La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

A piedade do signo: variações sobre o tema da “perda”, por Henrique Burigo


Le condition humaine - René Magritte
Le condition humaine - René Magritte
National Gallery of Art - Washington DC



Às vezes se encontram na língua certas expressões cuja forma cristalizada parece curiosamente desmentir o sentido a elas comumente dado. Seria o caso, por exemplo, da locução “achados e perdidos”: não seria melhor – mais “lógico”, digamos – escrever “perdidos e achados”, em que a conjunção “e” teria um valor adversativo, como a lembrar “perdido sim, mas (afortunadamente) achado”? No entanto, em “achados e perdidos” é como se a inversão apontasse para uma cadeia inexorável de eventos, uma circularidade aflitiva em que coisas são achadas, e perdidas, e achadas, para logo serem perdidas novamente, ad infinitum.
Brincadeiras à parte – se é que de brincadeira realmente se trata –, fica aqui anotada uma fixação pela perda, como aquilo que vem por último. E essa obsessão está longe de ser fortuita. A frustração não é só a de se ver enfim com as mãos vazias, pois mesmo diante de um resto, se este não nos diz nada, o vazio persiste. É o que acontece com artefatos desencavados, fragmentos de estátuas, quando nos falta o contexto ou a chave: eles se obstinam mudos. Coisas inertes, como inscrições antigas, em caracteres obscuros (mesmo que essa obscuridade se deva apenas à circunstância de terem esboroado); tanto que o adjetivo que se usa então é “morto”: línguas mortas. “Nós falamos com a voz que não temos, que jamais foi escrita. E a linguagem é sempre letra morta”, já foi dito. De todo modo, a ideia de que a escrita – e até mesmo a linguagem, em geral – perdeu o contato com o que era “vivo” é bastante difundida, bastando lembrar como Derrida escreveu um livro seminal em torno disso.
A estranheza do achado arqueológico, irremediavelmente destacado das condições que lhe deram vida, se repete na relação que tentamos restabelecer com aquele animal que supostamente fomos, e há muito deixamos de ser. Nossa linguagem, descolada e sem raiz, não tem mais aquela aderência que faz do grasnado, do latido, do zumbido, em suma, da “voz” do animal, mais uma palpitação do corpo. Em um pequeno ensaio com dedicatória a Giorgio Caproni, intitulado “La fine del pensiero”, o filósofo Giorgio Agamben fala dessa voz perdida e obsessivamente remoída pelo pensamento que se reflete na linguagem. Um dos termos que ele usa então é rovello, para indicar essa suspensão em que o pensamento vive tentando apanhar não-sei-quê, mas sempre chega muito cedo ou muito tarde.
Se considerarmos legítimo lançar mão do “animal” como uma figura-limite, um ponto de fuga para alinhar nossa perspectiva, podemos dizer: cada animal tem sua voz, o homem tem – só – a linguagem. O animal estaria aí como que a nos lembrar um estado edênico de completude. No lado de lá da fronteira do Éden, em sua inocência, o animal vive uma expansão de seu corpo na voz. Este seria outro modo de dizer que a voz do animal é aderente ao seu corpo. Ou ainda, que a condição do animal é sem hiato, em continuidade ininterrupta: sua naturalidade não conhece suspensão.
Se o animal não conhece solução de continuidade em sua naturalidade, o homem, por sua vez, perdeu a naturalidade. Tendo seus fios cortados, ele conhece a distância. Assim, chora e remói a perda: da voz, do passado, da chave, da origem. O animal vive a origem? Tem, de algum modo, uma experiência da origem? Não, justamente, pois o que ele vive é a vibração de seu corpo natural na voz: na continuidade, tudo é origem. (O que equivaleria a dizer: não há origem, nem distância.) O animal não vive em suspenso, como a ponderar uma decisão – ou paralisado na indecisão. A sua reação instintiva aos estímulos parece mesmo pré-programada, automática, sem atrasos. Não deve decidir o fio de sua voz. O seu canto é uma emissão sem quebras. Uma emissão na qual o animal se aprofunda fora de si, ao ponto de não haver um “fora” propriamente dito. Talvez fosse melhor falar aqui de um contínuo desdobramento. Na voz emitida como um frêmito, não há perda.
Agamben não se limita, no entanto, a apontar o rovello (a obsessão excruciante) do pensamento. A certa altura ele sugere que este não tem de lamentar perda alguma, que a perda da voz não lhe diz respeito, afinal. E já seria hora, portanto, de o pensamento parar de ruminar a “voz” que nunca teve. Cessar de pensar e repensar, oscilando como um pêndulo que se aproxima e afasta de um lugar vazio – naquele movimento que Agamben reconhece como uma sina do pensamento: a sua “piedade”. Ele diz textualmente: “Il linguaggio ha luogo nel non-luogo della voce. Ciò significa che il pensiero ha da pensare nulla della voce. Questa è la sua pietà.”[1] O que possa ser essa “piedade” [pietà] fica em aberto – ela mesma por ser ponderada, pensada.
Talvez se queira ver nessa piedade do pensamento até mesmo uma ressonância sacrificial, pois o pensamento tem a pensar “nada” da voz. Ou melhor, o “nada” de uma voz que é tida como algo que se teve (em um estado edênico, natural, original), mas que se acabou perdendo. Vale lembrar ainda que o termo Pietà é usado na arte figurativa para se referir às representações da Madona com o Filho, já morto, nos braços. E este é um momento ou etapa no itinerário da “Paixão” muito “humano”. De fato, o sacrifício é visto aqui na perspectiva humana: o corpo morto, vivificado pelo seu significado divino. Podemos dizer também: o significante morto, ainda por ser insuflado.
Ao admitirmos que a perda da voz não vale a pena de ser lamentada, nós nos encontramos diante de pelo menos duas possibilidades. A primeira é a de que a linguagem humana nunca tenha tido essa voz, logo, não houve perda alguma. A segunda seria a de que a linguagem teve algo como a voz que atribuímos ao animal, mas a perda não deve ser lamentada. Dir-se-ia mesmo que, de certo modo, ela ainda tem a sua voz, como sugerem estas palavras que concluem “La fine del pensiero”: “Dunque il linguaggio è la nostra voce, il nostro linguaggio. Come tu ora parli, questo è l’etica.”[2]
É curioso que, por fim liberados da ideia da perda, encontremos uma ética. Na verdade, um pouco antes, nesse mesmo texto, Agamben sugerira que a ética é o modo como cada um resolve a pendência da voz na linguagem:

Il pensiero è la pendenza della voce nel linguaggio. (...) La cerca della voce nel linguaggio è il pensiero. (...) Che il linguaggio sorprenda e anticipi sempre la voce, che la pendenza della voce nel linguaggio non abbia mai fine: questo è il problema della filosofia. (Come ciascuno risolva questa pendenza è l’etica).[3]

A piedade do pensamento precisa, então, evoluir – por um reconhecimento, pela solução (ou dissolução) de um problema que se poderia chamar, com toda propriedade, de “vácuo” – em uma ética.
A referência a uma ética, aqui, ou mesmo à Ética (com inicial maiúscula), permite que abordemos a questão por outro ângulo. Lançando mão de um recurso (retórico) caracteristicamente utilizado em Agamben, podemos voltar a atenção para a etimologia da palavra ética. Descobrimos então que ela deriva do grego êthos (ἦθος), que tem como acepções: “maneira de ser, caráter, índole, temperamento, disposições naturais de uma pessoa ou animal segundo a sua natureza”. Além disso, êthos também quer dizer “morada” e, no caso de animais, “covil habitual”. Ou seja, novamente entramos em conexão com a “animalidade”.
Essa “toca”, esse “nicho”, está ligado ao modo de ser que é natural ao animal. E se considerarmos que o animal tem uma voz que é mais um frêmito, um tremor do corpo, essa “naturalidade”, essa impressão de continuidade com o elemento natural é reforçada. No homem, essa continuidade estaria rompida, pois se abriu um hiato no signo. Assim, enquanto o animal “aceita”, o homem “escolhe” (de uma multiplicidade liberada, à sua disposição). É verdade que a “disposição natural” do animal parece ser mais uma pré-disposição. Na reação instintiva do animal diante dos estímulos, em sua interpretação automática, sem escolha, é como se o animal tomasse os sinais sempre do mesmo jeito. Ou melhor, como se visse sempre os mesmos signos, projetando o que se apresenta sempre da mesma maneira: esta sombra no chão, uma águia (ou coisa que o valha). Mas talvez não seja exatamente assim, pois o que nos surpreende em certos estudos sobre o comportamento animal – envolvendo macacos bonobos, por exemplo – é justamente a capacidade que demonstram no desenvolvimento de ferramentas. O que indica que eles deixam de ver em certos itens seu aspecto mais imediato, apenas. Veem, então, algo diferente em certas apresentações.[4] Por mais “pobre de mundo” que seja, o animal experiencia o signo, a expansão do signo. Mas se trata de outra modalidade (ou variante) do signo, e aí a reflexão sobre a vivência animal pode realmente nos trazer esclarecimento. A saber, outro enfoque e outro aspecto na economia do signo.[5]
Ao tomar emprestada de Heidegger a expressão “pobre de mundo”, que ele reserva precisamente ao animal, a minha intenção não seria a de enfatizar uma discrepância, e sim a de aproximar a “toca” e a nossa “morada” habitual. A ética é a “disposição natural” do animal homem. O lugar “habitual” que não apenas ocupa, mas que abre a possibilidade de lugares, pois dizer “aqui” projeta, no mesmo lance, os “lás” que lhe correspondem. O modo como o animal é está ligado a suas peculiaridades, idiossincrasias. Seu comportamento em face das circunstâncias. Sua resposta ao que o solicita: todo um jogo de atrações e repulsões. Mas também no sentido da possibilidade deste face a face, destes encontros em interações, que correspondem a um “nicho” comportamental. O “modo de ser” se traduz – ou se desdobra –, então, como um “modo” do Ser. Uma expressão do Ser, mas tendo em conta a atualização de algo – ou melhor, de uma esfera – que se apresenta adequadamente ao pensamento apenas como potencialidade. Ou, para acentuar a indefinição que a caracteriza como infinita produtividade – phýsis, diriam os Gregos –, como virtualidade. Virtualmente “tudo”.
Retornando à noção da eticidade, se ouvirmos mais atentamente a acepção antiga do êthos como “lugar habitual” (do animal) – o qual eu tento reinterpretar como “nicho semiótico” (numa perspectiva que, indo além da antropossemiose, inclui o animal na semiose) –, podemos ver como a relação com a perda assinala menos um estágio anterior à ética – plenamente amadurecida pela liberação ou dissolução de uma perda que, de fato, nunca houve –, e estaria mais a indicar um movimento na relação com o signo. Eu falo de um posicionamento ao longo de uma linha que vai, digamos, de uma aceitação do que “se perde” na distância ao polo oposto de uma lamentação pela perda da origem. A aceitação da distância, de um lado, o lamento e a tentativa de eliminação da distância, de outro, seriam duas atitudes diversas e complementares diante do que se apresenta: do resto, do vestígio, do fenômeno. E mais: pois experimenta, naquilo que se apresenta, o que obstinadamente falta.
Talvez seja correto que a “piedade” deva evoluir em uma ética. Mas somente se com “piedade” ainda ficamos a matutar uma “perda sacrificial” que precisa ser suprida. Assim, a “piedade” que tento tematizar corresponderia a uma relação mais “magnânima” com o significante: resultando em uma produtividade abundante no signo. A distância no signo não significa o desligamento, mas a abertura que anima todo signo “funcionante” – isto é, todo significante que é reconhecido como tal. No signo, a distância é respiro – anima. E esse movimento de abertura, em que se expande um espaço percorrível, recebe muitas vezes o nome de “mundo”. Assim como o animal está aninhado no fluxo natural, nós estamos em sintonia com o que nos “aparece”, pois o aparecer já é signo expandido em um “mundo” – ou em mundos parciais cuja articulação não é pacífica. (E isso se deve ao caráter projetivo do signo – e, em certo sentido, “imaginário”.)
A ética, então, é um lidar com as distâncias. A distância que marca a ausência, mas que abre também uma presença. Em “La fine del pensiero” a piedade do pensamento era ainda a sua “cruz”. Um estágio anterior à maturidade ética que resolveu a pendência (ou a pendenga) do pensamento que remoía uma “perda”. Mas a própria piedade tem, historicamente, um forte teor ético ela mesma. Pietas, em latim – antes mesmo de adquirir posteriormente (no período imperial) o sentido de “pena” –, traduzia o sentimento de devoção e respeito – em relação aos deuses, mas também aos homens.
O termo correspondente na Grécia antiga é εὐσέβεια (eusébia, isto é, piedade [lat. pietas]), e é interessante notar que esta palavra, embora

(...) frequentemente usada como um equivalente da palavra “religião”, tem mais a ver com relações e comportamentos adequados tanto entre homens como entre os deuses, vale dizer, o conhecer o próprio lugar e, consequentemente, saber como se comportar de maneira apropriada nas várias situações.[6]

No contexto da pólis, a eusébia tem a ver com a religiosidade, uma vez que é a atitude apropriada para com os deuses, na observação dos ritos prescritos, das cerimônias propiciatórias de todo tipo. Mais amplamente, contudo, a piedade diria respeito ao lugar ocupado (“habitual” porque conveniente, próprio, apropriado, condizente, proporcionado” à expansão do indivíduo na pólis – e no cosmos). “Comedido”, digamos, em oposição à húbris como “o que passa da medida”.
No que concerne ao signo, i.e., ao posicionamento de quem se vê diante de um significante, há certamente um lugar a ser ocupado, mas é aquele que já se ocupa desde sempre. Se há atraso, trata-se de um hiato produtivo: a projeção em que se estende um signo sempre vivo (pois esta seria a definição do signo como abertura de sentidos, no significante sempre pleno de sentidos – mesmo que não saibamos cabalmente quais).
A ordem das coisas, a medida, em grego, também se diz lógos. O que se encontra desse lógos na “piedade” da linguagem, ou, como eu creio oportuno dizer, em uma piedade do signo mesmo? De certo modo, a piedade como aceitação. Mas, em vez de uma aceitação submissa, de uma ascese da parcimônia, a aceitação da proliferação, assim como do esboroamento das inscrições, sob a ação do tempo. O tempo é então visto, não meramente em seu efeito diluidor no devir, mas como produtor de vestígios, como aquele que deixa indícios. Esta seria uma imagem poeticamente sóbria – uma forma de “piedade”, não da húbris que almeja um signo avassaladoramente prescrito –  daquilo que reside no signo, como seu cerne, seu movimento mais característico.
A chave aqui então seria a ideia de “comedido na expansão”. Isto é, proporcionado ou dimensionado à máxima expansão. Isso não corresponde a uma limitação do que pode ser expandido. Significa, em vez disso, afrouxar os sentidos previamente anexados ao significante: liberar o significante. Deixar que ele produza tudo o que ele pode; e, como ele não está ligado definitivamente a nenhum sistema – a nenhuma “economia” –, isso significa que ele é o lugar da rotação das economias, da emergência do imprevisto, i.e., do verdadeiramente novo (para nós, o “além-nós” a cada instante).[7] Essa seria, então, a cifra de uma nova “piedade”: da piedade em face do signo.
Tematizou-se inicialmente o limiar do animal. Mas podemos ver o arcaico de maneira análoga, como uma espécie de processo de depuração identitária, que nos define num contraste com o pré-histórico. O arcaico serve, também ele, como ponto de fuga, no sentido mesmo de que “foge” infinitamente, deixando-nos um resíduo de solidez “presente”, o qual nos restitui como “modernos” ou “contemporâneos”. Em uma palavra (de fato, cheia de sentido): como “atuais”. Se a “perda” do animal em nós envolvia um desenraizamento do corpo, a percepção do “antigo” envolve a ideia de uma perda do contato com “originalidades”. Assim como o animal está presente (a si mesmo), o antepassado esteve presente na “vivência” – ou, em certas tradições, na proximidade de um fogo ritualístico. Ouvimos ressoar as lamentações: “Ah, o animal é mais natural, mais inocente, mais imediato, mais ‘bruto’, mais genuíno. Ah, o antepassado é que viveu a experiência autêntica, mais próxima à raiz...” De um lado, a perda de uma “inocência edênica”. De outro, a perda de algo que, apesar de nos determinar, perdeu seu calor, sua energia, seu vigor.
Nossa relação com o arcaico, com o ante-passado,[8] é de desenraizamento, de “perplexidade” diante do estranho e não acessível, salvo mediante um laborioso (e por vezes desencorajador) exercício hermenêutico. A hermenêutica, então, seria uma escavação penosa, um esforço de sistematização, na aplicação de um método que se quereria exaustivo, dependendo apenas do poder de processamento disponível e do rigor das grades categoriais utilizadas. Mas também pode ser acompanhada, em certos momentos talvez mais lúcidos, da constatação de que o intérprete deve ir além de seus próprios horizontes, soltar as amarras, aventurar-se e, eventualmente, perder-se. À “perda” do passado, ou da “origem”, juntar-se-ia então a “perda de si”, como uma ameaça plausível, ou mesmo um “risco ocupacional”.
Um dos aspectos mais difíceis, se não o mais intratável, da relação entre o arcaico e o moderno (ou contemporâneo) está ligado precisamente à questão da transmissão e de tudo que tal noção envolve. Por exemplo, a possibilidade de efetuar, isto é, de dar corpo a um vestígio estável no real; no limite, vem à baila a consistência daquilo mesmo que queremos fixar ou captar com o termo “real”. A transmissão levanta assim a questão da codificação: das regras para a interpretação “correta” (i.e., “preferida” ou preferencial). A estela, o obelisco, a lápide são tentativas de ancoragem no caudal do tempo. Daí, certa tradição: a detenção da chave, a “chave” passada de mão em mão.
Quando a chave, porém, se perde, como se reencontrar no mundo? Considerá-lo inóspito, cerrado à compreensão, ou como algo afeiçoável e, ao mesmo tempo, selvagemente produtivo, generosamente prolífico de sentidos? O tema da transmissão, da tradição – e, ligado a ela, o da perda, visto que a cada geração, dispomos de menos, pois empalidece a memória do arcaico, do original – reaparece, mais recentemente, no ensaio agambeniano “Il fuoco e il racconto” (que dá título a uma coletânea publicada em 2014 [pela editora Nottetempo]). Nele Agamben cita uma historieta da tradição mística judaica contando como, ao longo das gerações, se perdeu a memória do fogo ritual, do lugar em que ele se acendia e no qual as fórmulas ganhavam a sua eficácia, pela proximidade com o divino. Ainda assim, na necessidade de uma iluminação que o oriente nas decisões diante de um problema difícil, de uma ameaça à comunidade, e dispondo de cada vez menos contato com o fogo ritual, cada rabino, em seu tempo particular, surpreendentemente afirma uma suficiência: “o que eu tenho deve bastar”.
Essa relação com o fogo, segundo Agamben, caracterizaria o romance (ou a literatura em geral): relação sem a qual ele deixaria mesmo de ser o que é. Aparentemente, persistiria em Agamben uma valorização do sagrado. Mas eu acredito que ele jamais perca de vista essa dinâmica (esse afastamento que é o sentido, irredutível a uma origem sem pulsação, fora dos tempos), e isso impede que ele seja “teológico” em um sentido retrógrado (de uma volta às origens, por exemplo). Eu diria que aquilo que nós podemos recolher, nessa nova reflexão sobre a perda (do fogo, do lugar, do rito), seria algo que se pode chamar também de “piedade”.
O místico judaico compensa a ausência do fogo com um vigor (talvez também uma firmeza em face da escassez) que o impede de ver o ordinário como insignificante. Não só restitui o “fogo” ao corriqueiro, ao “ordinário”, ao “vulgar”, mas restitui ao próprio fogo seu caráter de signo. O que a tradição mística ensina, ao último rabino, é a suficiência; a cada geração a dependência do signo místico diminui, e é possível contentar-se com menos: isto é, com o que, no signo, é essencial – e bastante para restituir a ele (a qualquer manifestação, de fato) seu brilho. Enfim, se o relato do fogo é, em uma medida essencial, “suficiente”, é porque ele revela o fogo mesmo como signo, isto é, como manifestação.
O herdeiro de uma tradição, ou melhor, o receptor de algo que passou ciosamente de mão em mão tem – o que todos nós temos, portanto –, na ausência do fogo, do lugar perdido, da fórmula esquecida, é o relato. Ou seja, o relato não pode não ser a tradição, em um sentido muito amplo e inclusivo (que não é o da segregação que tradições geralmente implicam): pois a tradição e o signo exprimem a condição (que nos é comum) de pertencer ao tempo. O que a “suficiência” do relato de um fogo ausente, de um lugar perdido, de uma fórmula esquecida nos sugere é: a manifestação como o brilho da cotidianidade. O que talvez nos possa colocar em cheio na posição de perceber que o signo, menos que a circunstância de uma perda, é a sempre renovada ocasião para o achado.


[1] AGAMBEN, Giorgio. “La fine del pensiero”, in Il linguaggio e la morte. Un seminario sul luogo della negatività. Torino: Einaudi, 1982. p. 139.
[2] Idem.
[3] Idem, p. 137-8.
[4] Podemos retomar, nessa ótica, o que Deleuze aponta, quando fala da tecnicidade relativa ao braço ou à mão, com o conceito de “desterritorialização”. Isto é, interpretando-a como a possibilidade de não ver sempre o mesmo signo, de projetar algo que se apresenta em um novo horizonte. O que parece transformar, ao mesmo tempo, o próprio modo de apresentação. E, dado que territórios também se “apresentam”, essa desterritorialização aqui mencionada – assim como o movimento complementar de territorialização – não está no mesmo plano dos territórios. Sendo mais a possibilidade mesma de que se dê algo como um território.
[5] A propósito de economia, a postura diante do signo também exprime certas tendências ou índoles. E nós podemos polarizar estas atitudes como expressões, de um lado, de uma tendência a “reter”; e, de outro, de uma disposição para “dissipar”. Uma atitude que “poupa” – para gozar mais tarde, no futuro. Outra que goza agora, que valoriza o manifesto (não o valor de troca em uma economia estabelecida, em um sistema de valores, definido quiçá como...).
[6] Cf. TOUNA, Vaia. Fabrications of the Greek Past: Religion, Tradition, and the Making of Modern Identities. Leiden-Boston: Brill, 2017, p. 62-3.
[7] A “piedade” envolve de certo modo um “não exigir” — mas se trata evidentemente de um “não querer” que aposta na abundância — na mesma “cornucópia” ou exuberância que é tematizada de certa maneira por Bataille no conceito de “dispêndio”. A piedade, nesse sentido, é um “não poupar”. Seria antes a atitude de quem diz: “Eu não vou trocar o signo, ou melhor, não vou descontar o signo (ou, para ser mais preciso, o significante) como um cheque, recebendo em troca seu pleno ‘significado’”. Eu vou, então, apostar numa “economia” que está apta a subverter a “economia” (a distribuição de valores) vigente. Talvez dando ao termo “economia” o seu significado vibrante (dos fluxos), ao invés daquele que representa a escravização de quem é apanhado na rede (da necessidade do ganho como da necessidade do débito).
[8] O antecessor, precursor, o que veio ou “passou antes” – e, provavelmente, deixou “algo” para trás, nem que, este “algo”, sejamos nós.


como citar: BURIGO, Henrique. “A piedade do signo: variações sobre o tema da “perda””. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.7, jul. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209580