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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Giovan Battista Marino
Lucia Wataghin
Millenium Poetry
em
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Crocifisso di Calamita
Francesco Furini, sem título (na cártula: Concordi lumine maior), 1626, Palazzo Pitti, Galéria Palatina (ut pictura poesis) |
Terra, Cielo, ed Abisso
non solo a me quassù trassi morendo,
ma trassi i chiodi, onde trafitto io pendo,
trassi i martelli, onde qui moro affisso.
Peccator, ben t’intendo.
Dirai ch’io sono imagine scolpita
d’Indica pietra, e però traggo i ferri.
Forsennato, quant’erri!
Questa è virtù di mia pietà infinita,
non già di calamita.
Crucifixo de Calamita
Terra, Céu, e Abismo
eu não só a mim trouxe aqui morrendo
mas os cravos, onde varado eu pendo,
e os martelos, onde eu morro afixo.
Pecador, bem te entendo.
Dirás que sou imagem esculpida
d´Índica pedra, mas eu trago os ferros.
Desvairado, quanto erras!
É o dom de minha pena infinita,
não já de calamita.
Calamita é nome antigo do imã, magnete ou ferro magnético. O crucifixo de calamita – um crucifixo-imã, como diríamos hoje – do poema de Marino faz parte da coleção de 453 peças que inspiraram La Galeria (1619), obra dedicada ao marquês Luigi Centurioni. Giovan Battista Marino, o mais influente dos poetas do barroco italiano (modelo, inclusive, para a poesia barroca brasileira), era um colecionador de arte. Sua intenção inicial era compor um volume de versos e ilustrações, em que um poema, ou capriccio poético, algo entre um elogio e um divertimento (scherzo), acompanhasse cada desenho de artista, reproduzindo uma obra pictórica ou escultórica.[1]
O projeto falhou e o livro acabou saindo sem ilustrações. Na tentativa de realizar um catálogo visual da galeria, estudiosos conseguiram recuperar cerca de 1/3, ou seja, 51 dos 150 objetos “nomeados ou em algum modo definidos por Marino”, e, em princípio, sem certeza nas atribuições (trata-se de “uma projeção presumida (...) de uma galeria imaginária”).[2]
G.B. Marino, La Galeria, Veneza, Ciotti, 1635 |
Não temos a imagem do crucifixo de calamita, mas conhecemos sua posição na Galeria: o poema se encontra na II parte, dedicada às Esculturas, e mais precisamente na penúltima seção, intitulada Estátuas, Relevos, Modelos e Medalhas. O crucifixo é por sua vez a penúltima de uma série que compreende objetos como um Amor de Neve, outro de Açúcar, um Ícaro de cera, além de uma Morte de marfim, uma Madalena de âmbar, uma Duquesa de chumbo. Nem toda a Galeria é composta de peças insólitas; o elenco de Pinturas e Esculturas é vário, com preferência pela arte de sua própria época, mas a extravagância da pequena seção que observamos está em consonância com a poética do cavalier Marino, que prega a busca da novidade acima de tudo (obrigatório citar seus versos – semissérios – mais famosos, “È del poeta il fin la meraviglia /(...) chi non sa far stupir vada alla striglia”/ “É alvo do poeta a maravilha / (...) quem não sabe surpreender, que vá escovar cavalos”).
O imperativo do novo teorizado por Marino é ligado, como se sabe, à necessidade de atrair um público; trata-se, para o poeta de corte, de um público culto, que apreciará as referências à filosofia neoplatônica renascentista, e, mais especificamente nesse caso, ao interesse pelo misterioso poder de atração do imã, a pedra magnética (mas se encontram já em Petrarca, por exemplo, referências à “índica” e “ousada” pedra, capaz de atrair o ferro, com analogia à potência do eros)[3], assim como o brilhantismo da argúcia, da agudeza, imperativo barroco, com que se cumprem a intertextualidade pictura/poësis e a associação de sagrado e profano, de neoplatonismo e cristianismo, de mestria poética e afirmação de sentimentos profundos (essa última, enfraquecida pelo caráter lúdico e cerebrino do poema).
Lucio Fontana, Crucifixo barroco (1950), Milão, Galéria Tonelli |
O barroco é também ourivesaria e o crucifixo parece esculpido, com suas fortes aliterações em sibilantes, dentais, palatais, ecoando os tormentos do crucifixo, e suas rimas raras, também sublinhando o tema (Abisso/ affisso, pendo/ intendo, ferri/erri, infinita/calamita). Mas parece esculpido em baixo-relevo, com sua delicada atenção aos detalhes e pouca profundidade, em sintonia com a não grande relevância atribuída ao objeto, no cenário dos corredores da Galeria. O gosto pelo detalhe, o fragmento, a decomposição das formas, numa perspectiva não totalizante, variada e policêntrica, são sinais da crise do pensamento sistemático atravessada pela época. Marino, poeta colecionador, ama detalhes, fragmentos, miniaturas, partes de cenas maiores, retratos de personagens (da literatura, da mitologia e da história) – os objetos que inspiram seus poemas, que dispõe horizontalmente nas salas da Galeria.
Pesquisadores nos alertam para o fato de que, para Marino, no encontro entre artes figurativas e poesia, prevalece a poesia[4] – a imagem está a serviço da poesia – e, mais curioso, também notam que os poemas da Galeria não descrevem as imagens que provocam os versos; não se trata aqui de ekphrasis, descrição verbal de uma obra figurativa, mas de reinvenção, nova criação, comentário arguto. Do crucifixo de calamita, não temos imagem, nem descrição; não conhecemos suas dimensões, nem sua feitura, nem a qualidade do trabalho do artista. Marino trabalha com a ideia do crucifixo-imã, que dramatiza; imagina que o Cristo em cruz se dirija a um pecador que atribui à pedra o poder de atrair os materiais de ferro, cravos e martelos que o pregam à cruz. O poema é um tanto obscuro e seu mecanismo engenhoso, seu significado oculto, baseado na ambiguidade Cristo / imagem escultural de Cristo, é desvelado somente nos últimos versos: o que atrai o Salvador à cruz não é a virtude da calamita, mas sua piedade infinita.
Caravaggio (atribuído), Retrato de G.B. Marino (1600-01), Londres, coleção particular |
Na edição da Galeria de 1635 (4. reimpressão revisada, Veneza, Ciotti), disponível em rede (Google Libri_files, cópia pertencente à Bayerische Staatsbibliothek), encontramos uma variante, descartada nas edições sucessivas, que dá adito à interpretação levemente diferente de um detalhe: no lugar de “morrendo”, no final do segundo verso, se encontra “mordendo”, para descrever o sentimento do Cristo crucifixo em relação a Terra, Céu e Abismo (trouxe aqui – diz o Crucifixo – não só Terra, Céu e Abismo, me ferindo, me machucando, mortificando, bem como os cravos e os martelos que me crucificaram). É uma leitura também possível.
como citar: WATAGHIN, Lucia. “Crucifixo de calamita”_ um poema barroco. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.5, jun. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209829
Esta postagem é a décima do projeto Valerio Magrelli - Millennium Poetry: Viagem sentimental na poesia italiana, iniciativa promovida pelo Istituto Italiano di Cultura di São Paulo durante esta Pandemia de Covid-19.
“Cruzaremos oito séculos de poesia italiana seguindo um percurso autoral. Exclusivamente para o público do IICSP, graças à colaboração da Editora Emons, o poeta Valerio Magrelli apresenta e ilustra em áudio trechos da própria particularíssima antologia de poesia italiana. A proposta é enriquecida pelas traduções e comentários (literatura-italiana.blogspot.com) em português dos professores Patricia Peterle e Andrea Santurbano da UFSC e Lucia Wataghin da USP.”
[1] Marino, em carta ao pintor genovês Bernardo Castello (1613), apud Alessandra Ruffino, “Gallerie. Marino e l´immagine in esilio”, in G.B. Marino, La Galeria, org. Marzio Pieri e Alessandra Ruffino, Trento: La Finestra, 2005, p. XXXI.
[2] Ibidem, pp. XLVI. A edição conta com o CD-Rom “Pitture per la Galeria”, aos cuidados de A. Ruffino.
[3] “Una petra è sì ardita, /Là per l´indico mar, che da natura / tragge a sé il ferro (...)” [Uma pedra é tão valente, / lá no índico mar, que por natureza / atrai a si o ferro (.)]. Francesco Petrarca, Canzoniere, I Parte, 135, vv. 1-3 (ed. consultada, org. Marco Santagata, Milão: Mondadori, 1996, p. 659). A metáfora da “viva dolce calamita” do v. 30, pouco adiante, alude naturalmente a Laura.
[4] Alessandra Ruffino, op. cit.; Francesco Guardiani, L’idea dell’immagine nella Galeria di G.B. Marino, in Letteratura italiana e arti figurative, org. A. Franceschetti, Firenze, Olschki 1988, vol. II, pp. 647-654.
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