La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

M. O filho do século: Mussolini e as origens do fascismo, por Aislan Camargo Maciera



A partir de um romance documental, o escritor Antonio Scurati leva o leitor a reviver o período fascista italiano, e nos alerta que é necessário aprender com o passado.




            Muitas coisas já foram ditas e escritas sobre o fascismo. Livros de história, biografias, ensaios de filosofia, sociologia e ciência política já se debruçaram sobre o período fascista italiano, destacando a figura de seu líder, a trajetória do movimento, sua transformação em partido político, a ascensão ao poder, o primado do totalitarismo e o papel na Segunda Guerra, ao lado da Alemanha nazista de Adolf Hitler. O vasto material bibliográfico sobre o tema, aliado à abundante documentação histórica, foi o ponto de partida para o mais recente livro do escritor italiano Antonio Scurati, M. O filho do século.
Nascido em Nápoles, Scurati é professor de literatura contemporânea, atuante no laboratório de escrita criativa, oralidade e retórica do Instituto Universitário de Línguas Modernas (IULM) de Milão, e colunista do jornal La Stampa. Com mais de uma dezena de textos publicados, entre ensaios e romances, o autor é um dos mais premiados escritores da literatura italiana contemporânea. Entre seus romances, merecem destaque Il sopravvissuto, vencedor do prêmio “Campiello” em 2005 e Il tempo migliore della nostra vita, vencedor do “Viareggio” em 2015. O autor foi indicado ao “Strega”, maior e mais prestigiosa premiação literária da Itália, em três oportunidades: nas duas primeiras, seus romances, Il bambino che sognava la fine del mondo e Il padre infedele, foram finalistas das edições de 2009 e 2014, respectivamente. A vitória veio, finalmente, em 2019, com M. O filho do século, colocando o autor no albo d’oro, a galeria de vencedores do prêmio, que conta com importantes nomes do cânone literário do Novecento, tais como Cesare Pavese, Alberto Moravia, Tomasi di Lampedusa, Natalia Ginzburg e Primo Levi.
Desde o lançamento original pela editora Bompiani, no segundo semestre de 2018, M. O filho do século atraiu o interesse do público além das fronteiras italianas e europeias. Scurati trazia ao leitor uma história que, na Itália, muitas vezes foi considerada proibida ou deixada de lado pela literatura. Falar sobre o período entre guerras e sobre o triunfo do fascismo era tarefa delegada a historiadores e cientistas sociais. Seu livro, porém, teve um alcance além daquele dos ensaios e edições monográficas sobre o ventennio fascista, atingindo um outro público, mais ligado à narrativa e ao romance.
A partir do sucesso na Itália, a obra teve contratos editoriais firmados para a tradução em mais de trinta países – o primeiro deles, o Brasil –, confirmando um interesse pela história do fascismo e de seu líder que, nos tempos atuais, parece ter se renovado. Segundo Scurati, o fascismo foi “o último grande produto de exportação italiano”, inspirando regimes ao longo da história após o final da Segunda Guerra e, no momento atual, os olhos parecem se voltar novamente àquele período, dadas as aproximações, feitas por parte de críticos e estudiosos, entre a agenda política daquele regime e os governos de extrema-direita que avançam atualmente em diversos países ao redor do mundo.
Lançada por aqui no final de 2019 pela editora Intrínseca, com tradução de Marcello Lino, e seguindo praticamente o mesmo projeto editorial da edição italiana, M. O filho do século logo ganhou destaque no mercado editorial brasileiro, repetindo o que ocorreu na Itália. O sucesso do livro – com mais de 400 mil cópias vendidas no mundo todo – chama a atenção: aos olhos de quem está atento ao mercado editorial, um suposto livro de história, normalmente, não ocuparia as primeiras posições entre os mais vendidos e aclamados, lugar reservado, na maioria das vezes, aos romances e aos livros de autoajuda. Sinal dos tempos?                                                                
Primeiramente, é necessário pontuar: M. O filho do século não é propriamente um livro de história sobre o fascismo ou sobre Benito Mussolini, tais quais aqueles escritos de forma extremamente competente por estudiosos como Sergio Luzzatto ou Emilio Gentile. É importante também ressaltar que as breves considerações aqui apresentadas não têm a intenção de formular um parecer técnico sobre o gênero ao qual o livro pertence, tampouco classificá-lo, a fim de determinar o lugar que deve ocupar nas prateleiras de livrarias e bibliotecas. A ideia é explicitar como Scurati, através de uma base documental consistente, consegue criar uma narrativa romanesca, na qual absolutamente nenhum fato relatado é fruto de invenção. Em mais de uma oportunidade, nas diversas entrevistas e declarações que deu sobre seu livro, o autor afirmou se tratar de um romance, gênero ficcional por excelência, no qual procurou dar forma às numerosíssimas informações retiradas de diversas fontes consultadas. Em artigo publicado no Corriere della sera (17 de outubro de 2018[1]), o autor diz que buscou “uma forma narrativa inovadora e respeitosa, que contasse a história de modo criterioso e popular” sendo capaz de expor aquele período “crucial” sem o excesso das “áridas enumerações de datas, lugares e nomes das aulas na escola” e dos livros de história. Apesar de alguns erros cometidos e incongruências em relação a datas e fatos (que, diga-se, não comprometem o resultado final), conforme apontou artigo do historiador Ernesto Galli della Loggia, no mesmo Corriere della sera de 13 de outubro de 2018[2], o livro de Scurati tem a pretensão de ser um romance que não apresenta absolutamente nenhum fato ficcional, assim como o autor destaca no texto que abre o volume, uma espécie de advertência ao leitor:
Fatos e personagens deste romance documental não são fruto da imaginação do autor. Cada acontecimento, personagem, diálogo ou discurso aqui narrado é, ao contrário, historicamente documentado e/ou fidedignamente testemunhado por mais de uma fonte. Dito isso, também é verdade que a história é uma invenção à qual a realidade traz consigo seus próprios materiais. Todavia, não é nada arbitrária.
A definição de M. como um “romance documental” parece ser a ideal, sobretudo por que o conteúdo com o qual nos deparamos ao longo das quase 800 páginas que compõem o livro, não apresentam ao leitor um ensaio histórico, tampouco um debate acerca do próprio conceito de fascismo. Também não trazem uma simples biografia, seja do movimento, seja de seu líder. A intenção de Scurati não parece ser, em momento algum, a de dividir espaço ou debater com conceituados e renomados historiadores e estudiosos do tema.
Definitivamente, M. O filho do século não se propõe a isso. O livro é o primeiro volume de uma trilogia já anunciada, que já tem contrato para se transformar em série televisiva (ou de streaming, ainda não sabemos os detalhes). Os livros contarão a história do fascismo na Itália, desde a fundação do movimento até a queda do regime na Segunda Guerra. No primeiro volume, Scurati inicia a narrativa no dia 23 de março de 1919, na Piazza de San Sepolcro em Milão, data e local da fundação dos Fasci italiani di combattimento, e termina no dia 03 de janeiro de 1925, data na qual o então primeiro-ministro Mussolini profere um discurso no parlamento de Montecitório que marcaria a transição do regime para o totalitarismo e o autoritarismo.
Passando pela derrota acachapante nas primeiras eleições disputadas, em 1919, pela tentativa de reerguer o movimento, pela sua transformação em partido político e chegando à tomada do poder pelos fascistas, Scurati lança mão de uma narrativa muito diversa daquelas simplesmente pontuadas por datas e relatos de acontecimentos que encontramos nos livros de história. Por se tratar de um romance, M. apresenta um aparato linguístico diverso, que mescla o tom documental ao tom literário. No primeiro capítulo, por exemplo, que narra a fundação do movimento, o narrador, que nesse caso específico é Mussolini, descreve o cenário, destacando o grupo que fazia parte daquela reunião, cerca de cem pessoas, “todos homens sem importância alguma”: “A primeira reunião dos Grupos de Combate, alardeada por semanas pelo Il popolo d’Italia como um compromisso fatídico, foi marcada no Teatro dal Verme. Mas o auditório foi cancelado”. Logo a seguir, o líder reflete: “Por que devo falar a esses homens?! Por causa deles, os fatos superaram todas as teorias. É gente que toma a vida de assalto com um comando”. A dualidade dos tons é marca do estilo narrativo pelo qual opta o autor, e com o qual o leitor terá contato até o final do livro.
A forma como a história é contada – sempre em terceira pessoa, com exceção do primeiro e do último capítulo, que apresentam a narração a partir da perspectiva do próprio Mussolini – faz questão de ressaltar a inteligência e a habilidade política do duce, um ex socialista, filho de um ferreiro romanholo, agitador político e ex combatente na Primeira Guerra, que alcança o poder máximo construindo-o praticamente do zero. A perspectiva dada ao leitor é aquela, predominantemente, dos membros do movimento e das pessoas ligadas aos Fasci di combattimento. Dessa forma, um a um, os indivíduos que contribuíram para construir o fascismo e mudar para sempre a história da Itália são apresentados e têm a sua história, mesmo que brevemente, contada. Além de Benito Mussolini, personagem em torno do qual a narrativa gira em mais da metade dos capítulos, fazem parte do percurso escolhido pelo autor outras figuras fundamentais do ambiente que circundava o duce, tais como Giacomo Matteotti, deputado socialista; Amerigo Dùmini e Italo Balbo, líderes das esquadras fascistas; Leandro Arpinati, líder fascista de Bolonha; Margherita Sarfatti, amante de Mussolini e influente membro dos círculos artísticos de Milão; e os poetas Filippo Tommaso Marinetti e Gabriele D’Annunzio.

Scurati faz questão de, ao máximo possível, trazer um panorama geral daquele período e, apesar do destaque dado às forças políticas, o autor também pontua a participação de figuras importantes na história da cultura e da arte italiana na construção do espectro social do período entre guerras. Destaca a grande influência do poeta Gabriele D’Annunzio na formação do ideário, inclusive simbólico do movimento, narrando o episódio de Fiume[3], seu projeto nacionalista, expansionista e irredentista. D’Annunzio foi inspiração, sobretudo, entre seus legionários, que depois do fracasso em Fiume fizeram parte das fileiras fascistas. A ideia de “vitória mutilada” propagada aos quatro ventos pelo vate, contribuiu muito para o levante daqueles que imaginavam uma Itália forte, ativa, nova e imponente. Depois da ascensão do fascismo ao poder, o poeta não foi um apoiador incondicional do regime. A história contada por Scurati apresenta um D’Annunzio que se sentia quase traído, dando a ideia de que os fascistas se apropriaram de muitos dos seus projetos expansionistas e de fortalecimento político para a Itália. A marcha sobre Roma teria sido um deles.

Outro grande escritor do início do século XX que contribuiu decisivamente para a expansão das ideias do fascismo foi o poeta e agitador cultural Filippo Tommaso Marinetti. Líder do Futurismo, um dos primeiros movimentos artísticos vanguardistas da Europa, Marinetti estava na reunião de fundação dos Fasci di combattimento em San Sepolcro, e logo aproximou a ideologia do movimento às expressões estéticas do Futurismo, que surgira em 1909 e já se difundira de forma significativa pelos ambientes artísticos da península. Entre 1919 e 1924, o líder futurista participou ativamente da construção do movimento, inclusive se candidatando a uma das cadeiras do parlamento nas eleições de 1919, mas obtendo votação inexpressiva. A ruptura inicial com o fascismo se deu em 1924 quando, no II Congresso dos Fasci di combattimento, foi anunciada a aproximação do movimento à monarquia e aos setores conservadores e burgueses da sociedade. Marinetti voltaria a se aproximar do fascismo quando o regime já se colocava como força autoritária, após 1925. A partir daí o Futurismo, mesmo sendo deixado em segundo plano pelo regime, fez o papel de braço artístico de divulgação dos ideais fascistas. Tanto D’Annunzio quanto Marinetti são peças importantes no tabuleiro político do ventennio fascista.                        

O caso de Marinetti, talvez, seja o mais emblemático. Defendendo uma perspectiva de renovação e de destruição do passado através de uma novíssima expressão artística, abominava os elementos da tradição, e propunha um presente e um futuro pautados pela mecanização, pela velocidade, pela juventude e pela violência. Em suma, um futuro pautado pela modernidade, sem nenhuma relação com a velha Itália e, para ele, o movimento político capaz de atingir tal objetivo era o fascismo. Quando Mussolini começa a acenar uma aproximação com setores conservadores da sociedade e com a monarquia, Marinetti abandona as fileiras fascistas. Acontece que, quando volta a flertar com o partido, agora no poder, passa por cima de todas as referências à defesa da tradição que o fascismo pregava; ignora a exaltação do passado romano, ressignificando através da arte futurista tal passado. A contradição é uma das marcas registradas do fascismo e dos fascistas.
A narrativa de M. O filho do século gira em torno de Mussolini, mas é, ao mesmo tempo, a história do movimento e dos principais personagens que o compuseram. É a história da violência contra os inimigos, o “inimigo vermelho bolchevique”, as ligas proletárias e camponesas, os sindicatos e políticos de esquerda. É a história das divergências internas, superadas sempre com acertos e ajustes capazes de favorecer uma espécie de bem comum, mas um bem comum limitado aos integrantes do movimento. É a história da primeira e acachapante derrota eleitoral nas urnas e da posterior aliança com a burguesia liberal, com os conservadores, com os cristãos e com a monarquia, a fim de ascender ao poder. É, enfim, a história do fim da democracia, e do primeiro regime totalitário europeu, no qual o nazismo alemão teria também se inspirado.
A ideia de um romance sobre todas essas histórias parece ser um grande acerto do autor. Existem bibliotecas inteiras sobre o fascismo e o período fascista italiano, obras importantíssimas de vários historiadores, verdadeiras autoridades no assunto. Sem o trabalho desses estudiosos, provavelmente, o romance de Scurati jamais chegaria ao satisfatório resultado apresentado ao público. O mergulho nessas fontes resulta em uma narrativa que, sem tomar partido de forma explícita, atrai a atenção de um público diverso daquele dos ensaios de história, ciência política ou sociologia.
Entre seus curtos capítulos, Scurati insere a reprodução de documentos da época, ligados à história que acabou de ser narrada no capítulo anterior, e que são frutos da longa e criteriosa pesquisa historiográfica empreendida pelo autor. Textos de jornais e periódicos da época, bem como trechos de cartas em mensagens trocadas pelos personagens envolvidos, dão ao romance aquele caráter “documental” evocado pelo autor na advertência presente no início do volume.
O sucesso alcançado pelo livro é a confirmação de que determinados setores da sociedade civil enxergam a necessidade de se olhar para o passado, a fim de nele procurar lições. Dessa forma, dentro do contexto atual, no qual o populismo de extrema-direita e o revisionismo histórico avançam significativamente em diversas partes do globo, ressurge o debate acerca do chamado ventennio fascista italiano e do próprio fascismo, a partir das diversas interpretações que o termo alcançou desde o final do segundo conflito mundial.
Evidentemente, o fator determinante para o debate vem da aproximação entre esse populismo do século XXI e os fundamentos do fascismo, enquanto movimento e, posteriormente, partido e regime político. Nesse sentido, o caso da Itália é exemplar: no segundo semestre de 2018, momento em que o livro de Scurati foi publicado, a Itália vivia sob um governo de coalizão, formado a partir do resultado das eleições parlamentares de março daquele ano. O discurso populista reverberado através da campanha, somado à situação de crise econômica do país, levou à vitória o Movimento 5 Stelle – que se autointitula um movimento apolítico – e uma frente de “centro-direita”, formada pela Lega Nord, Forza Italia e Fratelli d’Italia que, por sua vez, lança mão de uma agenda da extrema-direita: ultranacionalismo, discurso xenófobo e de combate ostensivo à imigração, promessa de retomada do crescimento econômico e da prosperidade, atendendo ao anseio da classe média, prometendo a ela trazer de volta a “paz de um passado” não tão distante.
A agenda defendida pelo então vice primeiro-ministro Matteo Salvini, membro do senado eleito pela coalizão de direita, naquele contexto e até hoje, remonta um passado traumático italiano, marcado por ataques abertos a adversários políticos e uma aproximação muito perigosa ao autoritarismo. Assim sendo, torna-se inevitável a analogia entre os regimes populistas de extrema-direita – como aquele que se observou na Itália de Salvini, e que podemos observar, hoje, nos Estados Unidos de Donald Trump, na Hungria de Viktor Orban ou no Brasil de Jair Bolsonaro – e o fascismo.
É nesse contexto, que muitas obras que revisitam a história do fascismo, ou teorizam sobre aquele fenômeno, voltam à baila, exatamente como tentativa de compreensão e interpretação do momento atual. As teorias e a historiografia sobre o fascismo são numerosas e, muitas vezes, polêmicas entre si. O romance de Scurati, ao não expor nenhum tipo de teorização, nem de maneira implícita, propõe-se a um papel de revisitação da história através de um gênero reconhecidamente mais leve, apesar da história nele contida não o ser. A epígrafe de M. O filho do século traz uma frase de Pierpaolo Pasolini, um dos grandes nomes da literatura italiana do Novecento, antifascista: “Eu sou uma força do passado”. A frase de Pasolini, apresentada como está e neste contexto, dentre as várias interpretações que pode suscitar, leva o leitor a se lembrar de uma máxima, quando nos deparamos com o relato de eventos históricos decisivos e, por vezes, traumáticos: o passado é responsável por construir e explicar o presente. Daí vem a ação, cada vez mais recorrente, de regimes autoritários que tentam desconstruir, ressignificar ou simplesmente negar os fatos do passado.
            Antonio Scurati já trabalha no segundo volume da trilogia, que deverá retratar o período central do governo fascista, até a segunda metade da década de 30: o título, M. O homem da providência, faz referência direta ao papel da igreja católica no fortalecimento do regime.





(acesso em 04/06/2020).


como citar: MACIERA, Aislan Camargo. “M. O filho do século: Mussolini e as origens do fascismo”. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.6, jun. 2020.Disponível em

https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209669