La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Arcádia, a insustentável leveza do verso, por Andrea Santurbano


Para compreender efeitos e repercussões da Arcadia, do poeta napolitano Jacopo Sannazaro (1457-1530), obra publicada em 1504, é preciso embarcar nas montanhas russas do tempo ou, em outros termos, estar disposto a aceitar certo descompasso cronológico. À maneira, se quisermos, de “uma noite no museu”. De outra forma, seria difícil reconstituir um mosaico que parte de Sannazaro, mas chega muito além: da poesia latina ao Humanismo renascentista, da formação das academias seiscentistas à Inconfidência mineira, de índios e mulatos no Brasil colonial, cantando árias de ópera italianas, a paisagens míticas e mitológicas da antiga Grécia. Sem falar de uma instituição cultural ainda hoje ativa.
Nicolas Poussin, Et in Arcadia ego, 1639, Musée du Louvre
Já estamos no auge de arcadismo, quando, nos começos de 1770, Basílio da Gama acompanha a remessa de seu famoso O Uraguai (1769) com uma carta: “Se venho de tão longe para apresentar um poema, cujo tema é inteiramente americano, sou apenas o intérprete dos sentimentos do meu país, e coube a mim essa honra depois de ter sido, mais de uma vez, intérprete dos seus”.[1] O destinatário é referência mundial na época em campo literário, tanto que havia sido nomeado poeta da corte imperial em Viena: trata-se de Pietro Metastasio, pseudônimo escolhido, segundo os preceitos árcades, por Antonio Domenico Bonaventura Trapassi, natural de Roma. A cultura dominante de então pregava a volta de um equilíbrio formal, inspirado em motivos e estilemas do mundo clássico. Não simplesmente um acomodamento aos clichés antigos, mas uma reação aos supostos excessos linguísticos e formais do barroco, pautada também na nascente filosofia racionalista. Metastasio, em particular, se fez protagonista da renovação de um gênero ainda relativamente novo, aquele “recitar cantando”, ou seja, o melodrama ou ópera, contando com um extraordinário e precoce talento poético (não custa lembrar que ele é letrista, como diríamos hoje, sendo seus libretos musicados por diferentes compositores, ao passo que, mais tarde, a fama, no melodrama e na ópera passaria a ser apanágio dos compositores). De fato, se durante o séc. XVII virtuosismos canoros e efeitos cénicos haviam dominado a cena, Metastasio atinge fama mundial dando clareza e musicalidade aos versos e enfatizando suas potencialidades emotivas e sentimentais. Era assim possível, por exemplo, conforme nos informa Sérgio Buarque de Hollanda, que o viajante francês Bougainville, passando pelo Rio de Janeiro em 1767, pudesse “assistir a um melodrama de Metastasio representado por mulatos, enquanto a orquestra era dirigida por um padre corcunda”.[2] Ou ver, segundo a já referida carta de Basílio da Gama, “as nossas índias chorarem com o seu livro na mão, e renderem homenagem não indo ao teatro sempre que o texto não é de Metastasio!”. Mesmo considerando o exagero de uma inegável retórica adulatória, pode causar surpresa pensar nessa grande repercussão da cultura e da língua italianas no Brasil de três séculos e meio atrás. 
Ora, tudo isso não teria acontecido se uma rainha sueca, Cristina, não tivesse se convertido ao catolicismo, em 1654, abdicado e se mudado um ano depois para Roma, estimulando e generosamente subvencionando a criação de um cenáculo cultural. Como acontece às vezes, nem sempre os pais (mães, nesse caso) de um projeto conseguem vê-lo plenamente realizado: de fato, Cristina morre em 1689 e só no ano seguinte é fundada a academia que agrega toda a herança cultural da experiência, dando origem a um movimento de grande alcance. Arcádia é o nome escolhido e, segundo reza a lenda, isso se deve a um dos participantes que teria exclamado: “Parece estar revivendo aqui a Arcádia!”. A referência é à antiga região da Grécia, transfigurada, graças sobretudo às éclogas de Virgílio – sem, contudo, esquecer de outras sugestões oriundas de Homero, Píndaro, Políbio –, numa paisagem mítica e ideal, sinônimo de singeleza, vida pastoril e hino à natureza. Mas o nome denuncia uma dívida evidente com outra obra mais recente e central no imaginário cultural desde o humanismo: a Arcadia de Jacopo Sannazaro, justamente.

Thomas Cole, The Arcadian (Pastoral State), 1836, New York Historical Society
Contradições de uma época: por um lado, galante, fátua, sonhadora, aristocrática; por outro, clássica, racional e até promotora de um associacionismo liberal, que garantiria, em tempos de absolutismos, um espaço franco de discussão, inclusive de ideias que servirão de base para os lumes. Contradições que, no fundo, marcam também o movimento arcádico. E se na Itália ele acaba se esgotando num efeito monótono e artificioso, no Brasil, mesmo tendo chegado como reflexo das modas europeias, será o prelúdio de uma realidade vivida, não apenas poética mas efetivamente, por força de um sentimento novo de comunhão com a própria terra. Ironicamente, enquanto a civilização europeia precisava recorrer ao mito de uma paisagem pura e incontaminada, a natureza brasileira já apresentava tais características, estimulando um sentimento novo na comunidade literária, ao mesmo tempo, de pertença, resgate e emancipação. Não por acaso, os próprios inconfidentes mineiros, assim como Basílio da Gama e muitos outros literatos da época, eram poetas árcades. Ou seja, a relação com a cultura italiana teria tido um papel fundamental na formação da identidade cultural brasileira, conforme a tese de Sérgio Buarque de Hollanda, contida principalmente nos Capítulos de Literatura Colonial (Brasiliense, 1991).
Uma vez esclarecido um tão rico e ramificado contexto, é possível agora entender melhor o peso específico da Arcadiade Sannazaro, para além de seu valor literário mais intrínseco. E talvez apreciar melhor seu “Prologo”, proposto a seguir, que dá a tônica a todo o livro. Fazendo apenas uma última premissa: a Arcadia é uma novela pastoril que pertence a um gênero hoje extinto, o prosimetrum, isto é, uma combinação de prosa e versos (no caso específico, doze éclogas precedidas por doze textos narrativos).  

Sogliono il più de le volte gli alti e spaziosi alberi negli orridi monti da la natura produtti, più che le coltivate piante, da dotte mani espurgate, negli adorni giardini a’ riguardanti aggradare; e molto più per i soli boschi i selvatichi ucelli sovra i verdi rami cantando, a chi gli ascolta piacere, che per le piene cittadi, dentro le vezzose et ornate gabbie non piacciono gli ammaestrati. Per la qual cosa ancora, sì come io stimo, addiviene, che le silvestre canzoni vergate ne li ruvidi cortecci de’ faggi dilettino non meno a chi le legge, che li colti versi scritti ne le rase carte degli indorati libri; e le incerate canne de’ pastori porgano per le fiorite valli forse più piacevole suono, che li tersi e pregiati bossi de’ musici per le pompose camere non fanno. E chi dubita che più non sia a le umane menti aggradevole una fontana che naturalmente esca da le vive pietre, attorniata di verdi erbette, che tutte le altre ad arte fatte di bianchissimi marmi, risplendenti per molto oro? Certo che io creda niuno. Dunque in ciò fidandomi, potrò ben io fra queste deserte piagge, agli ascoltanti alberi, et a quei pochi pastori che vi saranno, racontare le rozze ecloghe, da naturale vena uscite; così di ornamento ignude esprimendole, come sotto le dilettevoli ombre, al mormorio de’ liquidissimi fonti, da’ pastori di Arcadia le udii cantare; a le quali non una volta ma mille i montani Idii da dolcezza vinti prestarono intente orecchie, e le tenere Ninfe, dimenticate di perseguire i vaghi animali, lasciarono le faretre e gli archi appiè degli alti pini di Menalo e di Liceo. Onde io, se licito mi fusse, più mi terrei a gloria di porre la mia bocca a la umile fistula di Coridone, datagli per adietro da Dameta in caro duono, che a la sonora tibia di Pallade, per la quale il male insuperbito Satiro provocò Apollo a li suoi danni. Che certo egli è migliore il poco terreno ben coltivare, che ’l molto lasciare per mal governo miseramente imboschire.

Costumam, na maioria das vezes, as árvores altas e espaçosas produzidas pela natureza nas montanhas escarpadas, mais do que as plantas cultivadas nos jardins airosos, limpas por mãos sapientes, agradar a quem olha; e, mais ainda, os pássaros selváticos pelos bosques solitários, cantando nos ramos verdes, aprazer a quem os escuta, mais do que aqueles domesticados nas cidades apinhadas, dentro das graciosas e ornadas gaiolas. Pelo mesmo motivo, segundo creio, acontece que as canções silvestres, vergadas na casca áspera das faias, deleitam quem as lê não menos do que os cultos versos escritos nos papéis polidos dos livros dourados; e as enceradas siringes dos pastores oferecem, pelos vales floridos, um som talvez mais aprazível do que as tersas e valiosas flautas dos músicos fazem pelas pomposas salas. E quem duvida que não seja mais agradável para as mentes humanas uma fonte que brote naturalmente das pedras vivas, torneada de verdes plantinhas, do que todas as outras feitas com artifício de branquíssimos mármores, resplandecentes de muito ouro? Com certeza, acredito ninguém. Portanto, confiando nisso, vou poder bem contar, por essas encostas desertas, às árvores ouvintes e àqueles poucos pastores que lá estiverem, as rudes églogas, vindas da veia natural; expressando-as tal como, despidas de ornamento, sob as sombras deleitosas, no murmúrio das fontes limpidíssimas, as ouvi cantar pelos pastores da Arcádia; para as quais, não uma, mas mil vezes, os Deuses da montanha, vencidos pela doçura, prestaram atentos ouvidos, e as tenras Ninfas, esquecendo de perseguir os animais errantes, deixaram as aljavas e os arcos aos pés dos altos pinheiros do Ménalo e do Liceu. Logo, se me fosse lícito, eu estimaria ter mais glória em colocar minha boca na humilde fístula de Córidon, dada-lhe outrora por Dametas como um dom precioso, do que na sonora tíbia de Palas, pela qual o mal ensoberbado Sátiro provocou Apolo, em detrimento próprio. Pois é melhor cultivar bem um terreno menor do que deixar um maior, por descuido, miseravelmente virar mato.
(Trad. Andrea Santurbano)

O leitor mais interessado poderá facilmente seguir as muitas sugestões deste texto inspirado em autores como Teócrito e Virgílio, destrinchando as referências mitológicas e musicais, mergulhando na flora e fauna selváticas, refletindo sobre a dialética cidade/campo. Todavia, o que chama sem dúvida atenção é certa vertente ecológica ante litteram, certa procura de um locus amoenus, que hoje, em tempos de pandemia e crise dos valores da mundialização, econômicos e sociais, oferece uma estimulante perspectiva de leitura. Esse prólogo também pode ser pensado nos moldes do pré-romantismo rousseauniano, da superioridade do método natural de observação e aprendizagem sobre uma cultura mais científica e corruptora (que custou ao filósofo de Genebra a ira de Voltaire baseada na suposta traição da causa iluminista!). É óbvio que Jacopo Sannazaro embebeu o pincel de sua criatividade no repertório visual oferecido por sua região de origem, a Campânia, assim como, quase três séculos depois, o grande arqueólogo Winckelmann estudou a arte grega nas cópias esculturais disponíveis em Roma. Esse cruzamento de planos geográficos e temporais se reflete na trama da obra, de cunho autobiográfico, ainda que alegórico, pois o protagonista, Sincero, é um alter ego do próprio autor. Ele, por causa de um amor não correspondido, se muda de Nápoles para a região da Arcádia, onde poetas-pastores vivem em harmonia com o território, cantando e se desafiando em disputas poéticas. Um pressentimento tido em sonho, porém, leva Sincero a voltar, por meio de uma passagem fantástica, para casa. Aqui ele toma conhecimento do falecimento da mulher amada e a fábula se conclui.

David Ligare, Et in Arcadia ego, 2016, New Museum Los Gatos
Da grande repercussão da obra até o séc. XVIII, sem esquecer das alternas fortunas posteriores, já se falou. Só resta agora saborear de novo os ecos de versos tanto leves quanto grávidos no tempo dos embates que contrapõem homem, espaço e sociedade. Para finalizar, falta completar uma informação mencionada no início: a academia da Arcádia é ainda hoje ativa, em Roma, com sede em Piazza Sant’Agostino (www.accademiadellarcadia.it), guardiã de um passado sempre atuante.




como citar: SANTURBANO, Andrea. Arcádia, a insustentável leveza do verso. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.5, jun. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209834


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Essa é a segunda postagem do projeto Valerio Magrelli - Millennium Poetry: Viagem sentimental na poesia italiana, iniciativa promovida pelo Istituto Italiano di Cultura di São Paulo durante esta Pandemia de Covid-19.
“Cruzaremos oito séculos de poesia italiana seguindo um percurso autoral. Exclusivamente para o público do IICSP, graças à colaboração da Editora Emons, o poeta Valerio Magrelli apresenta e ilustra em áudio trechos da própria particularíssima antologia de poesia italiana. A proposta é enriquecida pelas traduções e comentários (literatura-italiana.blogspot.com) em português dos professores Patricia Peterle e Andrea Santurbano da UFSC e Lucia Wataghin da USP.”

Os trechos serão publicados pelo canal YouTube do IIC nas datas abaixo. Para acessar, é preciso estar inscrito na NewsLetter do IICSP.





[1] Veja-se HOLLANDA, Sérgio Buarque de. A contribuição italiana para a formação do Brasil (edição bilíngue). Trad. de Andréia Guerini. Introdução de Aniello Angelo Avella. Florianópolis: NUT/NEIITA/UFSC, 2002, p. 99-103.
[2] Ibid., p. 97.