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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Aislan Camargo Maciera
Antonio Scurati
Resenha
em
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A partir de um romance documental, o escritor Antonio Scurati leva o leitor a reviver o período fascista italiano, e nos alerta que é necessário aprender com o passado.
Muitas coisas já foram ditas e escritas sobre o fascismo. Livros de história, biografias, ensaios de filosofia, sociologia e ciência política já se debruçaram sobre o período fascista italiano, destacando a figura de seu líder, a trajetória do movimento, sua transformação em partido político, a ascensão ao poder, o primado do totalitarismo e o papel na Segunda Guerra, ao lado da Alemanha nazista de Adolf Hitler. O vasto material bibliográfico sobre o tema, aliado à abundante documentação histórica, foi o ponto de partida para o mais recente livro do escritor italiano Antonio Scurati, M. O filho do século.
Nascido em Nápoles, Scurati é professor de literatura contemporânea, atuante no laboratório de escrita criativa, oralidade e retórica do Instituto Universitário de Línguas Modernas (IULM) de Milão, e colunista do jornal La Stampa. Com mais de uma dezena de textos publicados, entre ensaios e romances, o autor é um dos mais premiados escritores da literatura italiana contemporânea. Entre seus romances, merecem destaque Il sopravvissuto, vencedor do prêmio “Campiello” em 2005 e Il tempo migliore della nostra vita, vencedor do “Viareggio” em 2015. O autor foi indicado ao “Strega”, maior e mais prestigiosa premiação literária da Itália, em três oportunidades: nas duas primeiras, seus romances, Il bambino che sognava la fine del mondo e Il padre infedele, foram finalistas das edições de 2009 e 2014, respectivamente. A vitória veio, finalmente, em 2019, com M. O filho do século, colocando o autor no albo d’oro, a galeria de vencedores do prêmio, que conta com importantes nomes do cânone literário do Novecento, tais como Cesare Pavese, Alberto Moravia, Tomasi di Lampedusa, Natalia Ginzburg e Primo Levi.
Desde o lançamento original pela editora Bompiani, no segundo semestre de 2018, M. O filho do século atraiu o interesse do público além das fronteiras italianas e europeias. Scurati trazia ao leitor uma história que, na Itália, muitas vezes foi considerada proibida ou deixada de lado pela literatura. Falar sobre o período entre guerras e sobre o triunfo do fascismo era tarefa delegada a historiadores e cientistas sociais. Seu livro, porém, teve um alcance além daquele dos ensaios e edições monográficas sobre o ventennio fascista, atingindo um outro público, mais ligado à narrativa e ao romance.
A partir do sucesso na Itália, a obra teve contratos editoriais firmados para a tradução em mais de trinta países – o primeiro deles, o Brasil –, confirmando um interesse pela história do fascismo e de seu líder que, nos tempos atuais, parece ter se renovado. Segundo Scurati, o fascismo foi “o último grande produto de exportação italiano”, inspirando regimes ao longo da história após o final da Segunda Guerra e, no momento atual, os olhos parecem se voltar novamente àquele período, dadas as aproximações, feitas por parte de críticos e estudiosos, entre a agenda política daquele regime e os governos de extrema-direita que avançam atualmente em diversos países ao redor do mundo.
Lançada por aqui no final de 2019 pela editora Intrínseca, com tradução de Marcello Lino, e seguindo praticamente o mesmo projeto editorial da edição italiana, M. O filho do século logo ganhou destaque no mercado editorial brasileiro, repetindo o que ocorreu na Itália. O sucesso do livro – com mais de 400 mil cópias vendidas no mundo todo – chama a atenção: aos olhos de quem está atento ao mercado editorial, um suposto livro de história, normalmente, não ocuparia as primeiras posições entre os mais vendidos e aclamados, lugar reservado, na maioria das vezes, aos romances e aos livros de autoajuda. Sinal dos tempos?

Fatos e personagens deste romance documental não são fruto da imaginação do autor. Cada acontecimento, personagem, diálogo ou discurso aqui narrado é, ao contrário, historicamente documentado e/ou fidedignamente testemunhado por mais de uma fonte. Dito isso, também é verdade que a história é uma invenção à qual a realidade traz consigo seus próprios materiais. Todavia, não é nada arbitrária.
A definição de M. como um “romance documental” parece ser a ideal, sobretudo por que o conteúdo com o qual nos deparamos ao longo das quase 800 páginas que compõem o livro, não apresentam ao leitor um ensaio histórico, tampouco um debate acerca do próprio conceito de fascismo. Também não trazem uma simples biografia, seja do movimento, seja de seu líder. A intenção de Scurati não parece ser, em momento algum, a de dividir espaço ou debater com conceituados e renomados historiadores e estudiosos do tema.
Definitivamente, M. O filho do século não se propõe a isso. O livro é o primeiro volume de uma trilogia já anunciada, que já tem contrato para se transformar em série televisiva (ou de streaming, ainda não sabemos os detalhes). Os livros contarão a história do fascismo na Itália, desde a fundação do movimento até a queda do regime na Segunda Guerra. No primeiro volume, Scurati inicia a narrativa no dia 23 de março de 1919, na Piazza de San Sepolcro em Milão, data e local da fundação dos Fasci italiani di combattimento, e termina no dia 03 de janeiro de 1925, data na qual o então primeiro-ministro Mussolini profere um discurso no parlamento de Montecitório que marcaria a transição do regime para o totalitarismo e o autoritarismo.
Passando pela derrota acachapante nas primeiras eleições disputadas, em 1919, pela tentativa de reerguer o movimento, pela sua transformação em partido político e chegando à tomada do poder pelos fascistas, Scurati lança mão de uma narrativa muito diversa daquelas simplesmente pontuadas por datas e relatos de acontecimentos que encontramos nos livros de história. Por se tratar de um romance, M. apresenta um aparato linguístico diverso, que mescla o tom documental ao tom literário. No primeiro capítulo, por exemplo, que narra a fundação do movimento, o narrador, que nesse caso específico é Mussolini, descreve o cenário, destacando o grupo que fazia parte daquela reunião, cerca de cem pessoas, “todos homens sem importância alguma”: “A primeira reunião dos Grupos de Combate, alardeada por semanas pelo Il popolo d’Italia como um compromisso fatídico, foi marcada no Teatro dal Verme. Mas o auditório foi cancelado”. Logo a seguir, o líder reflete: “Por que devo falar a esses homens?! Por causa deles, os fatos superaram todas as teorias. É gente que toma a vida de assalto com um comando”. A dualidade dos tons é marca do estilo narrativo pelo qual opta o autor, e com o qual o leitor terá contato até o final do livro.
A forma como a história é contada – sempre em terceira pessoa, com exceção do primeiro e do último capítulo, que apresentam a narração a partir da perspectiva do próprio Mussolini – faz questão de ressaltar a inteligência e a habilidade política do duce, um ex socialista, filho de um ferreiro romanholo, agitador político e ex combatente na Primeira Guerra, que alcança o poder máximo construindo-o praticamente do zero. A perspectiva dada ao leitor é aquela, predominantemente, dos membros do movimento e das pessoas ligadas aos Fasci di combattimento. Dessa forma, um a um, os indivíduos que contribuíram para construir o fascismo e mudar para sempre a história da Itália são apresentados e têm a sua história, mesmo que brevemente, contada. Além de Benito Mussolini, personagem em torno do qual a narrativa gira em mais da metade dos capítulos, fazem parte do percurso escolhido pelo autor outras figuras fundamentais do ambiente que circundava o duce, tais como Giacomo Matteotti, deputado socialista; Amerigo Dùmini e Italo Balbo, líderes das esquadras fascistas; Leandro Arpinati, líder fascista de Bolonha; Margherita Sarfatti, amante de Mussolini e influente membro dos círculos artísticos de Milão; e os poetas Filippo Tommaso Marinetti e Gabriele D’Annunzio.

Outro grande escritor do início do século XX que contribuiu decisivamente para a expansão das ideias do fascismo foi o poeta e agitador cultural Filippo Tommaso Marinetti. Líder do Futurismo, um dos primeiros movimentos artísticos vanguardistas da Europa, Marinetti estava na reunião de fundação dos Fasci di combattimento em San Sepolcro, e logo aproximou a ideologia do movimento às expressões estéticas do Futurismo, que surgira em 1909 e já se difundira de forma significativa pelos ambientes artísticos da península. Entre 1919 e 1924, o líder futurista participou ativamente da construção do movimento, inclusive se candidatando a uma das cadeiras do parlamento nas eleições de 1919, mas obtendo votação inexpressiva. A ruptura inicial com o fascismo se deu em 1924 quando, no II Congresso dos Fasci di combattimento, foi anunciada a aproximação do movimento à monarquia e aos setores conservadores e burgueses da sociedade. Marinetti voltaria a se aproximar do fascismo quando o regime já se colocava como força autoritária, após 1925. A partir daí o Futurismo, mesmo sendo deixado em segundo plano pelo regime, fez o papel de braço artístico de divulgação dos ideais fascistas. Tanto D’Annunzio quanto Marinetti são peças importantes no tabuleiro político do ventennio fascista.

A narrativa de M. O filho do século gira em torno de Mussolini, mas é, ao mesmo tempo, a história do movimento e dos principais personagens que o compuseram. É a história da violência contra os inimigos, o “inimigo vermelho bolchevique”, as ligas proletárias e camponesas, os sindicatos e políticos de esquerda. É a história das divergências internas, superadas sempre com acertos e ajustes capazes de favorecer uma espécie de bem comum, mas um bem comum limitado aos integrantes do movimento. É a história da primeira e acachapante derrota eleitoral nas urnas e da posterior aliança com a burguesia liberal, com os conservadores, com os cristãos e com a monarquia, a fim de ascender ao poder. É, enfim, a história do fim da democracia, e do primeiro regime totalitário europeu, no qual o nazismo alemão teria também se inspirado.
A ideia de um romance sobre todas essas histórias parece ser um grande acerto do autor. Existem bibliotecas inteiras sobre o fascismo e o período fascista italiano, obras importantíssimas de vários historiadores, verdadeiras autoridades no assunto. Sem o trabalho desses estudiosos, provavelmente, o romance de Scurati jamais chegaria ao satisfatório resultado apresentado ao público. O mergulho nessas fontes resulta em uma narrativa que, sem tomar partido de forma explícita, atrai a atenção de um público diverso daquele dos ensaios de história, ciência política ou sociologia.
Entre seus curtos capítulos, Scurati insere a reprodução de documentos da época, ligados à história que acabou de ser narrada no capítulo anterior, e que são frutos da longa e criteriosa pesquisa historiográfica empreendida pelo autor. Textos de jornais e periódicos da época, bem como trechos de cartas em mensagens trocadas pelos personagens envolvidos, dão ao romance aquele caráter “documental” evocado pelo autor na advertência presente no início do volume.
O sucesso alcançado pelo livro é a confirmação de que determinados setores da sociedade civil enxergam a necessidade de se olhar para o passado, a fim de nele procurar lições. Dessa forma, dentro do contexto atual, no qual o populismo de extrema-direita e o revisionismo histórico avançam significativamente em diversas partes do globo, ressurge o debate acerca do chamado ventennio fascista italiano e do próprio fascismo, a partir das diversas interpretações que o termo alcançou desde o final do segundo conflito mundial.
Evidentemente, o fator determinante para o debate vem da aproximação entre esse populismo do século XXI e os fundamentos do fascismo, enquanto movimento e, posteriormente, partido e regime político. Nesse sentido, o caso da Itália é exemplar: no segundo semestre de 2018, momento em que o livro de Scurati foi publicado, a Itália vivia sob um governo de coalizão, formado a partir do resultado das eleições parlamentares de março daquele ano. O discurso populista reverberado através da campanha, somado à situação de crise econômica do país, levou à vitória o Movimento 5 Stelle – que se autointitula um movimento apolítico – e uma frente de “centro-direita”, formada pela Lega Nord, Forza Italia e Fratelli d’Italia que, por sua vez, lança mão de uma agenda da extrema-direita: ultranacionalismo, discurso xenófobo e de combate ostensivo à imigração, promessa de retomada do crescimento econômico e da prosperidade, atendendo ao anseio da classe média, prometendo a ela trazer de volta a “paz de um passado” não tão distante.
A agenda defendida pelo então vice primeiro-ministro Matteo Salvini, membro do senado eleito pela coalizão de direita, naquele contexto e até hoje, remonta um passado traumático italiano, marcado por ataques abertos a adversários políticos e uma aproximação muito perigosa ao autoritarismo. Assim sendo, torna-se inevitável a analogia entre os regimes populistas de extrema-direita – como aquele que se observou na Itália de Salvini, e que podemos observar, hoje, nos Estados Unidos de Donald Trump, na Hungria de Viktor Orban ou no Brasil de Jair Bolsonaro – e o fascismo.
É nesse contexto, que muitas obras que revisitam a história do fascismo, ou teorizam sobre aquele fenômeno, voltam à baila, exatamente como tentativa de compreensão e interpretação do momento atual. As teorias e a historiografia sobre o fascismo são numerosas e, muitas vezes, polêmicas entre si. O romance de Scurati, ao não expor nenhum tipo de teorização, nem de maneira implícita, propõe-se a um papel de revisitação da história através de um gênero reconhecidamente mais leve, apesar da história nele contida não o ser. A epígrafe de M. O filho do século traz uma frase de Pierpaolo Pasolini, um dos grandes nomes da literatura italiana do Novecento, antifascista: “Eu sou uma força do passado”. A frase de Pasolini, apresentada como está e neste contexto, dentre as várias interpretações que pode suscitar, leva o leitor a se lembrar de uma máxima, quando nos deparamos com o relato de eventos históricos decisivos e, por vezes, traumáticos: o passado é responsável por construir e explicar o presente. Daí vem a ação, cada vez mais recorrente, de regimes autoritários que tentam desconstruir, ressignificar ou simplesmente negar os fatos do passado.
Antonio Scurati já trabalha no segundo volume da trilogia, que deverá retratar o período central do governo fascista, até a segunda metade da década de 30: o título, M. O homem da providência, faz referência direta ao papel da igreja católica no fortalecimento do regime.
[2] https://www.corriere.it/cultura/18_ottobre_13/m-antonio-scurati-romanzo-che-ritocca-la-storia-1055c170-cf09-11e8-a416-b8065213a278.shtml (acesso em 03/06/2020).
[3] A respeito da invasão de Fiume pelos legionários de D’Annunzio e a Regência Italiana de Carnaro: https://www.raicultura.it/storia/articoli/2019/12/Limpresa-di-Fiume-d3372e4a-efca-49ab-b6dc-4ed0f93aec91.html e https://www.ilpost.it/2019/09/12/impresa-di-fiume-raccontata-da-antonio-scurati/
(acesso em 04/06/2020).
como citar: MACIERA, Aislan Camargo. “M. O filho do século: Mussolini e as origens do fascismo”. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.6, jun. 2020.Disponível em
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209669 |
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