- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
Do prefácio de Italo Calvino à natureza humana grotesca: um percurso neorreal entre Itália e Portugal, por Rafael Reginato Moura
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Italo Calvino
Prosa contemporânea
Rafael Reginato Moura
em
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
O prefácio de Italo Calvino à segunda edição de Il Sentiero dei Nidi di Ragno, publicada em 1964, estabelece uma retomada de reflexão
estética e estilística sobre o romance, cuja primeira edição é de 1947. Nessa
apresentação de seu primeiro romance escrito, o autor não deixa de abordar
aspectos relativos ao desejo artístico e literário que se seguiu à derrocada
nazi-fascista na Itália em 1945 e sua correlação com uma visão de mundo até
então apagada ou sufocada, mas ansiada por revelar-se através das novas
narrativas. Calvino situa, em seu texto, o ardor juvenil que partilhava com outros
artistas e escritores durante a escrita do romance a confundir-se com a época
literária e, por que não, com a perspectiva histórica que então se
descortinava.
Diante
de tais condições, Calvino localiza o neorrealismo que surgia na Itália
pós-guerra e que encontrava terreno fértil a um discurso literário humanizador,
não como uma escola artística em formação, mas como uma reunião de vozes em
grande medida periféricas que intentava descobrir as diversas Itálias,
especialmente uma Itália então inédita para a literatura. É nessa direção que o
autor italiano vislumbra nessas obras de índole neorrealista uma contaminação
de sua literatura por razões extraliterárias que, naquele momento, mostravam-se
tão grandes e indiscutíveis que pareciam um fato da natureza, ou como
expressou: “todo um problema que pensávamos ser poético, como transformar em
obra literária aquele mundo que era para nós o mundo”[1].
Essa necessidade de conceder cor literária a uma representação local com a
finalidade de fazer nascer ou renascer um mundo ainda encoberto, soterrado,
calado, invisível, constituído de personagens ou heróis considerados menores, é
o que motivou também em Portugal, anos antes, o aparecimento do neorrealismo.
Em
Portugal o surgimento do neorrealismo não foi motivado por guerra ou conflito
bélico, embora seus artistas e escritores guardassem uma posição contrária aos
desígnios ideológicos de Hitler e Mussolini durante o período da Segunda
Guerra. Foi antes uma reação às agruras da política salazarista no país, também
em seu tempo, também opressora e reacionária a toda sorte de progressismos. O
regime instituído por Salazar prolongou-se no país de 1933 até a Revolução dos
Cravos em 1974, estabelecendo uma política externa exploratória nas colônias
africanas e de censura e perseguição aos que se opunham ao seu comando dentro
do país. Assim como a formação do neorrealismo italiano levava em consideração
o ímpeto juvenil, tese sugerida por Calvino, o escritor português Alves Redol,
autor do primeiro romance neorrealista em Portugal em 1939, também observou, em
prefácio à reedição da obra em 1965, que o neorrealismo português se constituiu
em um “sadio combate de juventude”[2]. Teóricos
e críticos do neorrealismo português, como Mário Dionísio e José Gomes
Ferreira, concordam ainda que o neorrealismo em Portugal não foi uma escola,
mas um movimento literário heterogêneo[3] e
sem um programa estético único, considerações que mais uma vez aproximam-se do
que Ítalo Calvino apontou no seu prefácio a Il
Sentiero dei Nidi di Ragno em 1964 referindo-se a um movimento italiano que
sequer era organizado ou consciente.
Renato Guttuso, La discussione, 1959-1960, óleo
sobre tela
Se
na Itália pós-ocupação nazista e pós-guerra o primeiro romance de Ítalo
Calvino, em flerte com um incipiente movimento neorrealista, intentava ser um
livro, ressalvadas suas autodeclaradas qualidades e defeitos, que se
constituísse em um catálogo representativo daquele mundo que se desenterrava,
daquelas vozes partigianas
sublevadas, em Portugal o movimento neorrealista buscava, também à maneira de
Benjamin[4],
fazer submergir o eco das vozes dos camponeses e operários oprimidos, emudecidos,
degradados, alugados, subalternizados ao extremo, aproximando-se ainda da
lógica prenunciada por Candido, ou seja, a de que o artista deveria assumir o
“ângulo do espoliado” [5]. A assunção de tais vozes,
imagens, personagens, vidas e mundos guarda uma relação formativa essencial e
relativamente comum ao surgimento dos dois movimentos, na Itália e em Portugal.
No
entanto, do ponto de vista estético e narrativo, enquanto Alves Redol procurava
representar em seu romance Gaibéus um
documento ou testemunho etnográfico, Ítalo Calvino já sinalizava em Il Sentiero dei Nidi di Ragno, a
despeito de uma narrativa que não descuidava no tratamento do real de elementos
fabulares, para uma intenção estética que caminhava ao encontro do
expressionismo, chegando a mencionar em seu prefácio que o neorrealismo literário
e figurativo deveria responder na Itália pelo nome de “neo-expressionismo”[6],
dada a importância que tal influência artística adquiriu no país após a Segunda
Guerra.
Domenico Purificato, Contadini, 1957, óleo sobre
tela
A
representação ou “expressão” deste herói menor, oprimido, marginal, adquire
para Calvino uma conotação ainda mais subvertedora ao afirmar, em seu prefácio,
querer tratar em sua obra do não-herói, dos partigianos
em que nenhum deles é herói, integrados a um ambiente de malandros e
vagabundos. É essa deformação do caráter moral em Il Sentiero dei Nidi di Ragno e, ao mesmo tempo, caricaturesca,
bufona, pródiga em caretas torcidas que fazem com que Calvino revele em sua
obra uma natureza grotesca dentro de “seus obscuros dramas viscerais-coletivos”[7].
Fisicamente, os partigianos com quem
convive e se relaciona o jovem Pin possuem aparência andrajosa, esfarrapada,
esquálida, fatigada, piolhenta, distantes de qualquer nobreza de alma ou
dignidade heroica.
Não
obstante, em Portugal, jovens artistas plásticos começaram a partir da década
de 1940 a refinar esteticamente o pensamento e a arte neorrealista, colaborando
inclusive para um aprimoramento da literatura produzida à época pelo movimento.
Se a literatura neorrealista portuguesa, ao menos em sua fase inicial, não
almejou alcançar um tratamento estético que a permitisse um afastamento da
representação crua, optando muitas vezes por um realismo mais objetivo, os
artistas visuais neorrealistas se incumbiram de uma maior aproximação
expressionista, embora não se restringindo a essa influência única. Essa busca
expressiva pelo grotesco, por deformar a realidade, encontrou em Mário Dionísio
o seu principal disseminador, ao defender que os artistas neorrealistas
deveriam usar meios, processos e técnicas que deformassem ao invés de
fotografar[8]. Em
direção a essa deformação da realidade, à busca por uma estética do grotesco,
Júlio Pomar, outro importante pintor e crítico do movimento neorrealista
português, salienta que no plano da realidade encontra-se o agradável e
o desagradável, optando em seu trabalho artístico tematizar o desagradável, a
sub-humanidade[9].
Torna-se ainda mais emblemático o advento do desagradável, da deformação e do
grotesco na arte neorrealista portuguesa se for considerado que Júlio Pomar, ao defendê-los, referia-se ao diálogo
de sua arte com a de outro pintor neorrealista, Manuel Filipe, demonstrando a
existência de traços comuns que apontavam para esse horizonte estético.
Manuel Filipe, A Família, 1943, desenho sobre papel
Outro
aspecto a ser destacado no prefácio de Ítalo Calvino refere-se à necessidade
idealizada pelo autor de uma paisagem que representasse a própria natureza dos
homens que nela convivessem. No caso de seu romance, uma Resistência que
resultasse da fusão entre paisagem e pessoas (história humana), qualidade que Calvino
sugere estar na gênese do neorrealismo italiano. Seja integrando-se a uma
paisagem ou atmosfera camponesa, bucólica, ou em uma conotação política mais
direta a cenas da Resistência e a encontros clandestinos, a pintura
neorrealista italiana também soube representar a fusão entre homem e natureza
que buscasse desvelar esse outro mundo mais vasto e amplo a que se refere
Calvino, idealizando uma realidade capaz de reconfigurar a mentalidade de sua
época. Da mesma maneira, a análise de obras literárias ou visuais portuguesas indica
uma cosmogonia semelhante. Seja na descrição dos arrozais do Ribatejo no
romance Gaibéus, nas pinturas de
Júlio Pomar intituladas Ciclo do Arroz
também representativas do trabalho dos ceifeiros no Ribatejo ou até mesmo na
caricatural obra do sacrifício de trabalhadores de Manuel Filipe, os homens e
mulheres iluminados pelo neorrealismo português sempre exibiram sua natureza
agreste, áspera, ressequida, destratada, retorcida, deformada, como a visão das
oliveiras alentejanas que, no seu sabor e beleza, também podem despertar sombras
terríficas à noite.
Júlio Pomar, Gadanheiro, 1945, óleo sobre
aglomerado de madeira
Posto
assim, pode-se depreender que a literatura, as artes visuais, o cinema ou qualquer
outra expressão artística neorrealista teve, como um de seus ingredientes no percurso
histórico e estético entre países como Itália e Portugal, uma aproximação com o
“deformidável”, com o grotesco. Como se por intermédio das caretas dos
revolucionários descritas por Ítalo Calvino, das bufonas de Fellini ou do gigantesco
gadanheiro de Júlio Pomar, fosse possível mostrar um mundo mais humano,
resgatar um vasto mundo esquecido, mais amplo e fértil, ainda que sua beleza e admiração
não pudesse ignorar a repulsa, o tenebroso, o grotesco enquanto fator de convívio
estético e de estranhamento, tal qual a singela metáfora revelada nas linhas
finais de Il Sentiero dei Nidi di Ragno enquanto
Pin e Cugino (Primo) conversam andando à noite pelo campo, rodeados de arbustos
e distantes do eco das batalhas:
-
C’è pieno di lucciole, - dice il Cugino.
- A
vederle da vicino, le lucciole, - dice Pin, - sono bestie schifose anche loro,
rossicce.
-
Sì, - dice il Cugino, - ma viste così sono belle.
E continuano
a camminare, l’omone e il bambino, nella note, in mezzo alle lucciole,
tenendosi per mano[10].
Em tradução livre:
- Está cheio de vagalumes, - disse o
Primo.
- Vendo-os de perto, os vagalumes, -
disse Pin, - são também monstros repugnantes, avermelhados.
- Sim, - disse o Primo, - mas vistos
assim são bonitos.
E eles continuam andando, o grande
homem e o menino, na noite, em meio aos vagalumes, de mãos dadas.
Rafael Reginato Moura
Doutorando UFSC
Referências utilizadas no texto:
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
CALVINO, Ítalo. Il sentiero dei nidi di ragno. Milano: Arnoldo Mondadori Editore,
1993.
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.
DIONÍSIO,
Mário. Ficha 5. Seara Nova, n. 765,
p. 131-134, abr. 1942.
FERREIRA, José Gomes. O
Neo-realismo é o maior movimento literário da nossa época. Seara Nova, n.
1403, p. 206-207, set. 1962.
POMAR, Júlio. Notas sobre uma Arte Útil – Parte Escrita I. Lisboa: Fundação Júlio Pomar, 2014.
REDOL, Alves. Gaibéus. Lisboa:
Europa-América, 1965.
[1] CALVINO, Ítalo. Il sentiero dei nidi di ragno, 1993, p. VIII.
[2] REDOL, Alves. Gaibéus, 1965, p. 33.
[3] Cf. FERREIRA, José Gomes. O Neo-realismo é o maior movimento literário
da nossa época, 1962.
[4] Cf. BENJAMIN, Walter.
Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura, 1994.
[6] CALVINO, Ítalo. Il sentiero dei nidi di ragno, 1993, p. XI.
[8] Cf. DIONÍSIO, Mário. Ficha 5, 1942.
[10] CALVINO, Ítalo. Il sentiero dei nidi di ragno, 1993, p. 159.
como citar: MOURA, Rafael Reginato. Do prefácio de Italo Calvino à natureza humana grotesca_ um percurso neorreal entre Itália e Portugal. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.6, jun. 2020. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209781
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos