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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Giorgio Agamben
Henrique Burigo
em
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Le condition humaine - René Magritte
National Gallery of Art - Washington DC
Às
vezes se encontram na língua certas expressões cuja forma cristalizada parece
curiosamente desmentir o sentido a elas comumente dado. Seria o caso, por
exemplo, da locução “achados e perdidos”: não seria melhor – mais “lógico”,
digamos – escrever “perdidos e achados”, em que a conjunção “e” teria um
valor adversativo, como a lembrar “perdido sim, mas (afortunadamente)
achado”? No entanto, em “achados e perdidos” é como se a inversão apontasse
para uma cadeia inexorável de eventos, uma circularidade aflitiva em que coisas
são achadas, e perdidas, e achadas, para logo serem perdidas novamente, ad
infinitum.
Brincadeiras
à parte – se é que de brincadeira realmente se trata –, fica aqui anotada uma
fixação pela perda, como aquilo que vem por último. E essa obsessão está
longe de ser fortuita. A frustração não é só a de se ver enfim com as mãos
vazias, pois mesmo diante de um resto, se este não nos diz nada, o vazio
persiste. É o que acontece com artefatos desencavados, fragmentos de estátuas,
quando nos falta o contexto ou a chave: eles se obstinam mudos. Coisas inertes,
como inscrições antigas, em caracteres obscuros (mesmo que essa obscuridade se
deva apenas à circunstância de terem esboroado); tanto que o adjetivo que se
usa então é “morto”: línguas mortas. “Nós falamos com a voz que não
temos, que jamais foi escrita. E a linguagem é sempre letra morta”, já
foi dito. De todo modo, a ideia de que a escrita – e até mesmo a linguagem, em
geral – perdeu o contato com o que era “vivo” é bastante difundida, bastando
lembrar como Derrida escreveu um livro seminal em torno disso.
A
estranheza do achado arqueológico, irremediavelmente destacado das condições
que lhe deram vida, se repete na relação que tentamos restabelecer com aquele
animal que supostamente fomos, e há muito deixamos de ser. Nossa linguagem,
descolada e sem raiz, não tem mais aquela aderência que faz do grasnado, do
latido, do zumbido, em suma, da “voz” do animal, mais uma palpitação do corpo.
Em um pequeno ensaio com dedicatória a Giorgio Caproni, intitulado “La fine del
pensiero”, o filósofo Giorgio Agamben fala dessa voz perdida e obsessivamente
remoída pelo pensamento que se reflete na linguagem. Um dos termos que ele usa
então é rovello, para indicar essa suspensão em que o pensamento vive
tentando apanhar não-sei-quê, mas sempre chega muito cedo ou muito
tarde.
Se
considerarmos legítimo lançar mão do “animal” como uma figura-limite, um
ponto de fuga para alinhar nossa perspectiva, podemos dizer: cada animal tem
sua voz, o homem tem – só – a linguagem. O animal estaria aí como que a nos lembrar
um estado edênico de completude. No lado de lá da fronteira do Éden, em sua
inocência, o animal vive uma expansão de seu corpo na voz. Este seria
outro modo de dizer que a voz do animal é aderente ao seu corpo. Ou
ainda, que a condição do animal é sem hiato, em continuidade ininterrupta: sua
naturalidade não conhece suspensão.
Se
o animal não conhece solução de continuidade em sua naturalidade, o homem, por
sua vez, perdeu a naturalidade. Tendo seus fios cortados, ele conhece a distância.
Assim, chora e remói a perda: da voz, do passado, da chave, da origem. O
animal vive a origem? Tem, de algum modo, uma experiência da origem? Não,
justamente, pois o que ele vive é a vibração de seu corpo natural na voz: na
continuidade, tudo é origem. (O que equivaleria a dizer: não há
origem, nem distância.) O animal não vive em suspenso, como a
ponderar uma decisão – ou paralisado na indecisão. A sua reação
instintiva aos estímulos parece mesmo pré-programada, automática, sem
atrasos. Não deve decidir o fio de sua voz. O seu canto é uma
emissão sem quebras. Uma emissão na qual o animal se aprofunda fora de si, ao
ponto de não haver um “fora” propriamente dito. Talvez fosse melhor falar aqui
de um contínuo desdobramento. Na voz emitida como um frêmito, não há perda.
Agamben
não se limita, no entanto, a apontar o rovello (a obsessão excruciante) do
pensamento. A certa altura ele sugere que este não tem de lamentar perda
alguma, que a perda da voz não lhe diz respeito, afinal. E já seria
hora, portanto, de o pensamento parar de ruminar a “voz” que nunca teve. Cessar
de pensar e repensar, oscilando como um pêndulo que se aproxima e afasta de um
lugar vazio – naquele movimento que Agamben reconhece como uma sina do pensamento:
a sua “piedade”. Ele diz textualmente: “Il linguaggio ha luogo nel
non-luogo della voce. Ciò significa che il pensiero ha da pensare nulla della
voce. Questa è la sua
pietà.”[1] O que possa ser essa “piedade” [pietà]
fica em aberto – ela mesma por ser ponderada, pensada.
Talvez
se queira ver nessa piedade do pensamento até mesmo uma ressonância
sacrificial, pois o pensamento tem a pensar “nada” da voz. Ou melhor, o “nada”
de uma voz que é tida como algo que se teve (em um estado edênico,
natural, original), mas que se acabou perdendo. Vale lembrar ainda que o
termo Pietà é usado na arte figurativa para se referir às representações
da Madona com o Filho, já morto, nos braços. E este é um momento ou etapa no
itinerário da “Paixão” muito “humano”. De fato, o sacrifício é visto aqui na
perspectiva humana: o corpo morto, vivificado pelo seu significado divino.
Podemos dizer também: o significante morto, ainda por ser insuflado.
Ao
admitirmos que a perda da voz não vale a pena de ser lamentada, nós nos
encontramos diante de pelo menos duas possibilidades. A primeira é a de que a
linguagem humana nunca tenha tido essa voz, logo, não houve perda
alguma. A segunda seria a de que a linguagem teve algo como a voz que
atribuímos ao animal, mas a perda não deve ser lamentada. Dir-se-ia
mesmo que, de certo modo, ela ainda tem a sua voz, como sugerem estas
palavras que concluem “La fine del pensiero”: “Dunque il linguaggio è la nostra
voce, il nostro linguaggio. Come tu ora parli, questo è l’etica.”[2]
É
curioso que, por fim liberados da ideia da perda, encontremos uma ética.
Na verdade, um pouco antes, nesse mesmo texto, Agamben sugerira que a ética é
o modo como cada um resolve a pendência da voz na linguagem:
Il pensiero è la pendenza della voce nel linguaggio. (...) La cerca della voce nel linguaggio è il pensiero. (...) Che il linguaggio sorprenda e anticipi sempre la voce, che la pendenza della voce nel linguaggio non abbia mai fine: questo è il problema della filosofia. (Come ciascuno risolva questa pendenza è l’etica).[3]
A
piedade do pensamento precisa, então, evoluir – por um reconhecimento, pela solução
(ou dissolução) de um problema que se poderia chamar, com toda
propriedade, de “vácuo” – em uma ética.
A
referência a uma ética, aqui, ou mesmo à Ética (com inicial
maiúscula), permite que abordemos a questão por outro ângulo. Lançando mão de
um recurso (retórico) caracteristicamente utilizado em Agamben, podemos voltar
a atenção para a etimologia da palavra ética. Descobrimos então que ela
deriva do grego êthos (ἦθος), que tem como acepções: “maneira de ser,
caráter, índole, temperamento, disposições naturais de uma pessoa ou animal
segundo a sua natureza”. Além disso, êthos também quer dizer “morada” e,
no caso de animais, “covil habitual”. Ou seja, novamente entramos em conexão
com a “animalidade”.
Essa
“toca”, esse “nicho”, está ligado ao modo de ser que é natural ao
animal. E se considerarmos que o animal tem uma voz que é mais um frêmito, um
tremor do corpo, essa “naturalidade”, essa impressão de continuidade com o
elemento natural é reforçada. No homem, essa continuidade estaria rompida, pois
se abriu um hiato no signo. Assim, enquanto o animal “aceita”, o homem
“escolhe” (de uma multiplicidade liberada, à sua disposição). É verdade
que a “disposição natural” do animal parece ser mais uma pré-disposição.
Na reação instintiva do animal diante dos estímulos, em sua interpretação
automática, sem escolha, é como se o animal tomasse os sinais sempre do mesmo
jeito. Ou melhor, como se visse sempre os mesmos signos, projetando o
que se apresenta sempre da mesma maneira: esta sombra no chão, uma águia
(ou coisa que o valha). Mas talvez não seja exatamente assim, pois o que
nos surpreende em certos estudos sobre o comportamento animal – envolvendo
macacos bonobos, por exemplo – é justamente a capacidade que demonstram no
desenvolvimento de ferramentas. O que indica que eles deixam de ver em
certos itens seu aspecto mais imediato, apenas. Veem, então, algo diferente em
certas apresentações.[4] Por mais “pobre de mundo” que seja, o
animal experiencia o signo, a expansão do signo. Mas se trata de outra
modalidade (ou variante) do signo, e aí a reflexão sobre a vivência animal
pode realmente nos trazer esclarecimento. A saber, outro enfoque e outro
aspecto na economia do signo.[5]
Ao
tomar emprestada de Heidegger a expressão “pobre de mundo”, que ele reserva
precisamente ao animal, a minha intenção não seria a de enfatizar uma
discrepância, e sim a de aproximar a “toca” e a nossa “morada” habitual. A ética
é a “disposição natural” do animal homem. O lugar “habitual” que não apenas
ocupa, mas que abre a possibilidade de lugares, pois dizer “aqui”
projeta, no mesmo lance, os “lás” que lhe correspondem. O modo como o animal é
está ligado a suas peculiaridades, idiossincrasias. Seu comportamento em
face das circunstâncias. Sua resposta ao que o solicita: todo um jogo de
atrações e repulsões. Mas também no sentido da possibilidade deste face a
face, destes encontros em interações, que correspondem a um “nicho”
comportamental. O “modo de ser” se traduz – ou se desdobra –, então,
como um “modo” do Ser. Uma expressão do Ser, mas tendo em conta a
atualização de algo – ou melhor, de uma esfera – que se apresenta adequadamente
ao pensamento apenas como potencialidade. Ou, para acentuar a
indefinição que a caracteriza como infinita produtividade – phýsis,
diriam os Gregos –, como virtualidade. Virtualmente “tudo”.
Retornando
à noção da eticidade, se ouvirmos mais atentamente a acepção antiga do êthos
como “lugar habitual” (do animal) – o qual eu tento reinterpretar como
“nicho semiótico” (numa perspectiva que, indo além da antropossemiose, inclui o
animal na semiose) –, podemos ver como a relação com a perda assinala
menos um estágio anterior à ética – plenamente amadurecida pela
liberação ou dissolução de uma perda que, de fato, nunca houve –, e estaria
mais a indicar um movimento na relação com o signo. Eu falo de um posicionamento
ao longo de uma linha que vai, digamos, de uma aceitação do que “se perde” na
distância ao polo oposto de uma lamentação pela perda da origem. A
aceitação da distância, de um lado, o lamento e a tentativa de eliminação da
distância, de outro, seriam duas atitudes diversas e complementares diante do
que se apresenta: do resto, do vestígio, do fenômeno. E mais: pois
experimenta, naquilo que se apresenta, o que obstinadamente falta.
Talvez
seja correto que a “piedade” deva evoluir em uma ética. Mas somente se
com “piedade” ainda ficamos a matutar uma “perda sacrificial” que precisa ser suprida.
Assim, a “piedade” que tento tematizar corresponderia a uma relação mais “magnânima”
com o significante: resultando em uma produtividade abundante no signo.
A distância no signo não significa o desligamento, mas a abertura que anima
todo signo “funcionante” – isto é, todo significante que é reconhecido
como tal. No signo, a distância é respiro – anima. E esse movimento de abertura, em que se expande um espaço
percorrível, recebe muitas vezes o nome de “mundo”. Assim como o animal está
aninhado no fluxo natural, nós estamos em sintonia com o que nos “aparece”,
pois o aparecer já é signo expandido em um “mundo” – ou em mundos parciais cuja
articulação não é pacífica. (E isso se deve ao caráter projetivo do signo – e,
em certo sentido, “imaginário”.)
A
ética, então, é um lidar com as distâncias. A distância que marca a
ausência, mas que abre também uma presença. Em “La fine del pensiero” a piedade
do pensamento era ainda a sua “cruz”. Um estágio anterior à maturidade
ética que resolveu a pendência (ou a pendenga) do pensamento que remoía
uma “perda”. Mas a própria piedade tem, historicamente, um forte teor
ético ela mesma. Pietas, em latim – antes mesmo de adquirir
posteriormente (no período imperial) o sentido de “pena” –, traduzia o
sentimento de devoção e respeito – em relação aos deuses, mas também aos
homens.
O
termo correspondente na Grécia antiga é εὐσέβεια (eusébia,
isto é, piedade [lat. pietas]),
e é interessante notar que esta palavra, embora
(...) frequentemente usada como um equivalente da palavra “religião”, tem mais a ver com relações e comportamentos adequados tanto entre homens como entre os deuses, vale dizer, o conhecer o próprio lugar e, consequentemente, saber como se comportar de maneira apropriada nas várias situações.[6]
No
contexto da pólis, a eusébia tem a ver com a religiosidade, uma
vez que é a atitude apropriada para com os deuses, na observação dos ritos
prescritos, das cerimônias propiciatórias de todo tipo. Mais amplamente, contudo,
a piedade diria respeito ao lugar ocupado (“habitual” porque “conveniente,
próprio, apropriado, condizente, proporcionado” à expansão do indivíduo
na pólis – e no cosmos). “Comedido”, digamos, em oposição à húbris
como “o que passa da medida”.
No
que concerne ao signo, i.e., ao posicionamento de quem se vê diante de
um significante, há certamente um lugar a ser ocupado, mas é aquele que já se
ocupa desde sempre. Se há atraso, trata-se de um hiato produtivo: a projeção em
que se estende um signo sempre vivo (pois esta seria a definição do signo como
abertura de sentidos, no significante sempre pleno de sentidos – mesmo
que não saibamos cabalmente quais).
A
ordem das coisas, a medida, em grego, também se diz lógos. O que se encontra desse lógos na “piedade” da
linguagem, ou, como eu creio oportuno dizer, em uma piedade do signo mesmo? De
certo modo, a piedade como aceitação. Mas, em vez de uma aceitação
submissa, de uma ascese da parcimônia, a aceitação da proliferação, assim como
do esboroamento das inscrições, sob a ação do tempo. O tempo é então visto, não
meramente em seu efeito diluidor no devir, mas como produtor de
vestígios, como aquele que deixa indícios. Esta seria uma imagem poeticamente
sóbria – uma forma de “piedade”, não da húbris que almeja um signo
avassaladoramente prescrito – daquilo
que reside no signo, como seu cerne, seu movimento mais característico.
A
chave aqui então seria a ideia de “comedido na expansão”. Isto é,
proporcionado ou dimensionado à máxima expansão. Isso não corresponde a
uma limitação do que pode ser expandido. Significa, em vez disso, afrouxar os
sentidos previamente anexados ao significante: liberar o significante.
Deixar que ele produza tudo o que ele pode; e, como ele não está ligado
definitivamente a nenhum sistema – a nenhuma “economia” –, isso significa que
ele é o lugar da rotação das economias, da emergência do imprevisto,
i.e., do verdadeiramente novo (para nós, o “além-nós” a cada instante).[7] Essa seria, então, a cifra de
uma nova “piedade”: da piedade em face do signo.
Tematizou-se inicialmente o limiar
do animal. Mas podemos ver o arcaico de maneira análoga, como uma
espécie de processo de depuração identitária, que nos define num contraste com
o pré-histórico. O arcaico serve, também ele, como ponto de fuga, no
sentido mesmo de que “foge” infinitamente, deixando-nos um resíduo de solidez
“presente”, o qual nos restitui como “modernos” ou “contemporâneos”. Em uma
palavra (de fato, cheia de sentido): como “atuais”. Se
a “perda” do animal em nós envolvia um desenraizamento do corpo,
a percepção do “antigo” envolve a ideia de uma perda do contato com
“originalidades”. Assim como o animal está presente (a si mesmo), o antepassado
esteve presente na “vivência” – ou, em certas tradições, na proximidade de um fogo
ritualístico. Ouvimos ressoar as lamentações: “Ah, o animal é mais natural,
mais inocente, mais imediato, mais ‘bruto’, mais genuíno. Ah, o antepassado é
que viveu a experiência autêntica, mais próxima à raiz...” De um lado, a perda
de uma “inocência edênica”. De outro, a perda de algo que, apesar de nos determinar,
perdeu seu calor, sua energia, seu vigor.
Nossa
relação com o arcaico, com o ante-passado,[8] é de desenraizamento, de
“perplexidade” diante do estranho e não acessível, salvo mediante um laborioso
(e por vezes desencorajador) exercício hermenêutico. A hermenêutica,
então, seria uma escavação penosa, um esforço de sistematização, na aplicação
de um método que se quereria exaustivo, dependendo apenas do poder de
processamento disponível e do rigor das grades categoriais utilizadas. Mas
também pode ser acompanhada, em certos momentos talvez mais lúcidos, da
constatação de que o intérprete deve ir além de seus próprios horizontes,
soltar as amarras, aventurar-se e, eventualmente, perder-se. À “perda”
do passado, ou da “origem”, juntar-se-ia então a “perda de si”, como uma ameaça
plausível, ou mesmo um “risco ocupacional”.
Um
dos aspectos mais difíceis, se não o mais intratável, da relação entre o arcaico
e o moderno (ou contemporâneo) está ligado precisamente à questão da transmissão
e de tudo que tal noção envolve. Por exemplo, a possibilidade de efetuar, isto
é, de dar corpo a um vestígio estável no real; no limite, vem à baila a
consistência daquilo mesmo que queremos fixar ou captar com o termo “real”. A transmissão
levanta assim a questão da codificação: das regras para a interpretação
“correta” (i.e., “preferida” ou preferencial). A estela, o obelisco, a lápide
são tentativas de ancoragem no caudal do tempo. Daí, certa tradição: a
detenção da chave, a “chave” passada de mão em mão.
Quando
a chave, porém, se perde, como se reencontrar no mundo? Considerá-lo inóspito,
cerrado à compreensão, ou como algo afeiçoável e, ao mesmo tempo, selvagemente
produtivo, generosamente prolífico de sentidos? O tema da transmissão, da
tradição – e, ligado a ela, o da perda, visto que a cada geração, dispomos de
menos, pois empalidece a memória do arcaico, do original – reaparece, mais
recentemente, no ensaio agambeniano “Il fuoco e il racconto” (que dá título a
uma coletânea publicada em 2014 [pela editora Nottetempo]). Nele Agamben cita
uma historieta da tradição mística judaica contando como, ao longo das
gerações, se perdeu a memória do fogo ritual, do lugar em que ele se acendia e
no qual as fórmulas ganhavam a sua eficácia, pela proximidade com o divino.
Ainda assim, na necessidade de uma iluminação que o oriente nas decisões diante
de um problema difícil, de uma ameaça à comunidade, e dispondo de cada vez
menos contato com o fogo ritual, cada rabino, em seu tempo particular,
surpreendentemente afirma uma suficiência: “o que eu tenho deve bastar”.
Essa
relação com o fogo, segundo Agamben, caracterizaria o romance (ou a literatura
em geral): relação sem a qual ele deixaria mesmo de ser o que é. Aparentemente,
persistiria em Agamben uma valorização do sagrado. Mas eu acredito que ele
jamais perca de vista essa dinâmica (esse afastamento que é o sentido,
irredutível a uma origem sem pulsação, fora dos tempos), e isso impede que ele
seja “teológico” em um sentido retrógrado (de uma volta às origens, por
exemplo). Eu diria que aquilo que nós podemos recolher, nessa nova reflexão
sobre a perda (do fogo, do lugar, do rito), seria algo que se pode chamar
também de “piedade”.
O
místico judaico compensa a ausência do fogo com um vigor (talvez também uma
firmeza em face da escassez) que o impede de ver o ordinário como
insignificante. Não só restitui o “fogo” ao corriqueiro, ao “ordinário”, ao
“vulgar”, mas restitui ao próprio fogo seu caráter de signo. O que a tradição
mística ensina, ao último rabino, é a suficiência; a cada geração a
dependência do signo místico diminui, e é possível contentar-se com menos: isto
é, com o que, no signo, é essencial – e bastante para restituir a ele (a
qualquer manifestação, de fato) seu brilho. Enfim, se o relato do fogo é, em
uma medida essencial, “suficiente”, é porque ele revela o fogo mesmo
como signo, isto é, como manifestação.
O
herdeiro de uma tradição, ou melhor, o receptor de algo que passou ciosamente
de mão em mão tem – o que todos nós temos, portanto –, na ausência do fogo, do
lugar perdido, da fórmula esquecida, é o relato. Ou seja, o relato não
pode não ser a tradição, em um sentido muito amplo e inclusivo (que não é o da
segregação que tradições geralmente implicam): pois a tradição e o signo
exprimem a condição (que nos é comum) de pertencer ao tempo. O que a
“suficiência” do relato de um fogo ausente, de um lugar perdido, de uma fórmula
esquecida nos sugere é: a manifestação como o brilho da cotidianidade. O que
talvez nos possa colocar em cheio na posição de perceber que o signo, menos que
a circunstância de uma perda, é a sempre renovada ocasião para o achado.
[1] AGAMBEN, Giorgio. “La fine del pensiero”, in Il linguaggio e la morte. Un seminario sul luogo della negatività. Torino: Einaudi, 1982. p. 139.
[2] Idem.
[3] Idem, p. 137-8.
[4] Podemos retomar, nessa ótica, o que Deleuze aponta, quando fala da tecnicidade relativa ao braço ou à mão, com o conceito de “desterritorialização”. Isto é, interpretando-a como a possibilidade de não ver sempre o mesmo signo, de projetar algo que se apresenta em um novo horizonte. O que parece transformar, ao mesmo tempo, o próprio modo de apresentação. E, dado que territórios também se “apresentam”, essa desterritorialização aqui mencionada – assim como o movimento complementar de territorialização – não está no mesmo plano dos territórios. Sendo mais a possibilidade mesma de que se dê algo como um território.
[5] A propósito de economia, a postura diante do signo também exprime certas tendências ou índoles. E nós podemos polarizar estas atitudes como expressões, de um lado, de uma tendência a “reter”; e, de outro, de uma disposição para “dissipar”. Uma atitude que “poupa” – para gozar mais tarde, no futuro. Outra que goza agora, que valoriza o manifesto (não o valor de troca em uma economia estabelecida, em um sistema de valores, definido quiçá como...).
[6] Cf. TOUNA, Vaia. Fabrications of the Greek Past: Religion, Tradition, and the Making of Modern Identities. Leiden-Boston: Brill, 2017, p. 62-3.
[7] A “piedade” envolve de certo modo um “não exigir” — mas se trata evidentemente de um “não querer” que aposta na abundância — na mesma “cornucópia” ou exuberância que é tematizada de certa maneira por Bataille no conceito de “dispêndio”. A piedade, nesse sentido, é um “não poupar”. Seria antes a atitude de quem diz: “Eu não vou trocar o signo, ou melhor, não vou descontar o signo (ou, para ser mais preciso, o significante) como um cheque, recebendo em troca seu pleno ‘significado’”. Eu vou, então, apostar numa “economia” que está apta a subverter a “economia” (a distribuição de valores) vigente. Talvez dando ao termo “economia” o seu significado vibrante (dos fluxos), ao invés daquele que representa a escravização de quem é apanhado na rede (da necessidade do ganho como da necessidade do débito).
[8] O antecessor, precursor, o que veio ou “passou antes” – e, provavelmente, deixou “algo” para trás, nem que, este “algo”, sejamos nós.
como citar: BURIGO, Henrique. “A piedade do signo: variações sobre o tema da “perda””. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.7, jul. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209580
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