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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
biopolítica
Franco Fortini
Tatiara Pinto
em
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Franco Fortini
Fonte: https://www.poeticous.com/franco-fortini |
Talvez o nome de Franco Fortini diga pouco entre os
estudiosos mais jovens da literatura italiana, no entanto o mestre da nova
esquerda foi um importante intelectual da segunda metade do século XX. Do seu
trabalho como poeta, tradutor e professor sobressai o rigor político da crítica
literária que praticava. Valendo-se da primeira dissertação sobre o autor
produzida no Brasil, “O sono
e o sonho na poética de Franco Fortini”, esse
texto quer destacar o traço cristão, trágico-heroico da poesia fortiniana para
pensar, ainda que brevemente, como sua poesia, a potencialidade onírica
ameríndia e a perda da presença diante de catástrofes apocalípticas podem se
relacionar.
Há um poema do terceiro livro Una volta per sempre (1963) no qual o
onírico se integra ao mundo mítico. O título é “A Cesano Maderno”, remetendo a uma localidade entre Milão e Como
(cidade conhecida pelo famoso romance de Alessandro Manzoni). Lê-se os dois últimos
quartetos:
[...]
la ciotola di legno e comprano al negozio
del padrone, nell'alto Perù o nell'interno
dell' India? Lungo le grandi autostrade fra i traini
militari la sera si torna.
Cene di pane ancora senza lievito. Non è
perduto il mondo eterno, è ancora nel sonno
dove non passano più
i muli dove sola la vipera vive.
Em tradução livre:
a tigela de madeira e compram na tenda
do patrão no alto Peru ou no interno
da Índia? Na grande rodovia entre os reboques
militares a noite volta.
Cenas de pão ainda sem fermento. Não é
perdido o mundo eterno, está ainda no sono
onde não passa mais
as mulas onde só a víbora vive.*
(FORTINI, 2014, p. 276, tradução e grifo nosso).
Dividido
em dez quartetos o poema nasce
contemporaneamente ao experimentalismo linguístico do Grupo 63. Um dispositivo
estético presente nele é o enjambement –
que
Giorgio Agamben em O fim do poema
chamou de “oposição entre um limite métrico e um limite
sintático” – quando o verso rompe sintaticamente, como se pode notar no primeiro
verso da segunda estrofe transcrita acima. Ainda neste período Fortini mediava
e traduzia Bertolt Brecht na Itália e assimilava algumas das suas operações como
o emolduramento do gesto, presente no
poema “Traducendo Brecht”, neste mesmo livro Una volta per sempre. Isso
para destacar que a busca linguística pela suspensão do tempo e da ordem tem o
objetivo de fazer o espectador ou o leitor refletir sobre sua própria condição,
o que diz muito sobre Fortini e sua crença no papel revolucionário da poesia.
Nas primeiras sete estrofes de “A Cesano Maderno” o ritmo segue a cadência descritiva,
nomeia as pessoas de seu tempo: Carlo; Michele; Noventa; Salvini e a paisagem
da cidade de Cesano Maderno, localizada na região da Lombardia. Já na metade da
sétima estrofe surgem dois versos, dois questionamentos: “Porque falas deles?
Te sentes judeu,/ tu que nunca o quis ser?” Com isso, a descrição que vinha
sendo feita é interrompida pela questão existencial, o tempo verbal passa a ser
outro e o ritmo tranquilo, do qual gozava o poema até então, é abandonado.
Ainda sobre esse tipo de verso intervenção, “Por que
falas deles?”, Francesco Diaco em Dialletica
e speranzza. Sulla poesia di Franco Fortini (2017) chama de deslocamento
entre o horizonte do “eu” poético com o autor, quando surgem nos versos
perguntas diretas (tu), que parecem vir de uma outra voz, uma espécie de alter
ego no poema. Pois, ao descrever a vida dos outros, nos versos, parece haver um
espelhamento, seguido de violenta indignação sobre a própria condição e esta
constatação toma a fruição do poema, modificando sua estrutura até então
prosaica.
Após essa ruptura rítimica no poema,
o sujeito poético adota um tom consolatório ao enfatizar a semelhança entre os
sem pátria: “Não sabes que és igual aos infinitos/ na pátria sem pátria, que
despedaçaram”. Na sequência, entre os dois últimos quartetos do poema,
transcritos acima, estão os versos centrais para a leitura a ser feita: “Não é/
perdido o mundo eterno, está ainda no
sono/ onde não passam mais/ as mulas onde só a víbora vive.” Tais versos
apontam para um espaço outro, um mundo eterno, que não foi perdido, passível de
acesso através do plano onírico. O advérbio de tempo “ainda” deixa uma sensação
de que há a possibilidade de se perder esse mundo eterno, que equivaleria a não
sobreviver ao apocalipse difundido pelo cristianismo.
Para
tal reflexão, assim como na referida dissertação, a leitura se
aproxima do pensamento ameríndio com a intenção de
“perspectivar contrastes”, de investigar se haveria nessas culturas uma política
do sonho. Em última instância, uma tentativa de descolonizar epistemologias canônicas,
valendo-se da cosmovisão Yanomami, transcrita por Davi Kopenawa e Bruce Albert na obra A queda do céu (2015). Originalmente a obra
foi publicada em francês pelo programa Carlos Drummond de Andrade da Mediateca
da “Maison de France”, com o apoio da Embaixada da França no Brasil, do
Instituto Socioambiental, do Instituto Arapyuá e foi traduzida por Beatriz
Perrone-Moisés.
Na abertura de A queda do céu, antes mesmo do sumário,
há uma citação do antropólogo Claude Lévi-Strauss, um pioneiro em legitimar as vozes
da floresta. Ele constata o “quão emblemático é poder ouvir sobre esse sistema
de conhecimento que tanto diz sobre nossa existência”, e que ainda temos
dificuldades para compreender que “não são apenas os índios, mas também os
brancos, que estão ameaçados pela cobiça de ouro e pelas epidemias introduzidas
por estes últimos. Todos serão arrastados pela mesma catástrofe, a não ser que
se compreenda que o respeito pelo outro é a condição de sobrevivência de cada
um.” (KOPENAWA, ALBERT, 2017, p. 5).
Para poder compreender essa metafísica diferente da
hegemônica ocidental que estamos acostumados seria interessante, para não dizer
necessário, trilhar o conceito complexo de perspectivismo ou ‘maneirismo
corporal,’ desenvolvido pelo etnólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro no
livro A inconstância da alma selvagem
(2002). Pois não se exagera ao dizer que o pensamento ameríndio traz consigo
outra maneira muito mais elástica no que diz respeito à compreensão do mundo e,
por sua vez, do sonho. No entanto, isso só é possível graças a um sistema de
conhecimento diversificado, um outro olhar para compreender, por exemplo, o que
é humano. De antemão adverte-se que isso seria de fato possível através de
outras lentes, outras categorias, mas ainda não as temos, o que explicaria a
necessidade de uma “projeção cosmopolítica deformante da nossa tradição”,
conforme Castro. Além do que, seria irresponsável trazer a visão Yanonami do
sonho sem ao menos tentar enumerar de forma simplificada algumas bases de seu
pensamento.
Na tradição milenar de Davi Kopenawa, líder do povo
Yanomani, o sonho é parte fundamental do sistema de conhecimentos. Para muitas culturas ameríndias o espaço do sonho contém
os espíritos do passado e seus ensinamentos, o acesso a eles é de suma
importância para a continuidade de sua Verdade. Outra forma de acesso ocorre ao
soprarem o pó yãkoana em suas narinas, os xamãs dormem em estado de
fantasma, entrando em contato com os xapiri, ou espíritos ancestrais. São os xamãs que possuem
dentro de si o valor de sonho dos espíritos, são os xapiri que os conduzem
para sonhar/ver tão longe. Assim o xamã é o responsável por transmitir os
conhecimentos ancestrais ao seu povo, ele tem permissão inclusive para
transitar entre o mundo dos vivos e dos mortos, quem compreende e atua em ambas
dimensões, um mediador do mundo eterno “onde não passam mais/ as mulas onde só a víbora
vive”, como descrito no poema de Fortini.
Dito isso, é possível notar que os
versos de “A Cesano Maderno” ecoam uma noção mais ampla sobre a realidade
onírica, na qual, um mundo eterno e comum poderia ser acessado em estados
profundos do inconsciente, via sonho. Tal noção parece encontrar mais
semelhanças no conceito de “inconsciente coletivo” de Jung do que na definição
freudiana do inconsciente. Ainda que Freud tenha reconhecido que o sonho é a
via régia do inconsciente, esse seria sempre de natureza pessoal, repleto de
elementos nunca conscientes que foram esquecidos e/ou reprimidos. Fortini teve
contato com os estudos de Jung, pois cita-o no texto Introduzione a Mario Luzi, “Discorso naturale”, e em O movimento
surrealista (1965), a única
obra do poeta traduzida em português pela editora Presença de Lisboa, deste
último destaca-se:
A obra do psicanalista Jung traçara toda a rede das
relações que liga as imaginações mórbidas dos doentes mentais às figurações da
alquimia e da magia, aos seus símbolos e os mitos do “inconsciente coletivo”;
e, a propósito disso, falava ele de “arquétipos” profundos do sentimento
religioso. Não é, pois, de estranhar que por este caminho, apesar das
resistências, das precisões (e quando necessário, das excomunhões) de um
Breton, toda uma hoste do surrealismo começasse ou voltasse a cortejar o
sentimento religioso e, frequentemente, adotasse um impreciso anarquismo,
quando não a aberta reação política. (FORTINI, 1965, p. 44).
Ao
identificar os “arquétipos” profundos de cunho religioso Fortini
traz a relação pela qual André Breton e outros surrealistas tendiam, de certa
maneira, ao símbolo e à ritualística. O mito como uma matéria latente do
surrealismo e o surrealismo como política do devir, uma espécie de carapaça que
protegia as potências do ser de toda a hegemonia operante no pós-guerra. Tais
incursões políticas e culturais são como uma porta para a poesia fortiniana poder
desfrutar de qualquer compensação simbólica que ela venha a ter, mesmo enquanto
subordinada à contingência revolucionária.
Assim como no surrealismo se preservava a
própria e mágica subjetividade, a mítica
central de A queda do céu gira em torno de visões sobre a
barriga do céu cair, da
perda do mundo eterno. O que dialoga com o
antropólogo italiano Ernesto De
Martino, quando afirma em, La fine
del mondo (1977), que “quando a
rigorosa repetição da ordem fundada nas origens míticas é abalada”
como, por exemplo, a colonização escravagista na América,
diz ele, ocorre a experiência ou profecia de uma eminente catástrofe do fim do
mundo, como punição. O que seria uma forma de autopreservação do lugar “onde a
consciência cultural se orienta” no sentido de proteger o futuro e assim, “o
mundo primitivo se mantém, é operável, enquanto é visto pela consciência
cultural como um mundo das origens que se repetem cerimonialmente”
(DE MARTINO,
1977, p. 361). O grito ameríndio sufocado há 500 anos aparece ainda
na recente obra Ideias para adiar o fim
do mundo (2019), de outro líder indígena, Ailton Krenak.
E
de fato o livro de Kopenawa trata de verdades em que “todos seremos arrastados
pela mesma catástrofe” – o que faz lembrar a descrição bejaminiana da obra Angelus Novus – pois para além
de registro dos conhecimentos de um povo, A
queda do céu é, antes de tudo, um apelo contra formas destrutivas de
exploração da terra, um chamado para proteger um modo de estar na terra, enquanto “não
é/ perdido o mundo eterno, está ainda
no sono”. Uma vez que, o corpo ameríndio figura um contra-corpo do capitalismo.
Eles seguem “lutando desesperadamente para preservar suas crenças e ritos, o xamã yanomami pensa trabalhar
para o bem de todos, inclusive seus mais cruéis inimigos. Formulada nos termos
de uma metafísica que não é nossa, essa concepção da solidariedade e da
diversidade humanas, e de uma implicação mútua, impressiona pela grandeza.” (KOPENAWA,
ALBERT, 2017, p. 5).
Com isso, a noção de “perda da presença”, é central
para pensar o “mito” da catástrofe do fim do mundo, nas obras trazidas para
essa leitura. Curiosamente na última obra
poética de Fortini publicada em vida Composita
Solvantur (1994), o título latino quer dizer ‘dissolva-se tudo o que é
composto’, o último poema, sem título, inicia retomando o primeiro verso “E este
é o sono”, do primeiro livro Foglio di
via (1946), um poema também sem título. Este último poema parece advertir enfaticamente
(por conta do imperativo) contra um estado de morte, nos versos: “não pela
honra dos antigos deuses/ nem pelo nosso mas defendei nos. Tudo é agora um
grito só./ Como este silêncio e o sono próximo” (FORTINI, 2014, p. 561-562).
Em Ultime Volontà (1989)
Fortini diz que ainda é válida a verdade hegeliana que De Martino relembra em
seu livro póstumo La Fine del mondo
que “a morte precisa estar ao nosso lado todo dia se se quer sair da condição
de servo que a afugenta e se consola com mitos de catástrofes que derrubaríamos
juntos a ele aos seus senhores.” (FORTINI, 2003, p. 1661-1662). Ou seja, a ameaça
de morte como alavanca para modificar estruturas de opressões consolidadas.
Não obstante, em Gli ultimi tempi (Note al
dialogo di De Martino e Cases) publicado inicialmente na revista “Quaderni
piacentini” em 1965 e depois organizado em livro como Due interlocutori, ao se deter sobre a “precariedade humana no
mundo” Fortini diz que a vida é precária enquanto
naturalidade e enquanto historicidade, e estes dois componentes são
distinguíveis até a sua união que é a “reconciliação”, da qual falava Marx. Fortini
cita De Martino:
Esta precariedade é simplesmente a rudimentalidade dos
meios técnicos de domínio da natureza (como é no caso das sociedades
primitivas) ou ao emprego deles à fins destrutíveis (como acontece nas guerras
modernas); ou seja é uma relação em vários níveis desumana entre homem e homem,
uma contradição interna à sociedade humana, um
limite de humanismo, onde determinados grupos humanos estão em respeito a
outros em uma condição instrumental, como “natureza” e como “almas mortas”
[...] a precariedade existencial [...] é contexto de situação que o homem gerou
e que o homem pode reunir e modificar até a fundação de uma ordem humana na
qual o homem seja realmente integrado na história, e se coloque como cidadão de
direito e de fato possa por isso aceitá-la, sem angústia. (FORTINI, 2003, pp.
1391-1392, grifo nosso).
*Revisão da tradução:
Vincenzina Ciavarella.
Referências:
DE MARTINO, Ernesto. La
fine del mondo. Contributo all´analisi delle apocalissi culturali. Torino, Einaudi, 1977.
FORTINI, Franco. O
movimento surrealista. Tradução de Antônio
Ramos Rosa. Lisboa: Presença, 1965.
_________. Saggi ed epigrammi. Milano: Mondadori,
2003.
_________. Tutte le poesie. Milano:
Mondadori, 2014.
KOPENAWA, Davi. ALBERT, Bruce A queda do céu.
Palavras de uma xamã Yanomami. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017.
como citar: PINTO, Tatiara. “Tudo é agora um grito só”_ Franco Fortini em Watoriki . In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.5, jun. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209830
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