La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Uma leitura de “A toalha" de Giovanni Pascoli em tempos de Covid-19, por Patricia Peterle




A pandemia de covid-19 vem colocando toda a sociedade diante de uma série de questões que já estavam latentes e que, agora, se apresentam desnudadas com toda sua violência. Para além de cinismos, egoísmos, produtivismos, diferentes pré-conceitos – para não falar das consequências dramáticas causadas pelo necessário isolamento na economia –, um aspecto vem chamando a atenção: a morte, ou melhor, a relação com a morte. 
As cenas dos caminhões do exército em Bergamo, no final de março, as das covas da ilha de Hart Island em Nova Iorque, um pouco depois, e as das sepulturas em cemitérios espalhados por todo o país – covas e mais covas escavadas na terra vermelha – são elementos que evidenciam o traço violento da nossa relação com outro. Os mortos do Mediterrâneo, que ocupavam antes as manchetes dos jornais, principalmente na Europa, parecem ter sido esquecidos no meio da crise do Covid-19. Ninguém fala mais dessa questão, que não cessou com o vírus; aliás, o Covid-19 pode ainda torná-la mais devastadora. Talvez porque essas mortes estejam mais distantes, nesse momento em que os que acreditavam estarem “salvos”, agora, experimentam de perto a precariedade e a fragilidade da vida. A contagem dos mortos, portanto, poderia ser ainda muito maior, como adverte Maria Grazia Calandrone, no vídeo do Projeto Krisis-Tempos de Covid-19. Versos dessa mesma poeta não podem não ser lembrados junto aos de Eugenio De Signoribus, Fabio Pusterla e Valerio Magrelli, para citar somente alguns nomes.

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A emergência, a urgência, o medo – termo com o qual também deveremos acertar as contas mais tarde – colocaram a nu, nesses últimos meses, como todo esse complexo processo de reação e vivência da perda vem sendo removido da nossa cultura. Uma série de pontos poderiam ser levantados para se pensar essa remoção: a perda do elemento arcaico, certa vergonha, predomínio do que é “útil” e “gerador” de algo.
De pessoa à coisa, para retomar o título de um livro de Roberto Esposito de poucos anos atrás. Ou talvez, pior do que coisa, uma vez que a coisa a podemos manter: e, agora, se trata de se “livrar” dela urgentemente. Um corpo insólito com o qual não sabemos lidar. Outra imagem recente: a dos cadáveres em cima das macas num hospital de Belém (mas é preciso chegar até Giovanni Pascoli).
No Brasil, uma recente frase chamou bastante a atenção: “E dai? Lamento. Quer que eu faça o quê?”. Uma frase comum, sim, é verdade. Porém seu contexto não tratava de um vaso que se espatifou no chão, de uma criança que esbarrou em algo e o pai pronta e instintivamente reage, ou de algum outro corriqueiro contexto. Essa frase tem como complemento as muitas mortes pelo coronavírus (e, junto com elas, o descaso). Nessa fala, de uma violência lacerante, fica registrada de forma exponencial uma relação com a morte, que é, sobretudo, de remoção. O morto não serve, não produz, não é útil. Contudo, existir na história também significa dar um horizonte formal ao pathos, para lembrar o antropólogo italiano Ernesto De Martino, objetivá-lo numa espécie de coerência cultural, e isso não está distante de certo ethos. De um ethos da presença, que atravessa o mundo dos homens e seu operar, perpassando por diferentes campos, da economia à ciência, à poesia, gerando variedades culturais.
Nesse mesmo período, foi relatado pelos jornais que um rapaz em Belém, antes de sepultar o caixão com avó, acometida pelo covid-19, não se conteve e violou a regra de não abrir o caixão. No cemitério, foi grande sua surpresa ao se dar conta de que o corpo que estava enterrando não era o de sua avó. O final já sabemos.
Os rituais atuam justamente na separação dessa imagem. Se no tempo dos romanos, havia a imago, a saber, a máscara mortuária dos antepassados, nas sociedades modernas esses objetos foram substituídos por outros, como a fotografia. Há uma espécie de vida orgânica póstuma, dada pelo fora. Como aponta ainda De Martino, a perda da pessoa cara é a experiência daquilo que passa sem e contra nós, diante desse sofrimento se é chamado peremptoriamente a ser, de algum modo, “procuradores” de morte daqueles que se foram, gesto que alivia a dor, por isso todos choram de um modo ou de outro.
Em um texto que se abre com um fragmento de uma das Operetas Morais de Giacomo Leopardi, Antonella Anedda enfatiza que para aquele que se foi, bastaria uma palavra “não difícil, mas talvez ainda desconhecida” para fazê-lo voltar. O pensamento sobre os mortos é um traço que diferencia o humano dos animais. O que fazer com os mortos? é uma pergunta que muitos filósofos, pensadores e poetas se fizeram ao longo de nossa história cultural. A arte e, especialmente, a poesia são um meio – um gesto – que, mesmo transformando, consegue acenar e, de algum modo, manter relações. É, se quisermos, uma relação a partir da própria impossibilidade de relação que é dada pelo acontecimento da morte. Nesse sentido, a palavra mais do que ressuscitar, tenta atrasar a força avassaladora do tempo, que empurra rumo ao esquecimento. As palavras em suas combinações trazem ecos longínquos, tesselas de um mosaico que por sua natureza será sempre incompleto, o tranquilo desespero kierkegaardiano. O emudecimento é necessário, da mesma forma que a linguagem também o é, se tornando um espaço de exposição da relação, de suas singularidades. A falta se torna voz, talvez balbuciante e trêmula, pois expõe nesse processo seus próprios limites.
Sem dúvida alguma o poema anunciado no título, “A toalha”, foi escrito em um outro momento, num contexto também outro, recuperando inclusive aspectos da cultura popular e camponesa. Mas, retomá-lo nesse momento de crise, parece-me necessário para pensarmos nas nossas relações em geral e, sobretudo, aquela com a morte que a pandemia de Covid-19 não cansa de nos lembrar. 
Quem está um pouco mais familiarizado com a poética de Giovanni Pascoli, sabe que a presença dos mortos é perturbadora e também central. Basta pensar em Myricae (1891), livro que será acrescido até a redação definitiva de 1900, e em o “Giorno dei morti” [Dia dos mortos], longo poema de mais de 200 versos, colocado em posição inusual: antes mesmo do título. Nesse poema, Pascoli imagina que todos os mortos da família, começando pelo pai, no espaço do cemitério formam uma nova unidade familiar. Esse elemento perturbador também está presente em “A toalha”, logo nos primeiros versos desse poema:

A toalha

Diziam para ela: – Menina! 
nunca deixes colocada,
desde a noite até a matina, 
mas a mantenha guardada,
a toalha branca, ao findar,
sem demora, do jantar!
Atenta, chegam os mortos!
os tristes, pálidos mortos!

Entram, arfantes, calados.
Como nunca fadigando!
E detêm-se ali sentados
de noite em torno do branco.
Esperam lá que amanheça,
por entre as mãos a cabeça,
sem que ali se escute nada,
sob a lanterna apagada –

Já está grande a menina;
e mantém a casa agora:
a cozinha em sua rotina,
deixa tudo como outrora.
Pensa em tudo, hábil e presta 
mas a mesa posta resta.
Deixa que venham os mortos,
os bons, os míseros mortos.

Ó! a escura escura noite,
de vento, d’água, de neve, 
deixa que entrem pela noite,
com o seu anélito leve,
que da mesa ao redor  
repousem até o alvor,        
buscando coisa pregressa
por entre as mãos a cabeça.

Desde a noite até a matina,
buscando fatos em vão, 
cabisbaixos, em sua sina,
sobre as migalhas de pão, 
com esforço relembrando,
engolem gotas de pranto;
Ó! não se lembram dos mortos,
os caros, seus caros mortos!

– É pão, sim... pão é chamado,
que partimos em harmonia:
lembrais?... É o quadriculado:
te lembras?... muitos havia.
E estas?... Estas são duas,
como as vossas e as tuas,
duas nossas gotas de pranto
escorridas relembrando!

Tradução Patricia Peterle

Todo o poema parte de uma crença popular da região da Romagna, que se deve manter distância dos mortos, os espíritos dos mortos. Para que eles não retornem, é preciso tirar a mesa, recolher tudo depois do jantar, pois eles são atraídos pelas migalhas de pão, pela sobra da comida. É essa crença o estopim do poema “A toalha”. Escrito provavelmente entre o verão e o outono de 1902, faz parte do livro Canti di Castelvecchio [Cantos de Castelvecchio] (1903-1905)]. O ritmo é muito marcado, inclusive pela própria estrutura fixa e pelo sistema de rimas. São seis estrofes de oito versos cada, todas em redondilha maior (octossílabos, na métrica italiana) todos rimados seguindo o esquema ababccdd – interessante notar que algumas rimas se repetem. Por exemplo, a rima que encerra as estrofes ímpares termina sempre em “mortos” (“morti”). 
Por trás desse tom de canzonetta, poder-se-ia inclusive dizer com tom de “allegretto”, há uma refinada trama entrelaçada de octossílabos jâmbicos, trocaicos e datilicos que confirma a destreza desse grande poeta, que é sem dúvida uma referência para as gerações posteriores, de Eugenio Montale a Giorgio Caproni, a Enrico Testa. Esse refinamento dado pela combinação das rimas e pelos versos, mesmo que com uma medida diferente da do hendecassílabo, central na lírica italiana, tem seu contraponto na cultura popular já mencionada, que é evocada. Às portas do século XX, Pascoli já aponta para um aspecto de toda a poesia que virá depois: essa espécie de contaminação, de impureza do poético que está presente em diferentes níveis, inclusive na própria linguagem.
No poema, além dos mortos, está presente uma personagem retratada em dois diferentes momentos de sua vida. É uma menina, talvez a irmã “Mariù”, que acaba por seguir às avessas o que lhe é dito quando é ainda criança. As seis oitavas que compõem o poema, como veremos agora, podem ser divididas em três partes, cada uma composta por duas estrofes.
Briciole, Monica Ferrando
Na primeira delas, essa personagem feminina é ainda uma criança. Os versos captam um momento de fala – um diálogo – quando lhe é dito para se lembrar de tirar a mesa, inclusive a toalha, que deve ser guardada, ou seja, posta num lugar fechado, “protegido”. Pois, se isso não for feito, se a toalha estiver na mesa, eles, os mortos, podem chegar. Essa advertência e o pedido para que fique sempre atenta retornam nos versos finais dessa primeira estrofe, por meio dos adjetivos que caracterizam os mortos: “tristes” e “pálidos”. Pascoli, sendo um especialista da cultura clássica, evoca aqui a ideia dos mortos sem luz, sem dinamismo, mas veremos que na continuação dos versos esses adjetivos vão sendo colocados de lado e dão lugar a outros. A segunda oitava descreve a provável cena, caso a toalha permaneça na mesa. A toalha é, portanto, um sinal, uma porta para a entrada ou não, enfim, sua exposição se configura como um convite para que os mortos entrem e fiquem ali a noite inteira.
A segunda parte do poema, formada pelas terceira e quarta oitavas, inicia com uma mudança, o tempo passou e a menina, agora, está grande, cuida dos afazeres da casa. É dela, portanto, a responsabilidade de tirar ou não a toalha. Como diz o verso 5 da terceira oitava, ela pensa em tudo, mas não pensa em desfazer a mesa. De fato, ela não acolhe os conselhos recebidos do passado, uma vez que faz tudo menos tirar a mesa. A mesa que ficou do jantar é, justamente, o convite tácito necessário para que os mortos entrem no ambiente doméstico e retornem àqueles espaços que, provavelmente, já haviam ocupados no passado. De “tristes” e “pálidos”, adjetivos iniciais, passa-se no último verso dessa estrofe para “bons” e “míseros”. Ou seja, há aqui uma inversão nessa relação com os mortos, que passam a ser acolhidos e, sobretudo, convidados a sentarem à mesa (espaço por excelência de partilha, de convívio e de comunhão). A atmosfera da escuridão da noite abre a oitava seguinte, e com ela quem ocupa a cena não é mais a figura feminina, mas sim os mortos que chegam com vento, com chuva ou com neve. A repetição anafórica do verbo “deixar” (lasciare) é importante na construção da engrenagem desse poema cheio de repetições milimetricamente calculadas. Aqui, esse retorno do verbo indica a aproximação, a chegada dos mortos que se confirma nos versos seguintes, quando estão ao redor da mesa e da toalha branca. Eles ali, depois de terem chegado com um “anélito leve” (uma tentativa de fisicidade), já sentados, se esforçam para recuperar alguma lembrança. A imagem da cabeça por entre as mãos reforça essa busca por coisas distantes e expressa a dificuldade e a impossibilidade de memória. 
Mariù Pascoli com o irmão Giovanni Pascoli
A terceira parte de “A toalha" de Pascoli – para apontar outra repetição – retoma alguns pontos colocados até aqui: o terceiro verso da primeira estrofe “desde a noite até a matina”, o esforço para lembrar com a imagem da cabeça baixa. Uma espécie de antecâmara para a imagem dos restos do jantar: as migalhas de pão. O fim do jantar é um momento central, mas, até esse momento, ele era uma hipótese, uma possibilidade. Com a mesa não desfeita do jantar, pela menina já adulta, os mortos entram e tomam seu lugar à mesa. A dificuldade da recordação é ainda enfatizada pela presença das lágrimas, do pranto amargo. Essa proximidade com os mortos é marcada, ainda, pelo verso final que os vem caracterizando com adjetivos, sempre nas oitavas impares (1,3,5). Há um crescendo há uma aproximação que é feita pouco a pouco, à medida que a jovem vai acumulando experiências, criando relações, estabelecendo contato com os outros, inclusive passando pela perda de pessoas caras e próximas. De “tristes” e “pálidos”, depois “bons” e “míseros”, agora os “mortos” são “caros”, ou melhor dizendo, “seus caros”, lhe pertencem. Mais uma figura retorica ligada à repetição, neste caso, a anadiplose que reforça a ideia do termo. A oitava final, como a primeira, traz um diálogo, não mais entre os vivos, o gesto de deixar a mesa posta possibilitou o encontro entre vivos e mortos. Ela, agora, na escuridão da noite tem uma possibilidade de reencontrá-los. O diálogo se dá a partir de um elemento mais do que simbólico, as migalhas de pão. A menina dirigindo-se a eles diz é “Pão”, pão que já partilhamos, comungamos. Um momento, sem dúvida, cheio de liturgia. As tentativas do lembrar não cessam e seguem com o quadriculado da toalha, um objeto comum, mas carregado de histórias que por ali passaram. Os versos finais trazem novamente a imagem do pranto, das lágrimas, agora tanto de um lado e quanto do outro.
A convivialidade presente pelo espaço doméstico, pelo ambiente da cozinha, pela própria mesa é um tecido muito rico não somente nesse poema, mas em alguns outros de Pascoli. Ao redor da toalha branca (outra simbologia) são trazidas experiências, situações de vida, valores humanos e religiosos. A hospitalidade é, aqui, central. Tessitura que também se faz presente nos gestos, no mosaico que esses versos vão, aos poucos, compondo por meio, no final, das palavras trocadas de tudo o que poderia e pode estar no espaço das reticências, fundamental no diálogo entre vivos e mortos. O momento convivial é também, nesse sentido, o momento do luto sem pretensas de consolo.
A relevância de se ler esse poema, hoje, para além de toda a importância de Pascoli para a literatura italiana no século XX e XXI, é que ele traz um elemento fundamental que é o do contato, o da relação. A pandemia de Covid-19, para além das consequências mais imediatas, nos coloca diante de questões que fizeram e fazem parte de nossa história humana e cultura (não-humana e da barbárie): as relações entre cultura e natureza; vida e não-vida; humano e não-humano. A pandemia vem inscrevendo o corpo vivo cada vez mais perto da morte, não podemos ignorá-la. O cuidado de si vai de pari passo com o cuidado em relação ao próximo. Negar um diagnóstico que é mundial, que perpassou por diferentes latitudes, atingindo ricos e pobres, é negar a possibilidade de vida. Desprezar a morte, não respeitar esse momento de recolhimento, de silêncio, é desrespeitar à vida e a possibilidade de uma relação com a morte. À desorganização na qual vivemos hoje, em meio a negacionismos genocidas, para lembrar as palavras de Eduardo Viveiros de Castro, que cada vez mais cria divisões, é preciso resistir. Um texto como esse de Pascoli, então, ganha nova vida e nos abri caminhos. “Tem uma morte / cronológica, uma que é econômica, / uma outra que não existe porque dela não se fala” são versos do últimos Montale. É preciso falar, pensar juntos, mesmos com as diferenças e diversidades, pois é isso que também faz uma comunidade, que cuida de seus sujeitos. Não é possível tratar toda uma sociedade com um “E daí”. Isso não se pode aceitar.


como citar: PETERLE, Patricia. Uma leitura de “A toalha_ de Giovanni Pascoli em tempos de Covid-19. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.6, jun. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209780



Esta postagem é a décima do projeto Valerio Magrelli - Millennium Poetry: Viagem sentimental na poesia italiana, iniciativa promovida pelo Istituto Italiano di Cultura di São Paulo durante esta Pandemia de Covid-19.
“Cruzaremos oito séculos de poesia italiana seguindo um percurso autoral. Exclusivamente para o público do IICSP, graças à colaboração da Editora Emons, o poeta Valerio Magrelli apresenta e ilustra em áudio trechos da própria particularíssima antologia de poesia italiana. A proposta é enriquecida pelas traduções e comentários (literatura-italiana.blogspot.com) em português dos professores Patricia Peterle e Andrea Santurbano da UFSC e Lucia Wataghin da USP.”

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