La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Eduardo e Pier Paolo: encontro, desencontro, reencontro, por Mariarosaria Fabris

No dia 24 de setembro de 1975, Pier Paolo Pasolini endereçava uma carta a Eduardo De Filippo:

Caro Eduardo, aqui vai enfim por escrito o filme do qual lhe falo já faz anos. Substancialmente está tudo aí. Faltam os diálogos, ainda provisórios, porque conto muito com sua colaboração, até mesmo improvisada, enquanto filmamos. Confio-lhe completamente Epifanio: por princípio, por parti pris, por escolha. E é você. O “você” do sonho, aparentemente idealizado; para todos os efeitos, real. [...]
Eu mesmo o li por inteiro hoje – há pouco – pela primeira vez, e fiquei traumatizado, transtornado por seu engajamento “ideológico”, precisamente, de “poema”, e esmagado por sua envergadura organizativa.
Espero, com toda a minha paixão, não só que você goste do filme e que aceite fazê-lo, mas que me ajude e me encoraje a enfrentar tal empreitada. [1]

     
O texto que o diretor estava enviando ao consagrado dramaturgo e ator napolitano era o argumento de Porno-Teo-Kolossal, projeto adiado para filmar Salò o le 120 giornate di Sodoma (Saló ou os 120 dias de Sodoma, 1975). As primeiras notícias sobre Porno-Teo-Kolossal remontam a 1966. Segundo Sergio Citti, constante colaborador do cineasta, enquanto rodavam “La terra vista dalla luna” (“A terra vista da lua”), que integrou Le streghe (As bruxas, 1966), o produtor Dino De Laurentiis propôs a Pasolini a realização de um programa natalino, de uma hora, para uma rede televisiva norte-americana. “Assim surgiu uma ideia sobre os Reis Magos, que Pier Paolo queria intitular I Re magi randagi [Os reis magos errantes]”, relata Citti. [2] Fato confirmado na realização seguinte, “Che cosa sono le nuvole?” (“O que são as nuvens?”), terceiro episódio do filme Capriccio all’italiana (Capricho à italiana, 1967).
“Che cosa sono le nuvole?” deveria ter constituído o segundo segmento de Che cos’è il cinema? [O que é o cinema?] ou Smandolinate [Bandolinadas, ou antes, composições poéticas melosas e amaneiradas]. O diretor refere-se ao projeto, no prólogo desse episódio, ao focalizar os cartazes das quatro partes que o comporiam – “La terra vista dalla luna”, “Che cosa sono le nuvole?”, “Le avventure del re magio randagio e il suo schiavetto Schiaffo” [As aventuras do rei mago errante e de seu pequeno escravo Tapa] e “Mandolini” [Bandolins] –, todas interpretadas por Totò (que viria a falecer em 15 de abril de 1967). Enquanto no primeiro cartaz, já rasgado e jogado no chão, está escrito “ontem”, os demais anunciam os espetáculos para “hoje”, “amanhã” e em “breve”, respectivamente. [3]
A ideia inicial é enviada pelo cineasta, entre 15 e 29 de dezembro de 1968, a Giulia Maria Crespi – em cuja propriedade rural ele tinha filmado algumas sequências de Teorema (Teorema, 1968) –, que lhe havia solicitado uma história para os filhos declamarem no Natal. Pasolini retoma o projeto em 1973, tendo elaborado um argumento de setenta e cinco laudas intitulado Il cinema, e o conclui em 1975.
Nos dois volumes que reúnem toda a produção cinematográfica pasoliniana, Per il cinema (2001), os organizadores Walter Siti e Franco Zabagli incluem apenas o argumento (1967-1975), mas outros autores relatam que, terminada a montagem da polêmica obra inspirada no Marquês de Sade, o cineasta e Sergio Citti escreveram o roteiro de Porno-Teo-Kolossal, o qual será posteriormente aproveitado em parte por Citti em I magi randagi (1996), filme que, no entanto, não parece ter muito a ver com a proposta inicial.
Retomando o tom picaresco, fabuloso e apologético de Uccellacci e uccellini (Gaviões e passarinhos, 1966) e acrescentando-lhe boas pitadas de erotismo, Pasolini torna a pôr em cena dois andarilhos (Epifanio/Eduardo De Filippo e Nunzio/Ninetto Davoli), que, desta vez, perseguem uma Estrela-Guia, metáfora da Ideologia, numa longa viagem por três emblemáticas cidades ocidentais – Sodoma/Roma, Gomorra/Milão e Numância/Paris – e uma cidade oriental, Ur, onde “o Messias nasceu, mas passou muito tempo, e está até morto e esquecido”, [4] descoberta que corresponde ao fim de toda e qualquer utopia.
O assassinato do cineasta, na praia de Óstia (Roma), na noite de 1 para 2 de novembro de 1975, põe fim ao projeto. No filme Pasolini (2014), no entanto, o diretor norte-americano Abel Ferrara rodou algumas partes do roteiro pasoliniano. Com Ninetto Davoli no papel de Epifanio e Riccardo Scamarcio no de Nunzio, o resultado foi pífio: se Scamarcio não teve a espontaneidade e a malícia pícara que caracterizou Ninetto em Uccellacci e uccellini, Davoli não esteve à altura do personagem concebido para Eduardo, por não possuir os dotes interpretativos nem a verve irônica do artista napolitano. [5]
Num depoimento dado à emissora televisiva Rai 3, no dia seguinte ao do crime, Eduardo De Filippo assim se refere ao nefasto acontecimento:

Olhe, não é porque estamos neste momento em que desapareceu e por cima de um jeito tão cruel, porque eu sei distinguir um morto de outro morto e um vivo de outro vivo. Pasolini era realmente um homem adorável, indefeso, era uma criatura angélica, uma criatura que perdemos e que não mais encontraremos como homem, mas, como poeta, sua voz eleva-se ainda mais e tenho certeza de que mesmo os opositores de Pasolini hoje começarão a entender sua mensagem e o que quis nos dizer, e terá muita serventia, nos ajudará muito e talvez não acrescentemos nada mais, não precisa dizer mais nada. [6]  

   A morte de Pasolini toca profundamente Eduardo, o qual, ainda em 1975, lhe  dedica a poesia Pier Paolo, em que fala do pequeno monumento erguido no local do nefasto acontecimento, formado por dezoito pedras, as quais, tanto podem ser vistas como uma barreira ao apedrejamento a que a mídia estava submetendo o poeta por causa das circunstâncias de seu desaparecimento, [7] quanto podem simbolizar sua árdua luta para transformar em instrumento para defender as próprias ideias as “pedras” que lhe atiraram ao longo da vida. [8]
É o mesmo monumento focalizado no final do capítulo um de Caro diario (Caro diário, 1993), quando Nanni Moretti dá aos espectadores uma “aula” de cinema: um longo plano-sequência acompanha a moto do protagonista enquanto percorre a praia de Óstia, plano este interrompido por um corte que introduz o marco funerário. [9] Dessa forma, Moretti transforma em imagem as teorias cinematográficas desenvolvidas por Pasolini no ensaio “Cinema di poesia” (“Cinema de poesia”, 1965), segundo as quais, num filme, a vida se reproduz no plano-sequência, cujo fluxo contínuo de imagens é interrompido pelo corte, o que, porém, lhe dá significado, assim como a morte dá um sentido à trajetória humana. [10]

Pier Paolo

Non li toccate
quei diciotto sassi
che fanno aiuola
con a capo issata
la “spalliera” di Cristo.
I fiori, sì, quando saranno secchi,
quelli toglieteli,
ma la “spalliera”,
povera e sovrana,
e quei diciotto irregolari sassi,
messi a difesa
di una voce altissima,
non li togliete più!
Penserà il vento
a levigarli, per addolcirne
gli angoli pungenti;
penserà il sole
a renderli cocenti,
arroventati
come il suo pensiero;
cadrà la pioggia
e li farà lucenti,
come la luce
delle sue parole;
penserà la “spalliera”
a darci ancora
la fede e la speranza
in Cristo povero. [11]

Pier Paolo
Não toquem nelas
nas dezoito pedras
feito um canteiro,
à cabeceira, ergue-se
o “espaldar” de Cristo.
As flores, sim, ao ficarem secas,
podem tirá-las,
mas o “espaldar”,
pobre e soberano,
e as dezoito irregulares pedras,
lá, a defender
uma voz altíssima,
não os tirem mais!
O vento cuidará
de alisá-las, amaciando
os cantos pontiagudos;
o sol cuidará
de torná-las ardentes,
abrasantes
como seu pensamento;
cairá a chuva
e as deixará luzentes,
como a luz
de suas palavras;
o “espaldar” cuidará
de dar-nos ainda
a fé e a esperança
no Cristo pobre.
______________________________
[1] SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (org.). “Porno-Teo-Kolossal (1967-1975)” [Note e notizie sui testi]. In: PASOLINI, Pier Paolo. Per il cinema. Milano: Mondadori, 2001, p. 3230. 
[2] SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (org.). “Appendice a Porno-Teo-Kolossal” (1967-1975)” [Note e notizie sui testi]. In: PASOLINI, Pier Paolo. Per il cinema, cit., p. 3233.
[3] CF. FABRIS, Mariarosaria. “Escrito nas nuvens”. Tradução em Revista, Rio de Janeiro, ano 14, n. 1, 2013, p. 75. [recurso eletrônico].
[4] PASOLINI, Pier Paolo. “Porno-Teo-Kolossal”. In: Per il cinema, cit., p. 2751.
[5] Cf. FABRIS, Mariarosaria. “Pasolini, um Pasolini”. In: MIGLIORIN, Cezar et al. (org.). Anais de textos completos do XXI Encontro da Socine. São Paulo: Socine, 2018, p. 557-558 [recurso eletrônico].
[6] MARCHI, Marco.  “Quei  diciotto  sassi.   Eduardo   per   Pasolini”.   Disponível em <quotidiano.net/blog/marchi/eduardo-versi-per-pasolini-83.42945>. Acesso: 3 maio 2020.
[7] Cf. “Pier Paolo Pasolini”. In: Eduardo De Filippo – Un dialetto che parla al mondo”, fascículo n. 17 da coleção “Educare al teatro”. Fitainforma, Vicenza, ano XXVI, n. 2, jun. 2012, p. XI. Disponível em <www.fitaveneto.org/2011/images/stories/ fitoinforma_giugno_2012/fitoinforma_giugno_2012/pdf>. Acesso: 3 maio 2020.
[8] Cf. FABRIS, Mariarosaria. “Pier Paolo Pasolini e o teatro: uma introdução”. In: Anais do XXIV Encontro Estadual de História da Anpuh-SP. São Paulo: Anpuh, 2018, p. 12 [recurso eletrônico].
[9] No episódio, a estela funerária e o parque que surgiu ao redor parecem abandonados, mas foram recuperados pela LIPU (Lega Italiana Protezione Uccelli), entidade filantrópica de proteção aos pássaros. Cf. “Pier PaoloPasolini”, cit.
[10] Cf. FABRIS, Mariarosaria. “O cinema italiano contemporâneo”. In: BAPTISTA, Mauro; MASCARELLO, Fernando (org.). Cinema mundial contemporâneo. Campinas: Papirus, 2008, p. 98-99.
[11] DE FILIPPO, Eduardo. “Pier Paolo”. In: O’ penziero e altre poesie di Eduardo. Torino: Einaudi, 1985, p. 38-39.

como citar: FABRIS, Mariarosaria. “Eduardo e Pier Paolo: encontro, desencontro, reencontro”. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.6, jun. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209676