La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Do prefácio de Italo Calvino à natureza humana grotesca: um percurso neorreal entre Itália e Portugal, por Rafael Reginato Moura


O prefácio de Italo Calvino à segunda edição de Il Sentiero dei Nidi di Ragno, publicada em 1964, estabelece uma retomada de reflexão estética e estilística sobre o romance, cuja primeira edição é de 1947. Nessa apresentação de seu primeiro romance escrito, o autor não deixa de abordar aspectos relativos ao desejo artístico e literário que se seguiu à derrocada nazi-fascista na Itália em 1945 e sua correlação com uma visão de mundo até então apagada ou sufocada, mas ansiada por revelar-se através das novas narrativas. Calvino situa, em seu texto, o ardor juvenil que partilhava com outros artistas e escritores durante a escrita do romance a confundir-se com a época literária e, por que não, com a perspectiva histórica que então se descortinava.
Diante de tais condições, Calvino localiza o neorrealismo que surgia na Itália pós-guerra e que encontrava terreno fértil a um discurso literário humanizador, não como uma escola artística em formação, mas como uma reunião de vozes em grande medida periféricas que intentava descobrir as diversas Itálias, especialmente uma Itália então inédita para a literatura. É nessa direção que o autor italiano vislumbra nessas obras de índole neorrealista uma contaminação de sua literatura por razões extraliterárias que, naquele momento, mostravam-se tão grandes e indiscutíveis que pareciam um fato da natureza, ou como expressou: “todo um problema que pensávamos ser poético, como transformar em obra literária aquele mundo que era para nós o mundo”[1]. Essa necessidade de conceder cor literária a uma representação local com a finalidade de fazer nascer ou renascer um mundo ainda encoberto, soterrado, calado, invisível, constituído de personagens ou heróis considerados menores, é o que motivou também em Portugal, anos antes, o aparecimento do neorrealismo.
Em Portugal o surgimento do neorrealismo não foi motivado por guerra ou conflito bélico, embora seus artistas e escritores guardassem uma posição contrária aos desígnios ideológicos de Hitler e Mussolini durante o período da Segunda Guerra. Foi antes uma reação às agruras da política salazarista no país, também em seu tempo, também opressora e reacionária a toda sorte de progressismos. O regime instituído por Salazar prolongou-se no país de 1933 até a Revolução dos Cravos em 1974, estabelecendo uma política externa exploratória nas colônias africanas e de censura e perseguição aos que se opunham ao seu comando dentro do país. Assim como a formação do neorrealismo italiano levava em consideração o ímpeto juvenil, tese sugerida por Calvino, o escritor português Alves Redol, autor do primeiro romance neorrealista em Portugal em 1939, também observou, em prefácio à reedição da obra em 1965, que o neorrealismo português se constituiu em um “sadio combate de juventude”[2]. Teóricos e críticos do neorrealismo português, como Mário Dionísio e José Gomes Ferreira, concordam ainda que o neorrealismo em Portugal não foi uma escola, mas um movimento literário heterogêneo[3] e sem um programa estético único, considerações que mais uma vez aproximam-se do que Ítalo Calvino apontou no seu prefácio a Il Sentiero dei Nidi di Ragno em 1964 referindo-se a um movimento italiano que sequer era organizado ou consciente.




Renato Guttuso, La discussione, 1959-1960, óleo sobre tela

Se na Itália pós-ocupação nazista e pós-guerra o primeiro romance de Ítalo Calvino, em flerte com um incipiente movimento neorrealista, intentava ser um livro, ressalvadas suas autodeclaradas qualidades e defeitos, que se constituísse em um catálogo representativo daquele mundo que se desenterrava, daquelas vozes partigianas sublevadas, em Portugal o movimento neorrealista buscava, também à maneira de Benjamin[4], fazer submergir o eco das vozes dos camponeses e operários oprimidos, emudecidos, degradados, alugados, subalternizados ao extremo, aproximando-se ainda da lógica prenunciada por Candido, ou seja, a de que o artista deveria assumir o “ângulo do espoliado” [5]. A assunção de tais vozes, imagens, personagens, vidas e mundos guarda uma relação formativa essencial e relativamente comum ao surgimento dos dois movimentos, na Itália e em Portugal.
No entanto, do ponto de vista estético e narrativo, enquanto Alves Redol procurava representar em seu romance Gaibéus um documento ou testemunho etnográfico, Ítalo Calvino já sinalizava em Il Sentiero dei Nidi di Ragno, a despeito de uma narrativa que não descuidava no tratamento do real de elementos fabulares, para uma intenção estética que caminhava ao encontro do expressionismo, chegando a mencionar em seu prefácio que o neorrealismo literário e figurativo deveria responder na Itália pelo nome de “neo-expressionismo”[6], dada a importância que tal influência artística adquiriu no país após a Segunda Guerra.


Domenico Purificato, Contadini, 1957, óleo sobre tela

A representação ou “expressão” deste herói menor, oprimido, marginal, adquire para Calvino uma conotação ainda mais subvertedora ao afirmar, em seu prefácio, querer tratar em sua obra do não-herói, dos partigianos em que nenhum deles é herói, integrados a um ambiente de malandros e vagabundos. É essa deformação do caráter moral em Il Sentiero dei Nidi di Ragno e, ao mesmo tempo, caricaturesca, bufona, pródiga em caretas torcidas que fazem com que Calvino revele em sua obra uma natureza grotesca dentro de “seus obscuros dramas viscerais-coletivos”[7]. Fisicamente, os partigianos com quem convive e se relaciona o jovem Pin possuem aparência andrajosa, esfarrapada, esquálida, fatigada, piolhenta, distantes de qualquer nobreza de alma ou dignidade heroica.
Não obstante, em Portugal, jovens artistas plásticos começaram a partir da década de 1940 a refinar esteticamente o pensamento e a arte neorrealista, colaborando inclusive para um aprimoramento da literatura produzida à época pelo movimento. Se a literatura neorrealista portuguesa, ao menos em sua fase inicial, não almejou alcançar um tratamento estético que a permitisse um afastamento da representação crua, optando muitas vezes por um realismo mais objetivo, os artistas visuais neorrealistas se incumbiram de uma maior aproximação expressionista, embora não se restringindo a essa influência única. Essa busca expressiva pelo grotesco, por deformar a realidade, encontrou em Mário Dionísio o seu principal disseminador, ao defender que os artistas neorrealistas deveriam usar meios, processos e técnicas que deformassem ao invés de fotografar[8]. Em direção a essa deformação da realidade, à busca por uma estética do grotesco, Júlio Pomar, outro importante pintor e crítico do movimento neorrealista português, salienta que no plano da realidade encontra-se o agradável e o desagradável, optando em seu trabalho artístico tematizar o desagradável, a sub-humanidade[9]. Torna-se ainda mais emblemático o advento do desagradável, da deformação e do grotesco na arte neorrealista portuguesa se for considerado que Júlio Pomar, ao defendê-los, referia-se ao diálogo de sua arte com a de outro pintor neorrealista, Manuel Filipe, demonstrando a existência de traços comuns que apontavam para esse horizonte estético.


Manuel Filipe, A Família, 1943, desenho sobre papel

Outro aspecto a ser destacado no prefácio de Ítalo Calvino refere-se à necessidade idealizada pelo autor de uma paisagem que representasse a própria natureza dos homens que nela convivessem. No caso de seu romance, uma Resistência que resultasse da fusão entre paisagem e pessoas (história humana), qualidade que Calvino sugere estar na gênese do neorrealismo italiano. Seja integrando-se a uma paisagem ou atmosfera camponesa, bucólica, ou em uma conotação política mais direta a cenas da Resistência e a encontros clandestinos, a pintura neorrealista italiana também soube representar a fusão entre homem e natureza que buscasse desvelar esse outro mundo mais vasto e amplo a que se refere Calvino, idealizando uma realidade capaz de reconfigurar a mentalidade de sua época. Da mesma maneira, a análise de obras literárias ou visuais portuguesas indica uma cosmogonia semelhante. Seja na descrição dos arrozais do Ribatejo no romance Gaibéus, nas pinturas de Júlio Pomar intituladas Ciclo do Arroz também representativas do trabalho dos ceifeiros no Ribatejo ou até mesmo na caricatural obra do sacrifício de trabalhadores de Manuel Filipe, os homens e mulheres iluminados pelo neorrealismo português sempre exibiram sua natureza agreste, áspera, ressequida, destratada, retorcida, deformada, como a visão das oliveiras alentejanas que, no seu sabor e beleza, também podem despertar sombras terríficas à noite.   


Júlio Pomar, Gadanheiro, 1945, óleo sobre aglomerado de madeira

Posto assim, pode-se depreender que a literatura, as artes visuais, o cinema ou qualquer outra expressão artística neorrealista teve, como um de seus ingredientes no percurso histórico e estético entre países como Itália e Portugal, uma aproximação com o “deformidável”, com o grotesco. Como se por intermédio das caretas dos revolucionários descritas por Ítalo Calvino, das bufonas de Fellini ou do gigantesco gadanheiro de Júlio Pomar, fosse possível mostrar um mundo mais humano, resgatar um vasto mundo esquecido, mais amplo e fértil, ainda que sua beleza e admiração não pudesse ignorar a repulsa, o tenebroso, o grotesco enquanto fator de convívio estético e de estranhamento, tal qual a singela metáfora revelada nas linhas finais de Il Sentiero dei Nidi di Ragno enquanto Pin e Cugino (Primo) conversam andando à noite pelo campo, rodeados de arbustos e distantes do eco das batalhas:

- C’è pieno di lucciole, - dice il Cugino.
- A vederle da vicino, le lucciole, - dice Pin, - sono bestie schifose anche loro, rossicce.
- Sì, - dice il Cugino, - ma viste così sono belle.
E continuano a camminare, l’omone e il bambino, nella note, in mezzo alle lucciole, tenendosi per mano[10].

Em tradução livre:

        - Está cheio de vagalumes, - disse o Primo.
        - Vendo-os de perto, os vagalumes, - disse Pin, - são também monstros repugnantes, avermelhados.
        - Sim, - disse o Primo, - mas vistos assim são bonitos.
        E eles continuam andando, o grande homem e o menino, na noite, em meio aos vagalumes, de mãos dadas.

Rafael Reginato Moura
Doutorando UFSC


Referências utilizadas no texto:

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CALVINO, Ítalo. Il sentiero dei nidi di ragno. Milano: Arnoldo Mondadori Editore, 1993.

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.

DIONÍSIO, Mário. Ficha 5. Seara Nova, n. 765, p. 131-134, abr. 1942.

FERREIRA, José Gomes. O Neo-realismo é o maior movimento literário da nossa época. Seara Nova, n. 1403, p. 206-207, set. 1962.

POMAR, Júlio. Notas sobre uma Arte Útil – Parte Escrita I. Lisboa: Fundação Júlio Pomar, 2014.

REDOL, Alves. Gaibéus. Lisboa: Europa-América, 1965.




[1] CALVINO, Ítalo. Il sentiero dei nidi di ragno, 1993, p. VIII.
[2] REDOL, Alves. Gaibéus, 1965, p. 33.
[3] Cf. FERREIRA, José Gomes. O Neo-realismo é o maior movimento literário da nossa época, 1962.
[4] Cf. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, 1994.
[5] Cf. CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios, 1989.
[6] CALVINO, Ítalo. Il sentiero dei nidi di ragno, 1993, p. XI.
[7] Ibidem, p. XI.
[8] Cf. DIONÍSIO, Mário. Ficha 5, 1942.
[9] Cf. POMAR, Júlio. Notas sobre uma arte útil – Parte escrita I (1942-1960), 2014.
[10] CALVINO, Ítalo. Il sentiero dei nidi di ragno, 1993, p. 159.

como citar: MOURA, Rafael Reginato. Do prefácio de Italo Calvino à natureza humana grotesca_ um percurso neorreal entre Itália e Portugal. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.6, jun. 2020. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209781