
Na tv, vejo as ruas vazias do mundo, as praças
atônitas, as lojas fechadas. O jornalista diz que são espectrais, exânimes, mas
a topografia urbana, nas tomadas do alto, revela com graça cruel a
perfeição de nossa arquitetura, essas maravilhosas praças italianas afundadas em
uma soporífera inércia, em uma espera metafísica. Tristíssimas,
dizem as pessoas. Mas eu, para dizer a verdade, nunca vi as praças italianas do
centro histórico tão belas, nunca tão limpas, definidas, libertadas do peso de
uma humanidade apressada, da massa ávida de turistas e consumidores nada comovidos
ou desatentos pela beleza ao seu redor. Nunca me comovi tanto, com gratidão e espanto,
diante da obra majestosa dos artesãos, artistas e operários, que construíram a Itália
nos séculos.
Pode ser também por que amo Magritte e De
Chirico, mas, para mim, esses cantos das cidades, atônitos e límpidos não parecem
realmente “desertificados”, ao contrário, parecem mais sagrados. Porque a beleza
é suspensão, cuidado, e não consumo predatório.
Espero que ao fim da quarentena, aprendida
uma nova sobriedade e outra relação nos contatos, sejamos menos entusiastas de qualquer
antropização. O deserto é um
lugar maravilhoso, não o epigrama do fim. E talvez devamos deixar de considerar
que um espaço tenha valor quando está cheio de gente, que um livro valha quando
vende mais, e que um filme é bom porque enche salas.
O vazio, como o silêncio, é um valor em si, e o
pensamento Zen diz isso há milênios. É o contrário da anestesia, como se crê no
Ocidente. Se tanto, é um cheio diferente, feito de compaixão e detalhes.
Há outras coisas no meu dia que gostaria de
contar – por exemplo os encontros coletivos on-line de storytelling –, mas depois de ter exaltado a sobriedade e o vazio
me parece que devo me abster, e concluo.
Para transformar esse tempo em um salto espaço-temporal,
o novo intercâmbio pela web tem um papel importante. Quando trabalhamos em grupo
e vejo nas janelas alinhadas nossos rostos e vidas conectados, com os gatos e os
avós que dão uma espiada, o bolo ou o café na mesa, vejo os inquilinos do edifício-romance
de Perec, A vida, modo de usar. Falamos de histórias e literatura
por duas horas, conectados, mas na verdade o que construímos on-line e socialmente,
já é um romance coletivo, ou melhor, conectivo, como um
tecido trabalhado junto, em meio a retalhos, remendos, cortes e bordados.
Não sei se terá sentido amanhã contar o Backdown em um romance, porque será um déjà vu. Penso que é o que deveria fazer
toda escritora e todo o escritor. Deixar-se
contagiar – sim, contagiar – por um novo sopro do tempo.
Aci Castello, abril de 2020
Tradução de
Francisco Degani
Elvira Seminara é jornalista free lancer desde 1991, antes de se dedicar inteiramente
à narrativa,
foi redatora do jornal La Sicilia e colabora atualmente com L'Espresso. Seu romance de estreia, L’indecenza [A indecência] foi publicado
pela Mondadori em 2008 e venceu o Prêmio Literário Nino Martoglio.
Seguiram-se os romances I racconti del
parrucchiere [Contos do cabeleireiro] (2009), Scusate
la polvere [Desculpem o pó] (2011),
La penultima fine del mondo [O
penúltimo fim do mundo] (2013) e Atlante degli abiti smessi [Atlas das roupas aposentadas] (2015).
O presente artigo foi publicado na revista eletrônica Lo specchio di carta. Osservatorio sul romanzo italiano contemporaneo
como citar: SEMINARA, Elvira. DEGANI, Francisco. A quarentena, um hipertexto que derruba as paredes de casa . In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.5, jun. 2020.Disponível em
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209831 |
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