La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Poesia e indústria: interseções a partir dos anos sessenta, por Elena Santi

Il Politecnico. Fonte: Scarti e metamorfosi 

A década de sessenta, na Itália, representa um importante momento de repensamento sobre arte, literatura, sociedade, após a destruição deixada pela Segunda Guerra Mundial. É interessante notar que, enquanto a sociedade mudava, em direção de uma maior liberdade e uma ruptura de certas convenções sociais, a literatura também estava quebrando algumas barreiras e convenções, tentando se abrir para o novo, e encorporar a confusão de um presente que se fazia cada vez mais plural, evanescente, estranho. E, nesse contexto, alguns intelectuais, estimulados pela experiência da revista Il Politecnico, se interrogam sobre as interseções entre poesia e meios de produção. 

Entre as vozes que diretamente se inserem no debate, destacamos a de Vittorio Sereni (1913-1983), que publica Una visita in fabbrica (1952-1958), um longo poema que irá confluir em Gli strumenti umani de 1965. A escrita nasce de uma real visita do poeta em uma fábrica da Pirelli, já que, durante muitos anos, trabalhou nos escritórios da empresa. É importante destacar o fato de que a poesia não é construída como uma descrição direta da situação observada, de fato “não se tem uma fotografia, é a fábrica, nos versos de Sereni, que pouco a pouco vai se desdobrando, por meio de uma pluralidade de vozes que parecem se sobrepor” (PETERLE, 2015, p. 46). O retrato da fábrica, portanto, é conduzido por meio das impressões sonoras, dos barulhos que permeiam aquele espaço transformando a atmosfera em algo estranho e perturbador. O som das sirenes, que relembram as sirenes da guerra, marcam o tempo, que não é mais natural, mas dobrado aos ritmos marcados pelos apitos. 


[...] Quel fragore. E le macchine, le trafile e le calandre,
questi nomi per me presto di solo suono nel buio della mente
rumore che si somma a rumore e presto spavento per me
straniero al grande moto e da questo agganciato.

Em tradução livre:

[...] Aquele barulho. E as máquinas, as fieiras e as calandras
estes nomes para mim já somente de som no escuro da mente
barulho que se soma a barulho e logo espanto para mim
estranho ao grande movimento e por este agarrado.

Essa situação de estranhamento e despersonalização é retratada por outros poetas, ao longo das décadas. A relação entre poesia e fábrica é amplamente explorada, entre outros por Fabio Franzin (1963). Franzin, que escreve tanto no dialeto de Motta di Livenza, uma pequena cidade perto de Treviso, na região do Vêneto, quanto em italiano, além de ter ele mesmo trabalhado em fábrica, publicou várias coletâneas sobre o tema, como Fabrica (2009) Co’e man monche (2011), I nuovi vinti (2014). Referindo-se ao espírito que anima sua escrita, afirma em uma entrevista publicada em italiano na revista Mosaico e em português no livro Vozes: cinco décadas de poesia italiana

As minhas coletâneas “operárias” nasceram da necessidade de dar voz a quem, privado da própria dignidade, participou, com seu trabalho, seu suor, seus dedos dilacerados por uma fresa, com suas horas e horas-extras fechado num galpão, do bem-estar, ainda que corrompido de uma comunidade. Quando escrevi Fabrica, publicado em 2009, cuja gestação, no entanto, durava há alguns anos, percebi que somente se falava dos operários quando já não existiam mais: quando morriam no trabalho. Só então a sociedade, que sonhava com profissões mais desejadas, precisava se dar conta que existiam ainda operários em seu seio, que não eram apenas o legado histórico de um tempo passado, com seus lemas, suas greves, suas lutas. (FRANZIN apud PETERLE; SANTI, 2017, p. 404) 

Nessa corrida em direção a um bem-estar falacioso, que mudou completamente a paisagem do nordeste italiano, o poeta sente a urgência de falar do trabalho da fábrica, das condições dos operários esquecidos pela sociedade, de seu mundo, de sues problemas. E é sempre a partir das vozes que povoam as fábricas que o poema toma corpo, as vozes dos trabalhadores, silenciadas, mais uma vez, pelas sirenes que ecoam no espaço:

Fabio Franzin. Fonte: Poeti del parco

Me despiase
Ieri, el kosovaro che ‘l lavora co’ mì
el me ‘à domandà se podhée prestarghe
zhinquanta euro, el se vardéa tii pie

pa’ far su ‘l coràjo de chee paròe
chissà par quant rumegàdhe – lo sa
che ‘ò dó fiòi, el mutuo pa’a casa

e tut el resto – e za ‘l savéa, son sicuro
anca ‘a mé risposta, parché no’l se ‘à
ciapàdha, sì, sì, certo, capisco l’à dita

sgorlàndo ‘a testa intànt che ‘ndessi
verso i reparti, i guanti strenti tea man.
Però mi nò che no’ lo riconossée pì

co’là che ghe ‘à tocà dir mi dispiace
proprio co’ ièra drio sonàr ‘a sirena
e no’ restéa tenpo nianca pa’a vergogna


Me desculpe
Ontem o kosovar que trabalha comigo
me perguntou se poderia emprestar-lhe
cinquenta euros, olhava para seus pés

enquanto formulava aquele seu pedido
quem sabe por quanto tempo meditado - ele sabe
que tenho dois filhos e a hipoteca da casa

e todo o resto – e, tenho certeza, já sabia
a minha resposta também, pois não implicou
sim, sim, entendo, continuava

dizendo, balançando a cabeça, enquanto nos encaminhávamos
para os departamentos, as luvas apertadas nas mãos.
Contudo, eu é que não o reconhecia,

aquele que teve que dizer sinto muito
logo quando tocava a sirene
e não havia mais tempo, nem para a vergonha.
(Tradução livre - Disponível em http://poesia.blog.rainews.it/2013/08/fabio-franzin-fabrica-e-altre-poesie/, Acesso em 08/04/2020)



“Ieri, il kosovaro che lavora con me / mi ha chiesto se potevo imprestargli / cinquanta euro, si guardavanei piedi // mentre formulava quella sua richiesta / chissà quanto a lungo meditata – lo sa / che ho due figli il mutuo per la casa // e tutto il resto – e sono sicuro conoscesse / anche la mia risposta perché non se l’è / presa sì, sì, certo, capisco continuava // a dire scrollando la testa, intanto che ci avviavamo / verso i reparti, stretti i guanti nella mano. / Però io no che non lo riconoscevo // quello che ha dovuto dire mi dispiace / proprio quando suonava la sirena / e non c’era più tempo neanche per la vergogna”. (Tradução para o italiano de Fabio Franzin).

Nesse poema, Franzin não retrata diretamente a fábrica, mas traça a imagem dela por meio de um diálogo, que acontece entre dois operários. A situação de dificuldade e degradação do trabalho é trazida através das palavras que os dois trocam, um pedindo dinheiro emprestado para o outro, mesmo sabendo que este não poderá lhe fazer esse favor, já que também se encontra em uma posição econômica precária. Os gestos ganham uma importância fundamental, tornando-se quase plásticos: a vergonha é retratada por meio do olhar de quem se sente humilhado pelo próprio pedido. O espaço do poema se torna híbrido, acolhendo enxertos meditativos e frases dialogadas, descrições e gestos, costurados sem solução de continuidade. A opressão ganha corpo se incorporando no poema. E, novamente, intervém bruscamente o som da sirene, dessa vez no final do poema, interrompendo o momento dialógico, emudecendo os trabalhadores, e deixando um silêncio ensurdecedor que se funde com o branco da página. 

Nesse itinerário entre poesia e fábrica, entre vozes que entram no debate logo nos anos do boom econômico, como a de Vittorio Sereni, e outras que nos falam da contemporaneidade, como a de Fabio Franzin, se insere também uma outra experiência, de um poeta que entrelaça uma relação de profunda amizade e admiração com Sereni, e cuja obra dialoga abertamente com Una visita in fabbrica: Giovanni Raboni (1932-2004). Milanês, muito ligado à sua cidade, observa a mudança que vem com o desenvolvimento econômico, que transforma Milão em um dos pontos mais industrializados de Itália, provocando um sentimento de corrompimento e perda de identidade. Esse sentimento não é registrado somente por Raboni, mas vários outros poetas, intelectuais e artistas analisam, de várias maneiras, a situação do país em fase de mudança; entre outros lembramos Elio Pagliarani (1927-2012) com La ragazza Carla (1962) e Pier Paolo Pasolini que em 1975 publica no Corriere della sera um artigo intitulado Il vuoto del potere in Italia, mas conhecido como L'articolo delle lucciole [o artigo dos vagalumes]. Nesse texto Pasolini fala abertamente de uma mutação antropológica do povo italiano, que, nessa mudança industrial, está perdendo suas tradições e sua indentidade. Raboni, por sua vez, publica em 1966 a coletânea Le case della Vetra, em que podemos encontrar um texto que dialoga abertamente com o poema de Vittorio Sereni, cujo título é "Dal vecchio al nuovo": 

Dal vecchio al nuovo 
Giovanni Raboni. Fonte: Italian Poetry
Beh, certo, una buona ripulita… La fabbrica 
(corpi bassi e staccati, di mattoni) 
è coperta di rampicanti, di muschio 
o è come se lo fosse. Qualche sera – d’estate 
con in testa un cappello da fattore – 
è capace di aspettare che gli operai, saranno
cinque o seicento, passino il cancello: buonanotte, 
buona festa eccetera. Sa lui, lui solo 
che guanti usare volta a volta, il ricatto morale, 
la concisione nel refettorio, la minaccia 
di licenziamenti o serrata. «Bisogna 
rimetterci le mani…»  
(passando anche noi il cancello, col motore 
che va su di giri): piazzare                                                        
due o tre cronometristi, un ingegnere al posto 
di stivali e frusta e di tante parole 
viscide, mielate. Persino 
le macchine, se dài retta a loro, sembra che vadano 
a soffio, a parole… Sì, presto 
una buona ripulita, con gli operai 
un rapporto finalmente preciso, virile, si sappia 
chi sfrutta e chi è sfruttato, un rapporto preciso 
è sempre il più pulito. «Dunque andiamo 
verso la mezza stagione» mi sembra di dire, al buio 
della corsa – in città per la cena – cercando 
di vedere la forma delle case



Do velho ao novo
Bom, certo, uma bela limpeza… A fábrica
(corpos baixos e arrancados, de tijolos)
está coberta de trepadeiras, de musgo
ou é como se estivesse. Alguma noite - de verão
levando na cabeça um chapéu de fazendeiro –
é capaz de esperar que os operários, devem ser
cinco ou seiscentos, passem o portão: boa noite,
boas festas etecetera. Sabe ele, somente ele
que luvas usar cada vez a chantagem moral,
a concisão no refeitório, a ameaça
de demissões ou paralisação. “É preciso
perder as mãos…”
(passando nós também o portão, com o motor
que fica acelerado): colocar
dois ou três cronometristas, um engenheiro em lugar
de botas e chicote e de tantas palavras
nojentas, meladas. Até
as máquinas, se der ouvidos a eles, parece que funcionem
com sopro, com palavras… sim, depressa
uma bela limpeza, com os operários
uma relação, por fim, precisa, viril, se saiba
quem explora e quem é explorado, uma relação precisa
é sempre a mais limpa.” Então vamos
para a meia temporada” me parece dizer, no escuro
da corrida - na cidade para a janta - procurando ver a forma das casas”.
(RABONI, 2006, p. 67 - Tradução livre) 

Como aponta Anna Chella (2017), Raboni trabalha com um ponto de vista interno, criando um emaranhado de vozes dialogantes, em que as falas dos operários, dos patrões, dos funcionários se entrecruzam, mostrando como as relações de trabalho sejam confusas e complexas, e a relação entre exploradores e explorados se torna menos legível e, por isso, muito mais terrível. 
O poema traz o “o monólogo de um personagem empenhado no reconhecimento de uma fábrica da qual se está projetando uma reforma edil e de gestão” (ZUCCO, 2006, p. 1455 - tradução nossa). Encontramo-nos em frente a um espaço industrial, uma fábrica, que parece estar em desuso, pronta para uma requalificação. A atmosfera, porém, se apresenta desde o começo mais evanescente do que se parece, já que, logo a partir do segundo verso, o poeta parece se referir ao espaço não por como ele é, mas por como parece ser (“A fábrica / (corpos baixos e arrancados, de tijolos) / está coberta de trepadeiras, de musgo / ou é como se estivesse”). A partir desse momento, a descrição da fábrica é conduzida através de uma série de vozes que se incorporam à voz monologante principal, se sobrepõem e se intersectam, criando uma atmosfera tão sugestiva quanto complexa. As vozes dos operários (“É preciso / perder as mãos…") se misturam àquelas dos patrões, tanto por meio do discurso direto, quanto, e principalmente, do discurso indireto livre, formando um emaranhado de vozes que parecem, aparentemente, indistinguíveis, mas que, progressivamente, se desdobram, revelando as presenças que a fábrica evoca. É uma fábrica deserta, que é recuperada somente pelos sons que a compuseram, povoada pelos acontecimentos que lá tiveram lugar. E, desses acontecimentos, permanecem somente os rastros sonoros, as vozes dos oprimidos, dos opressores, das ameaças, das demissões, das greves, mas também das cabeças abaixadas, dos cumprimentos burocráticos, das frases feitas que marcam o cotidiano da vida dentro da fábrica. No final do poema, Raboni insere outro discurso direto, em que a voz que entra em cena parece ser do visitante da fábrica, trazendo de maneira evidente o seu ponto de vista (“Então vamos / para a meia temporada”) que abaixa o tom da enunciação, colocando o discurso no plano da cotidianidade corriqueira. O verso traz consigo a ideia da frase feita, dita só por dizer algo, proferida por alguém que, depois de uma longa jornada de trabalho, está no ônibus, a caminho de casa, um pouco antes do jantar, enquanto no escuro tenta entrever o desenho das casas. A fábrica, que nesse poema passa por uma reforma, em todo caso, não muda sua essência, feita também de banalização do cotidiano, marcado pelos ritmos do trabalho diário, onde as frases circunstanciais e os bom dia tanto para dizer algo se tornam um símbolo da banalização do viver que podemos encontrar também nos textos e nas declarações de Vittorio Sereni e Fabio Franzin. 

Referências: 

CHELLA, Anna. Giovanni Raboni poeta e lettore di poesia (1953-1966). Firenze: Firenze University Press, 2017.
FRAZIN, Fabio. Fabrica e "altre poesie". Disponível em: <http://poesia.blog.rainews.it/2013/08/fabio-franzin-fabrica-e-altre-poesie/>. Último acesso em: 14/04/2020. 
PETERLE, Patricia; SANTI, Elena (org.). Vozes: cinco décadas de poesia italiana. Rio de Janeiro: Editora Comunità, 2017.
PETERLE, Patricia. No limite da palavra: percursos pela poesia italiana. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.
RABONI, Giovanni. L’opera poetica. Milano: Mondadori, 2006.
SERENI, Vittorio. Poesie e prose. Milano: Mondadori, 2013.
ZUCCO, Rodolfo. Apparato critico. In: RABONI, Giovanni. L’opera poetica. Milano: Mondadori, 2006, p. 1373 - 1799. 


como citar:  SANTI, Elena. Poesia e indústria_ interseções a partir dos anos sessenta. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.5, jun. 2020. Disponível em
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209824