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“Coronavírus: um derivado perverso da globalização” - Entrevista de Martin Goettske com Roberto Esposito
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Coronavirus
Martin Goettske
Roberto Esposito
em
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P: Acredita que os políticos italianos e europeus estão se utilizando da
pandemia para favorecimento de suas agendas políticas?
R: Não. Não me expressaria nesses termos. A pandemia não pode favorecer
nenhuma força política, nem de governo e nem de oposição. Pelo contrário,
alarga e intensifica de forma desmedida os problemas que já existiam. Na
Itália, em particular, aumentará em muito a dívida pública e aumentará
fortemente o número de desempregados. Qualquer um que governará no futuro
próximo deverá gerenciar enormes problemas econômicos e sociais. Naturalmente,
também na gestão da crise, as forças políticas estão atentas em não danificar a
própria imagem e, se possível, em melhorá-las. Se, como todos esperamos, a
epidemia regredir com certa velocidade, os partidos que tiverem adotado
determinadas medidas para impedir a difusão do mal verão crescer seu consenso.
Se, ao contrário, a crise for muito longa e dolorosa em termos de vítimas – já
o é agora – as forças de oposição poderão acabar tendo uma vantagem. Isso é o
que acontece sempre na política. Mas, agora, não é o momento de olhar para
isso, não podemos nos desviar de uma batalha que deve ser o mais possível
comum.
P: Em sua opinião, a epidemia está alterando o modo com o qual nossas
sociedades antepõem os níveis de crescimento aos da sobrevivência humana, produção
em oposição à vida?
R: Essa relação de força entre economia e
política, que por muito tempo favoreceu a economia, está se deslocando em favor
da política. Se não fosse assim os governos não teriam tido a possibilidade de
interromper quase que completamente a atividade produtiva, como se deu em
vários países da Europa centro-sul. E a União Europeia não teria renunciado a
parâmetros de estabilidade. De resto, nas crises muito agudas, como também se
viu no recrudescimento do terrorismo islâmico, a política reconquista o poder
de decisão que em períodos “normais” costuma perder. Hoje, na explosão do
coronavírus, as questões econômicas são colocadas em segundo plano em relação
àquelas sanitárias. Diria que a cadeia de comando, hoje, procede da seguinte
forma: na primeira fileira estão os médicos, seguidos dos políticos e, enfim,
os poderes econômicos. Naturalmente, em alguns momentos as coisas deverão
mudar. Não podemos ser, normalmente, governados por médicos.
P: Quais poderiam ser os efeitos políticos de longa duração no que diz
respeito à reação dos chefes dos governos europeus diante da epidemia?
R: Meu temor é que se acentuem as tendências populistas e nacionalistas,
pelo menos na Europa. É verdade que a difusão do coronavírus demonstrou que os
muros e as barreiras protetivas não servem para impedir o contágio. E que,
portanto, as políticas de isolamento dos países são destinadas à falência,
diante da explosão da epidemia. Da mesma forma, as fronteiras não resistem
diante das operações da finança global e do desenvolvimento da tecnologia.
Nesse sentido, o coronavírus é um derivado perverso da globalização. Mas é
também verdade que, passada a tempestade, a Europa, como sujeito unitário, ficará
muito enfraquecida. A abolição da convenção de Schengen constitui um primeiro
passo para trás de forte impacto real e simbólico. Temo que, depois da
pandemia, as forças populistas crescerão um pouco em todos os lugares.
P: Até onde poderão ir as democracias liberais europeias em limitar as
liberdades, como uma resposta ao vírus, antes que democracia sofra com isso por
um longo período?
R: É necessário fixar limites temporais precisos
para o estado de emergência que, de fato, foi proclamado em todos os países
ocidentais. China e Rússia são já países, mesmo que de forma diferente, com
baixo nível de democracia. Para que a democracia se mantenha íntegra no
Ocidente necessita que, no entanto, as decisões tomadas pelos governos sejam aprovadas
pelos Parlamentos – se possível também com uma colaboração das forças de
oposição –; e também que os restritivos decretos de caráter social, no momento
absolutamente necessários, possam ser rapidamente revocados. Não é possível
pensar que uma democracia sobreviva por muito tempo com um déficit de liberdade
individual e de sociabilidade.
P: Como explica as enormes diferenças no que diz
respeito ao que cada um está disposto a pagar para a luta contra o vírus, em termos
de crescimento econômico reduzido e intensificação dos limites de liberdade
civil (as diferenças saltam aos olhos mesmo entre os países da área europeia)?
R: A minha impressão é que essa diferença esteja
destinada a diminuir com o aumento do contágio. Quando um país vê a
multiplicação exponencial do número de mortos, acaba inevitavelmente por
aceitar medidas restritivas concernentes às liberdades fundamentais – como está
acontecendo nos Estados Unidos e no Reino Unido, apesar de seus líderes
fantasiosos. É o que se verificou também nos países que estavam sob ataque do
terrorismo. Por exemplo, a França, país da Revolução, aceitou a proclamação de
um estado de emergência muito restritivo na época dos atendados de Paris e de
Marselha. O que aconteceria na Dinamarca ou na Suécia – esperemos que nunca
aconteça – se adoecessem cem mil pessoas ao mesmo tempo?
P: A crise introduzida pelo coronavírus está
modificando o consenso popular recebido pela democracia e regimes autoritários?
R: No momento os regimes autoritários como a China parecem ter vantagens
pelo caráter drástico e pela rapidez das medidas que podem ser tomadas em
relação aos Estados democráticos, naturalmente mais prudentes e mais lentos.
Isso, porém, não quer dizer que as populações democráticas renunciariam
facilmente a seu standard de liberdade individual. Estados como a Itália
e a Alemanha, que conheceram o fascismo, mas também os Estados do leste
europeu, que conheceram o stalinismo, não fariam um passo atrás no tempo. Uma
vez saboreada a democracia, mesmo com todos os seus defeitos, é muito difícil
renunciar a ela.
Tradução Patricia Peterle
como citar: GOETTSKE, Martin. “Coronavírus_ um derivado perverso da globalização” - Entrevista com Roberto Esposito. Trad. Patricia Peterle In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.6, jun. 2020.Disponível em
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209778 |
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