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O colapso do passado e a incerteza do futuro: a figura do guerreiro Eneias em Giorgio Caproni, por Fabiana Assini
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Enrico Testa
Fabiana Assini
Giorgio Caproni
Patricia Peterle
poesia contemporânea
poesia italiana
em
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Não é novidade que a
experiência da Segunda Guerra Mundial impactou a sociedade e literatura
italiana. Para alguns escritores, como o poeta Giorgio Caproni (1912-1990),
essa experiência bélica tornou-se um evento intrínseco à sua vida, afetando sua
existência e consequentemente, sua escrita. Em sua poética, a guerra não é
simplesmente um evento histórico com início, meio e fim, mas algo que
dura/perdura ao longo do tempo: um dado, como explica Enrico Testa (CAPRONI,
2017), incancelável. É uma “guerra / penetrata nell’ossa”, para recuperar os
versos do terceiro lamento caproniano, que marca, de fato, um acontecimento
dissociável de seu ser, de seu corpo. A poesia, portanto, além de se mostrar
como “uma resposta a esses momentos difíceis, às experiências limites
vivenciadas” (CAPRONI, 2017, p. 23), também é o espaço onde a dor individual
nos tempos de guerra toma a esfera do coletivo, onde o intercâmbio de
experiências se faz possível.
No olhar de Caproni, a
violência do período bélico é percebida como uma violência que também deixa
rastros na condição existencial do homem. Uma existência que o poeta compara à
figura de Eneias, personagem anunciado na coletânea Il passaggio d’Enea,
de 1956. Eneias é o herói da Eneida de Virgílio, guerreiro troiano que
consegue fugir da guerra contra os gregos, levando consigo seu pai e seu filho,
no percurso pelo Mediterrâneo até chegar na península itálica. Uma das
representações dessa fuga é o monumento atualmente localizado na Piazza
Bandiera, em Gênova.
Fonte: https://genovacittasegreta.com/2015/11/07/un-enea-errante/ |
Esculpida em 1726, pelo
artista Giovanni Baratta, a estátua retrata o guerreiro Eneias sustentando o
peso de seu pai, Anquises, que parece escalar o corpo do filho. Também temos a
imagem de Ascânio, herdeiro de Eneias, que é guiado pela mão enquanto mantém
seu olhar para cima. No período fascista, essa escultura se vinculou a um
símbolo político, pois sua monumentalidade, império e potência evocavam imagens
e sentimentos que aproximavam o sonho fascista de retomar valores do passado. É
uma estátua que evidencia a imagem de um guerreiro e sobrevivente da guerra de Troia.
Por sua vez, para Caproni, a figura de Eneias assume outro significado. Ao contrário de ser estática e congelada como sugere uma estátua, na coletânea caproniana Il passaggio d’Enea, se observa um movimento, uma passagem. De acordo com Surdich (1990), Eneias representa o colapso do passado e a incerteza do futuro, o drama de um amanhã desconhecido, principalmente se interpretamos a presença de Anquises como uma referência ao passado, que com toda sua bagagem influencia, de certo modo, Eneias, em contraponto com a figura de Ascânio, que, ainda sem conseguir caminhar sozinho, representa o futuro. Durante os bombardeios da guerra, a estátua se manteve praticamente ilesa em meio aos edifícios destruídos e aos destroços da praça. A figura assume assim a imagem do homem contemporâneo, na qual o passado está destruído, em ruínas, e o futuro é incerto; a escultura representa a solidão do mundo moderno. É a reflexão proposta pelos próprios versos capronianos:
[...] Enea che in spalla
un passato che crolla tenta invano
di porre in salvo, e al rullo d’un tamburo
ch’è uno schianto di mura, per la mano
ha ancora così gracile un futuro
da non reggersi ritto. [...]
[Estrofe IV, da
subdivisão Versos do poema “Il Passaggio d’Enea”]
[...]Eneias que no ombro
um passado demolido tenta
em vão
salvar, e ao rufar de um
tambor
que é um muro desabado,
pela mão
ainda conduz tão grácil
um futuro
que não para em pé. [...]
Nessa coletânea poética
que menciona Eneias, encontramos referências do imediato pós-guerra, das
“ruínas invisíveis”, como aponta Surdich (1990), do reconhecimento do destino
de Eneias. Maurizio Bettini (2001) aponta para um Eneias visto como “símbolo da
trágica conjuntura na qual se encontra a humanidade moderna. Às costas, a
guerra [...]; em frente um futuro débil e incerto, talvez enganador; e quanto
ao cenário presente, ele é constituído somente por ruínas” (2001, p. 106-107). Caproni
mostra-se como um articulador do passado, para retomar o pensamento de
Benjamin: ele não tenta fazer uma recuperação do que de fato foi, do que de
fato aconteceu, mas se apropria de uma reminiscência. Ou seja, o poeta utiliza o
personagem mitológico e tudo o que vem atrelado a ele, trazendo para um tempo e
espaço contemporâneos ao seu.
Fabiana V. Assini
Referências utilizadas no texto:
CAPRONI,
Giorgio. A coisa perdida: Agamben comenta
Caproni. Com organização e tradução de Aurora Fornoni Bernardini.
Florianópolis: Editora da UFSC, 2011, p. 116-117.
CAPRONI,
Giorgio. A porta morgana: ensaios sobre poesia e
tradução. Organização, introdução e tradução de Patricia Peterle; com prefácio
de Enrico Testa. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2017.
SURDICH, Luigi. Giorgio
Caproni. Un ritratto. Genova: Edizioni Costa & Nolan, 1990.
BETTINI, Maurizio.
Il passaggio d’Enea di Giorgio Caproni. In: GRECO, Lorenzo (a cura di). Omaggio
a Caproni. Provincia di Livorno: Pacini Editore, 2001, p. 101-115.
* Esta reflexão faz parte da dissertação de mestrado intitulada Corpo e poesia em Giorgio Caproni, defendida em novembro de 2019.
como citar: ASSINI, Fabiana. O colapso do passado e a incerteza do futuro_ a figura do guerreiro Eneias em Giorgio Caproni.In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.5, jun. 2020. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209833
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