La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Nova semiótica pós-Covid para humanos e outras criaturas melhores, por Elvira Seminara



René Magritte - Golconde - 1953

“Não vejo ninguém. […] um guarda-chuva de mulher, aberto e revirado, no chão, e uma bolsinha. Um táxi está na calçada […]  Vim à procura de alguns milhares de desaparecidos […] Um evento (inimaginável) surpreendeu aqui a gente que dormia […] mas na verdade não fugiram […] partiram de outra maneira. Raptados. Arrastados….”.[i]



Quem está falando é o protagonista de Dissipatio H.G. – o romance de ficção psicológica de Guido Morselli – recém resgatado do próprio suicídio e retornado a um mundo vazio. Aflito, abatido? De modo nenhum: “O mundo nunca esteve tão vivo quanto hoje, que uma certa raça de bípedes deixou de frequentá-lo. Nunca esteve tão limpo, luminoso, alegre”[ii].
Muitas vezes pensei, embaraçada, no hipocondríaco (e antropófobo) homem de Morselli em minhas breves e cautelosas excursões à cidade em quarentena. Embaraço, mas também sentimento de culpa, sim, porque eu também acho belíssimas e metafísicas as praças esvaziadas de nós humanos, restituídas a uma inédita completude de espírito e formas. Mas é lícito um olhar estetizante, eco-decadente, dentro de uma crise que produziu centenas de milhares de mortos e novas pobrezas? E porque em nós humanos mascarados vejo os manequins das gélidas praças de De Chirico, ou as figuras estupefatas de Magritte?

Mascarados. Com as luvas mediando a relação com o mundo (humanos e coisas), a uma distância segura. E se é verdade que cada época produz e exprime a sua doença, o Covid-19 responde perfeitamente, tanto na dimensão estética e formal quanto na dimensão simbólica. Toda doença – como a Aids dos anos 1990 ou o Alzheimer no início dos anos 2000 – parece realmente responder também a uma fatalidade semiótica, que distorce os sinais e a sintaxe social, invertendo-os como em um malicioso e punitivo contrapasso.
O vírus Corona nos revelou, porém, com zombeteira perversão, o rosto obscuro da era do “contato”, que com euforia e alguma indecência nos pertence. Repentinamente e em poucos dias, o “contato” que até agora evocou trocas relacionais e profissionais, em que é ao mesmo tempo moeda social e sistema de valores, ou mesmo índice de carreira ou carisma pessoal, saiu do uso metafórico para se tornar outra coisa: um perigo, um instrumento de contágio.
E mais. A ressemantização em curso onera todo um leque de palavras da esfera social, restituindo-as ao seu valor de origem. O que dizer da “viralidade”, até agora associada enfaticamente a vídeos ou posts de enorme difusão? E não havíamos usado até ontem “contágio” com respeito a ações ou modelos emulados e reproduzidos pelos consumidores, com júbilo do mercado – “look contagioso”, “espírito contagioso”? Até o “influencer”, para o qual em italiano não encontramos uma tradução, não é mais do que um grande Contagiador, visto que seu sucesso está ligado à quantidade de sujeitos “influenciados”, contagiados? Por outro lado, a própria palavra “epidemia”, antes de ocupar, desde março, toda frase e legenda dos telejornais, circulava na linguagem midiática e publicitária para evocar o paraíso de largo consumo, com mercadorias ou fenômenos imitados e compartilhados.

De modo que aqui estamos. Com luvas para evitar o contato, à distância de um metro, a máscara aprisionado as droplets. Esta é a palavra nova que faltava, graciosa e ágil no som. Droplets. Gotículas de saliva voláteis e dispersas no ar, acidentais e involuntárias. Partículas assassinas expulsas pelos espirros e pela tosse, mas também dentro das palavras, o fôlego. Na era da comunicação expandida, o demônio Droplet nos impõe calar. Conter nossas manifestações, reduzir nossos gritos. Atenuar nossa presença, o peso do nosso estorvo no mundo. E o volume da nossa voz. Os nossos gestos.
Talvez devamos acatar, como disse Julia Kristeva, o apelo para aceitarmos a nossa finitude. Para reduzir a nossa exuberância e insolência: para “exprimir o sentido da precaução”.
Olhemos ao nosso redor. Nossa proxêmica mudou, a postura no mundo. Alterou-se a medida instintiva das distâncias entre nós, consolidada nos séculos pelas práticas e pela geografia social, e talvez não volte a ser a mesma. Nos movemos cautelosos e desconfiados, com uma linguagem não verbal que mostra nossas reservas. Somos sujeitos “evitantes”, como os psicólogos definem as personalidades fugazes e um pouco associais. A máscara nos disfarça e, subtraindo-nos ao olhar do outro, nos absolve de reconhece-lo, deixar-nos reconhecer. É um diafragma que nos mimetiza ao cenário, zera os detalhes, nos torna pano de fundo. Uma nova estética – apagados dois terços do rosto – nos uniformiza e neutraliza numa autorrepresentação simplificada e básica, em que até a roupa e o corpo se desdobram numa dimensão anônima, perdido ou reduzido temporariamente o desejo-necessidade de se mostrar.
O outro/a pode ser um inimigo, infeccioso mesmo se assintomático, como eu. A máscara torna-se um auxílio autodefensivo, para represarmos nossas expressões no mundo. Nossos extravasamentos.
Em uma palavra, nosso Spillover. Transbordamento.
Até nossos gestos, mediados ou não pelas luvas, revelam uma nova parcimônia, uma prudência funcional – pegar, largar, cumprimentar de longe – nunca exprimidas. Porque mesmo tocarmos o nosso rosto é um risco.


Atravessamos as ruas oxigenadas e livres, até na perspectiva, que revela cúpulas e terraços nunca vistos. O pinheiral no Etna, as praias, a areia das praias têm as cores brilhantes e frescas da criação, a superfície sem rastros, ou rabiscos. O passo natural – mas também esquivo e tímido – dos cervos, javalis e patos que assomam nos espaços desocupados mostra sua incredulidade.
Agora entendo melhor Annamaria Ortese, quando vê a nostalgia nos olhos dos animais, “as pequenas pessoas” como os chama. Nostalgia de um mundo perdido em que eram parte do todo, um todo livre e puro.
Talvez a nova gramática social será permeada de prudência, paciência, senso de limite. Talvez aprenderemos uma nova reciprocidade, feita de cautelas e sensibilidade às normas. E deixaremos de “ordenhar furtivos o cosmo”, para citar Tranströmer. Talvez entenderemos o custo da nossa covardia em relação à terra e aos animais. E de nossa avidez predatória e irresponsável. Não é mais o Desconforto da civilização, mas o contágio da vilania que nos assedia. Desmascararmo-nos, sair ao aberto, encontrar uma nova linguagem? Tentaremos, ao menos.

Tradução de Francisco Degani


Elvira Seminara é jornalista free lancer desde 1991, antes de se dedicar inteiramente à narrativa, foi redatora do jornal La Sicilia e colabora atualmente com L'Espresso. Seu romance de estreia, L’indecenza [A indecência] foi publicado pela Mondadori em 2008 e venceu o Prêmio Literário Nino Martoglio. Seguiram-se os romances I racconti del parrucchiere [Contos do cabeleireiro] (2009), Scusate la polvere [Desculpem o pó] (2011), La penultima fine del mondo [O penúltimo fim do mundo] (2013) e Atlante degli abiti smessi [Atlas das roupas aposentadas] (2015). 
O presente artigo foi publicado em  Letteratitudine News




[i] MORSELLI, Guido.  Dissipatio H. G. O fim do gênero humano. Trad.: Maurício Santana Dias. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, pp. 17-18.
[ii] Idem, p. 66.



como citar: SEMINARA, Elvira. DEGANI, Francisco. Nova semiótica pós-Covid para humanos e outras criaturas melhores. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.5, jun. 2020Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209821