La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

O labor da lima, por Lucia Wataghin

“E de fato os primeiros sábios foram os poetas, ou, queremos dizer, os primeiros sábios se serviram da poesia, ou as primeiras verdades foram anunciadas em versos (...)”[1]
(Leopardi, Zibaldone, 2936)

“Corrige, sodes,/ hoc” aiebat “et hoc”[2]
(Horácio, Epistula ad Pisones

Scherzo 
de Giacomo Leopardi

Quando fanciullo io venni
A pormi con le Muse in disciplina,
Manuscrito autografo (1819-21) de Giacomo Leopardi,
Biblioteca Nacional de Nápoles
L’una di quelle mi pigliò per mano;
E poi tutto quel giorno
La mi condusse intorno
A veder l’officina.
Mostrommi a parte a parte
Gli strumenti dell’arte,
E i servigi diversi
A che ciascun di loro
S’adopra nel lavoro
Delle prose e de’ versi.
Io mirava, e chiedea:
Musa, la lima ov’è? Disse la Dea:
La lima è consumata; or facciam senza.
Ed io, ma di rifarla
Non vi cal, soggiungea, quand’ella è stanca?
Rispose: hassi a rifar, ma il tempo manca.

Scherzo

Quando menino eu vim
Apreender das Musas a disciplina,
Uma delas levou-me pela mão;
E nesse dia inteiro
Conduziu-me ligeiro
Por toda sua oficina
E vi parte por parte
Os petrechos da arte 
E as manhas diversas
Que usam os poetas
Para o labor das letras
Nas prosas e nos versos.
Eu mirava e pedia
Musa, mas e a lima? Disse a Deusa:
A lima cansou-se: obramos sem.
E eu, mas refazê-la
Não lhe importa, quando ela está gasta?
Respondeu: sim, mas o tempo não basta.

[Trad. de Lucia Wataghin e Maria Luisa Vassallo]



O poeta latino Horácio conta, em versos vivacíssimos, como o seu severo amigo Quintílio exigia rigor e disciplina daqueles que lhe pediam conselho em matéria de poesia: “Corrige, por favor, isto e aquilo”. Horácio critica os vates romanos por negligenciar o demorado trabalho da lima (limae labor et mora)[3], e lhes recomenda descartar, cortar, corrigir os versos duros e os desalinhados, emendar os obscuros e os ambíguos, suprimir de todos os “ornamentos supérfluos”.[4]
A Musa Calliope (130-150), anônimo, mármore branco,
Museu Nacional do Prado, Madrid
A recomendação é dura e detalhada e constitui uma parte importante da poética de Horácio, exposta na Epístola aos Pisones (escrita entre 14 e 10 a.C.)Um dos argumentos fundamentais dessa obra, conhecida também como Ars Poetica, é a afirmação da necessidade de volta aos estudos dos gregos, que não descuidaram, como os Romanos, da ars em favor do ingenium; que ditaram ao mundo, em poucas palavras, as regras da boa poesia. Analogamente, muitos séculos depois, Leopardi (1798-1837) repreende seus contemporâneos, os modernos, e declara a impossibilidade da poesia lírica, na modernidade, sem o recurso aos antigos, à tradição grego-latina, especialmente à grega. 
Falta aos modernos a lima – metáfora de trabalho árduo, paciência e disciplina: esse é o tema do breve scherzo que Leopardi põe quase no fim de seus Cantos (mas os Cantos terminam mesmo com dois fragmentos de poemas gregos, por ele traduzidos). Grecidade para Leopardi, quer dizer “castidade expressiva”, “dizer muito com pouco”[5]: disso vemos um nítido exemplo no pequeno diálogo do poeta menino com uma das Musas. 
Mas tentemos considerar esse breve poema como modelo, como diria Calvino, de três dos princípios propostos para a literatura do próximo milênio: leveza, rapidez, exatidão. 
Leveza e fluidez são as características mais imediatamente evidentes: uma estrofe única, com prevalência de settenari, hexassílabos (12, contra 6 endecasillabi, decassílabos), no espírito da canzonetta, pelo tom leve e satírico; rimas abundantes e fáceis, mas espaçadas e alternadas, com o cuidado de evitar o excesso de cantabilidade. “O milagre leopardiano”, escreveu Calvino, “consistiu em aliviar a linguagem de todo seu peso até fazê-la semelhante à luz da lua...”[6] – o caso aqui é menos etéreo, a leveza se aplica ao tom da polêmica, ao jogo irônico do poeta contra a modernidade. 
Quanto ao amor pela rapidez – observe-se o encanto, por exemplo, pela velocidade dos cavalos na página do Zibaldone citada por Calvino“a vivacidade, a energia, a força, a vida de tal sensação” –, a ideia de que a força do estilo poético coincida em grande parte com a rapidez[7], e a própria escolha da forma breve desse Scherzo, não estão em contradição com a recomendação aqui concomitante da demora do trabalho de correção, de emendas, de cuidadoso polimento da obra. A imagem do escritor é assim em clara contraposição com a do poeta romântico que, arrebatado pelo furor da inspiração, não precisará rever nem repensar nada. Não se busca rapidez no processo, mas no resultado da escrita; rapidez coincide com concisão, brevidade, e só é efetiva se conjugada com precisão, exatidão.
Rembrandt, Estudioso em sua mesa (detalhe), óleo sobre tela, 1631,
Museu do Hermitage, São Petersburgo

E, finalmente, exatidão é busca da palavra exata, clara, seca; o scherzo leopardiano é exemplar pela escolha do léxico, que é, como sempre em Leopardi, puro e elevado, e aqui, especialmente simples, enxuto e concreto, voltado para as coisas. A atenção pelo concreto é também teorizada por Leopardi em reação aos Românticos, que se esforçavam ao máximo para distanciar a poesia dos sentidos, querendo “arrastá-la do visível ao invisível, das coisas às ideias”[8]. A lima, o centro da atenção nesse poema, é um objeto material, comum, sólido. Os substantivos abstratos (trabalho, arte, prosa, versos, disciplina, serviços) são referências diretas ao tema, que obedece perfeitamente ao preceito horaciano de simplicidade e unidade. Não há algum “supérfluo ornamento”: em 18 versos, um único adjetivo, e não qualificativo, diversi. Mas o poema é extremamente vivaz, não só graças à prevalência do settenario, mas também ao movimento sintático, com a inserção de discurso direto, de língua falada, de elementos de prosa, nos últimos cinco versos, e a seu final irônico e sorridente, em rima emparelhada.



[1] “E infatti i primi sapienti furono i poeti, o vogliamo dire i primi sapienti si servirono della poesia, o le prime verità furono annunciate in versi (...). Giacomo Leopardi. Zibaldone di pensieri, Milão: Mondadori, 1937-1990, p.832.
[2] “Corrige, por favor, isto e aquilo”. Epistula ad Pisones. Ed. bilíngue. Org. Bruno Maciel, Daria Monteiro, Julia Avelar, Sandra Blanchet. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2013, vv. 438-439.
[3] Ibidem, v. 291.
[4] O trecho traduzido pela équipe da UFMG: O homem íntegro e previdente repreenderá os versos sem arte, / criticará os duros, aos desalinhados cobrirá com um sinal negro / do cálamo transverso, suprimirá os supérfluos ornamentos, / aos pouco claros obrigará a dar luz, /censurará o dito ambíguo, /marcará os dignos de serem mudados (...)”, vv. 445-9. 
[5] Pier Vincenzo Mengaldo. “Giacomo Leopardi: A Silvia”, in Attraverso la poesia italiana. Roma: Carocci, 2008, p. 156. 
[6] Italo Calvino. “Leveza”, in Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 37.
[7] Italo Calvino, “Rapidez”, Ib., p. 55.
[8] Giacomo Leopardi. “Discorso di un italiano sulla poesia romantica”, Bellinzona: Ed. Casagrande, 2000, p. 7.


como citar: WATAGHIN, Lucia. O labor da lima. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.5, jun. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209818

 


Esta é a quinta postagem do projeto Valerio Magrelli - Millennium Poetry: Viagem sentimental na poesia italiana, iniciativa promovida pelo Istituto Italiano di Cultura di São Paulo durante esta Pandemia de Covid-19.

“Cruzaremos oito séculos de poesia italiana seguindo um percurso autoral. Exclusivamente para o público do IICSP, graças à colaboração da Editora Emons, o poeta Valerio Magrelli apresenta e ilustra em áudio trechos da própria particularíssima antologia de poesia italiana. A proposta é enriquecida pelas traduções e comentários (literatura-italiana.blogspot.com) em português dos professores Patricia Peterle e Andrea Santurbano da UFSC e Lucia Wataghin da USP.”

Os trechos serão publicados pelo canal YouTube do IIC nas datas abaixo. Para acessar, é preciso estar inscrito na NewsLetter do IICSP.