- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Grazia Delleda
Resenha
William Soares dos Santos
em
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
Grazia Deledda (1871-1936)
foi uma das mais importantes expressões literárias da Itália entre os séculos
XIX e XX. Talvez fosse apenas necessário dizer que ela foi a primeira (e, até o
momento, a única) mulher italiana a ganhar o prêmio Nobel de Literatura, em
1926 (a primeira mulher a ser agraciada com o prêmio foi a sueca Selma
Lagerlöf, em 1909, e o primeiro italiano a recebê-lo foi o poeta Giosuè
Carducci, em 1906), mas o percurso literário e de vida dessa grande escritora
italiana não começa nem se encerra nesse importante reconhecimento. A sua
história é a de superação de uma mulher nascida e criada longe dos grandes
centros e que lutou muito para ter seu nome inscrito entre os grandes da
literatura italiana e mundial.
Publicado em 1931,
A cidade do vento é um romance traz traços marcantes da biografia de
Grazia Deledda que, assim como a narradora do romance, casa-se com seu marido,
Palmiro Madesani, após conhecê-lo na casa de conhecidos. Da mesma forma que os
personagens do livro, ela e o seu marido estabelecem a sua relação durante uma
brincadeira chamada “sociedade”. Não tendo ela eliminado a palavra “porque” da
resposta que deveria dar, foi colocada em “penitência” por Palmiro Madesani,
que teve o direito de perguntar diante dos presentes como ela desejaria que
fosse o seu futuro esposo, ao que ela, sem hesitar, respondeu: “Como você!”. No
dia seguinte Deledda recebeu de Madesani uma declaração de amor e, para
colocá-lo à prova, ela respondeu que aceitaria se casar somente se ele marcasse
o casamento para dois meses a partir daquela data. E assim aconteceu.
Sabemos, através
de suas cartas, que, assim como a narradora deste romance, Deledda também
nutriu um amor de juventude. O objeto da paixão era o belo jornalista (que
também era duque de Asinara) Stanis Manca. Depois que Deledda publicou seus
primeiros escritos em Roma, Manca convidou-a para escrever sobre Sassari em uma
publicação sobre cem cidades italianas. Depois, ele ficou curioso para
conhecê-la e, para isso, resolveu ir à Nuoro. Podemos imaginar o impacto que
foi para uma jovem mulher de um lugar tão provinciano, no início do século XX,
receber uma visita tão especial, sobretudo o impacto da personalidade de um
homem da cidade em uma jovem mulher do interior. Depois da visita, Manca
escreveu um artigo sobre Deledda intitulado “A nossa pequena Georges Sand”, que
foi publicado na revista “Vida Sarda”. Embora já se correspondessem
anteriormente, a partir desse encontro eles começam uma troca de cartas em que
pode ser vislumbrada, por parte de Deledda, a ilusão da possibilidade de um
matrimônio que, no entanto, não se realiza. A correspondência entre os dois
dura até antes do casamento da escritora.
Outra relação que
não é levada adiante é a que ela terá com Andrea Pirodda, um professor de uma
escola elementar da distante cidade de Buggerru, centro minerador do sul da
Sardenha, a quem Deledda parece ver mais como amigo. Sabemos, no entanto, que
Pirodda declarou o seu amor para ela e que pensaram em noivado sem que a
relação prosseguisse efetivamente. Sejam quais tenham sido os obstáculos que os
levaram à separação (a família, a distância social ou a falta de recursos), o
fato é que o seu amor não se realizou, embora a presença obstinada de Pirodda
possa ter assombrado o seu casamento e, também, servido de inspiração para este
romance. Este livro começa exatamente no início de uma viagem de núpcias e há
muitos paralelos com a sua própria história, mas a narrativa de Deledda vai
além de um simples paralelismo biográfico já que, em A cidade do vento,
explora com maestria alguns dos temas elegidos por ela ao longo de sua vasta
carreira de escritora, mostrando a solidez de sua peculiar forma de narrar,
muitas vezes colocando o tempo presente logo após o uso de estruturas do
passado, construindo, tanto narrativamente, quanto no campo da sintaxe, uma
forte ligação entre o passado e o presente, gerando uma tensão que afeta
profundamente o estado interior dos personagens.
Em uma narrativa
que traz o leitor para a sua intimidade, o eu lírico/narradora de A cidade
do vento descreve a sua relação com Gabriel, um amor de sua juventude, que
desaparece para retornar à sua vida, para o seu tormento, poucos dias após o
seu matrimônio com outro homem. Em um jogo de tensões precisamente calculado,
passado e presente se entrelaçam diante do olhar do leitor e dão forma à trama
arquitetada por Deledda com sua peculiar maestria.
Uma das
características mais marcantes deste romance é que a natureza é um de seus
principais personagens. O vento, que está no título do livro, é uma de suas
forças motrizes: é ele que movimenta e rege a vida das pessoas da inominável
cidade onde se passa a trama. O vento pode ser lido como uma metáfora do
destino, mas também como a força que rege os ciclos da vida. É para a cidade do
vento que a personagem /narradora se muda, logo após o seu casamento, e é lá
que ela se encontra com um pedaço inconcluso de seu passado com o qual, agora,
deve se defrontar. É provável que a escritora tenha se inspirado na cidade de
Cagliari para construir a ambientação de seu romance, mas a relação com o mundo
real talvez seja algo de menor importância aqui porque, simplesmente, a rica
narrativa de Deledda faz dessa cidade um lugar profundamente vivo, um espaço
único no qual a narradora pode expressar, através da descrição da natureza, o
seu próprio estado interior.
A aparição do
antigo amor afeta o estado interior da narradora e, também, a natureza
circundante, que parece exigir uma resolução para aquilo que se configura como
um conflito inacabado. O amor que reaparece para assombrar a sua nova vida não
é o mesmo do passado, ele ressurge marcado por seu conhecimento do mundo e por
uma doença que o corrói. Ele retorna, agora, para um confronto, talvez
necessário, a fim de que os personagens possam construir uma nova vida sem as
amarras do passado, mas conscientes de que serão sempre marcados por ele.
Outro tema de
fundamental importância abordado pelo romance é, como apontei anteriormente, o
lugar da mulher na fechada sociedade patriarcal da Sardenha da primeira metade
do século XX. Se, por um lado, o romance possibilita ouvirmos a voz feminina
como raras vezes na literatura italiana até então, por outro lado, a mulher que
é representada pela personagem e narradora do romance se vê, na maior parte do
tempo, impedida de falar no âmbito dos diálogos com os outros homens da
narrativa. Por trás do seu calar, da sua frase que sai como se estivesse
incompleta, está sempre o temor do que a sua fala feminina (talvez entendida
como sendo deslocada ou como algo menor) possa gerar no mundo dos homens. E,
durante todo o romance, ela será sempre constrangida pela força do patriarcado,
seja este representado pelo seu pai, pelos irmãos, pela sua mãe, pelo antigo
amor e pelo marido. Durante todo o tempo, ela é constrangida por um tipo de
obediência e dependência ao mundo dos homens.
A forma narrativa
de A cidade do Vento é a de uma escrita confessional que parece ser
construída para melhor compreender, senão justificar, no presente algumas
escolhas realizadas no passado. Talvez seja por isso que, em um certo momento,
a narradora dirá: “Não pensava em negá-lo, e nem ao menos em explicar-lhe, o
meu comportamento daquela época, além do mais eu não conseguia nem explicar a
mim mesma; e se hoje escrevo este livro é para me justificar entre os vivos e
os mortos, e sobretudo, diante da minha consciência”.
Se considerarmos
que vida e literatura são elementos indissociáveis, podemos ponderar que ao
escrever A cidade do vento Deledda, com a maturidade de seus sessenta
anos, pôde voltar os olhos para o passado de forma mais livre, e assim, trazer
aos seus leitores uma narrativa única de uma experiência que será sempre
universal: a dos amores (muitas vezes inacabados) que carregamos conosco ao
longo da existência.
como citar: SANTOS, William Soares dos. Grazia Deledda_ A Cidade do Vento. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.5, jun. 2020.
Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209837
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos