La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

As nossas vidas no limite do humano Entrevista a Franco Rella, por Antonio Gnoli





Franco Rella é um dos maiores filósofos italianos contemporâneos, professor titular de Estética do Istituto Universitario di Architettura di Venezia (IUAV), colaborou com instituições como Galleria di Arte Moderna em Roma e Musée d’Orsay em Paris. Nascido em 1944, em Rovereto, onde mora, Rella se formou em Milão com Gillo Dorfles, professor de Estética e um dos fundadores do Movimento Arte Concreta. Organizou algumas edições italianas de obras de Baudelaire, Rilke, Hölderlin, Flaubert e Bataille. A relação entre filosofia e literatura é central para o pensamento de Franco Rella. Para ele a segunda é vista como um desvio dos caminhos do logos habitual ou comum, pressupõe certa fuga do mundo dos discursos. A literatura é uma resposta ao princípio de não contradição que predomina no pensamento lógico, por ela – assim como as outras artes – se debruçar, justamente, sobre o que é invisível aos trilhos do pensamento lógico. Não cabe à literatura resolver os enigmas, mas ela tem a possibilidade de jogar uma luz sobre eles. É, então, nesse sentido que se pode pensar sua relação com os textos de Franz Kafka, autor que acompanha suas reflexões e que retorna na entrevista abaixo, por meio de um personagem que é, ao mesmo tempo, desvio, confim, limite, a saber, Odradek.
Antonio Gnoli, jornalista de Repubblica, organizador de livros como Sanguinetti’s song. Conversazioni immorali [A canção de Sanguinetti. Conversas imorais][1] e Il silenzio della tirannide [O silêncio da tirania][2], fez a entrevista a seguir, publicada em Robinson, Repubblica, em 18/04/2020.
A obra de Franco Rella está traduzida em diversas línguas (inglês, alemão, francês, espanhol), mas no Brasil só há um livro seu traduzido, Georges Bataille, filósofo[3] (EDUFSC, 2020) e é preciso preencher essa lacuna.
Agradecemos a Franco Rella e Antonio Gnoli por consentirem a tradução e a publicação.

Patricia Peterle (Tradução e apresentação)


As nossas vidas no limite do humano
Entrevista a Franco Rella, por Antonio Gnoli

Em Coração das trevas, Conrad evoca o horror, ou seja, a descoberta assustadora que “no fundo das coisas não existe nada mais que a falta de sentido e, portanto, o horror”, roubo essa frase do livro de Franco Rella Territori dell’umano [Territórios do humano][4] (Jaca Book, 2019), e penso que o pior horror é o de morrer sozinhos. Ter essa consciência mede nossa impotência e confunde ou anula sempre mais o limite entre o que é humano e o que é desumano: “Tenho a impressão, me diz Rella, que o homem seja realmente capaz de tudo. Não é uma novidade. Mas vejamos a história dos velhos, sua sacrificabilidade, que alguns insensatamente, egoistamente, cinicamente, proclamaram. Lembra-me a Rocha Tarpeia[5], o sacrifício dos fracos. Como podemos fazer com que essas frases retornem, razoavelmente, no território do humano? Canetti dizia que quando morre um velho morre mais vida”.


No sentido de que morre mais experiência, mais passado, mais história?
Morrem os anos que eles interpretaram e viveram. Somente com a condição de ver os velhos como crianças diferentes que se foram, seremos capazes de reencontrá-los. Como rostos antigos, mas próximos à nossa empatia.
 Você se questiona sobre esse rosto. E eu penso nos rostos entubados que afloram das reportagens da televisão.
Aqueles rostos mascarados escondem o sofrimento, azeram a diversidade e nos dizem mais do que qualquer outra coisa que estamos realmente na fronteira do humano.
Contudo, se serve para salvar vidas, é uma fronteira atravessável.
Sim, claro, mas isso não está em discussão. Quando em 1967, Christian Barnard fez o primeiro transplante de coração, abriu o caminho não somente para o progresso da medicina, mas também para a relação que o homem tem consigo mesmo e com o próprio corpo. Desde então, houve um grande debate sobre os transplantes até chegar a imaginar a criação de órgãos clonados prontos para futuros transplantes. O conhecimento do genoma abriu para a possibilidade de intervir já em nível embrionário para evitar futuras possíveis malformações ou doenças.
 É o papel das tecno-ciências, com sua promessa implícita de redefinir a humanidade do homem.

Elas combatem, muitas vezes vitoriosamente, doenças consideradas até alguns anos atrás incuráveis. Nos oferecem mais tempo de vida, ambicionam a realização de um tipo humano perfeitamente são. A única coisa que não podem nos doar é a fórmula para acabar com o sofrimento.

 Talvez porque não haja uma fórmula, não haja uma receita que nos indique como chegar à terra da felicidade.
Muitas fórmulas, mas todas frustradas. Seria preciso ler ou reler alguns trechos do Zibaldone para entender o quanto o sofrimento seja uma condição intocável (inalcançável?). Leopardi a compara a um jardim pisoteado e infestado. Subverte admiravelmente a imagem do Éden, do encanto harmonioso e feliz, em seu perfeito contrário. O paraíso não é mais o lugar do bem, pois tudo aquilo que é resulta ser (isso acaba sendo) mal. Falta o comprazimento do divino em relação ao bem.
 O mal diferentemente do bem é o extremo. Há o extremo na literatura, como você mesmo já sinalizou. E há o extremo na vida, hoje bem mais perturbador.
A verdade última do nosso ser humanos, a própria verdade, é o extremo. A esse extremo se referiram os grandes escritores, os grandes poetas, os grandes artistas. Kafka, Proust, Bacon, Schönberg o exploraram por nós.
 De que forma?
Indo até o limite do humano. É o que captamos com Odradek, descrito em um conto de Kafka. Trata-se de uma criatura estranha, parecida com um carretel de linha (retrós?). Ele tem algo dos traços humanos, mas não é humano. É, justamente, uma figura extrema, possível de ser encontrada no campo de extermínio de Auschwitz e que Primo Levi descreve como o “sem nome”.
 É a vida quando não é mais vida, quando vai além de qualquer compreensão razoável. Não é um pouco o que estamos vivendo?
Todos nós, na emergência desses momentos, também estamos em uma situação extrema. Estamos ou arriscamos ser como os danados da terra que desde sempre padecem o extremo. É uma verdade que conhecemos por meio dos nossos corpos e das nossas almas.
 É uma condição que o envolve também pessoalmente?
Não sou uma exceção. Experimento também em mim esse sentido de extremo. Por exemplo, a insônia que toma conta de mim de noite e a sensação do peso do corpo que se vira e se move, inquieto, enquanto na cabeça afloram imagens que logo se despedaçam e se fragmentam. Borges fala da nossa tentativa de dominar a noite com a “magia inútil de uma respiração regular”. Mas a magia se quebra quando o corpo bruscamente muda posição. E parece-me estar encolhido e inquieto na cama como em um ventre inóspito.
 No fundo, essa condição difícil é, de todo modo, sempre familiar em alguém como você habituado mais do que outros à solidão e a viver em casa.
Sempre amei a solidão e o vazio. Contudo, a repentina mudança da paisagem – as praças desertas que parecem evocar a metafísica de De Chirico ou o rasgo do som das ambulâncias que rompe o silêncio – provoca-me desconcerto e me desestabiliza. E dou-me conta que, no fundo, também fujo de lugares sociais, faltam rostos, expressões, vozes das quais talvez eu não distinguisse as palavras, mas que me agarrariam sugerindo histórias possíveis.

 Você falava da insônia e do corpo que se rebela.
Há momentos em que o corpo se torna teatro onde tudo pode ser representado: o mergulho na dor e na solidão, o cara a cara com a morte. É com o nosso corpo que colidimos contra as coisas. Acredito que a atual emergência do corpo tenha se tornado uma experiência decisiva, um horizonte existencial.
 Mas o corpo hoje pode ser declinado em tantos outros modos. A partir inclusive do impedimento do contato. É como se o virtual estendesse ainda mais o próprio domínio.
Houve e há a tentação de separar o corpo de nós, de fazer dele uma parte estranha. Descartes falava de res extensa, uma entidade mensurável e dominável. Hoje, depois do corpo cyborg, chegou-se a teorizar o corpo como um conjunto de energias totalmente desmaterializado pela carne, “um web de diferenciação pós-orgânica”, como foi dito. A proibição de contato também para impedir o contágio – apesar de entrar nas estratégias da higienização – mira o isolamento e a anomia. Mas o corpo não é exorcizável, sempre volta, inquieto e inquietante, trazendo consigo um grumo de sensações que temos de tentar desemaranhar. Dizia Marina Cvetaeva que é do corpo que saem também os estilhaços da alma.

Qual é a relação com seu corpo? O que mudou com a  idade?
Poderá parecer paradoxal, mas a relação com o meu corpo ficou basicamente igual nas minhas várias idades. Além do mais, não conheço o silêncio do corpo. Não há um instante de minha vida em que eu não tenha escutado a sua voz. Às vezes gritando, outras um leve murmúrio. Acredito que a familiaridade com a voz de seu próprio corpo também seja a familiaridade com a voz da fragilidade e da morte. Nenhuma tristeza. Aliás, em certos momentos, é uma alegria reconhecê-la.
 Entretanto, a fragilidade instiga o sentimento do medo. Principalmente hoje, em que o sentido de invencibilidade do Ocidente parece ter sumido. Passamos do medo para com o outro (o migrante) para o medo para com nós mesmos (o contágio). O que mudou para você?
Muito pouco, são medos que se parecem. No que diz respeito aos migrantes adotamos pensamentos e estratégias muito parecidos com os processos imunitários ativados com o vírus. Não apenas nas fronteiras, mas penso também no desconforto, às vezes de perigo, que se percebe ao nos aproximarmos do migrante. Desconforto e sensação de perigo que experimentamos entrando em qualquer espaço agora habitado, no mais, por seres mascarados. 

Houve o salto da máscara social para a máscara sanitária.
Esses rostos mascarados nos dizem, mais do que qualquer outra coisa, que chegamos à fronteira do humano. No momento em que deveria ser mais reconhecível, o rosto cai na indistinção. Mostra a impossibilidade de um cara a cara. Acrescenta à distância social a distância da alma.
 Falando de medos, quais os que você sente ou teme?
Quase sempre os meus medos são determinados por situações concretas, por eventos em que sinto o eco de uma ameaça e no tocante aos quais me sinto indefeso. Existe, contudo, também um medo aparentemente mais abstrato e que definiria metafísico: não sei de onde está chegando, mesmo assim, está ali e me percorre de forma sutil e insidiosa. Não sei dar um nome a ele porque não tenho medos de tipo religioso. Não sinto a ameaça profética do milenarismo que anuncia o fim do mundo. Mas sinto o fim do humano, a morte do homem, a nossa finitude, mas não tenho medo. Temo, pelo contrário, que ela caia sobre mim sem que eu me dê conta (perceba?).
 Entretanto, nunca como neste momento, a morte dos nossos semelhantes nos interpela tão diretamente e nos perturba.
A morte, como dizia Bataille, é o ápice da experiência, mas no momento em que ela se realiza, também é perdida. Acredito que a relação com a morte seja muito subjetiva. Para mim, como disse, é o desejo de estar presente e de saber. Mas existe também a morte como horizonte coletivo. Vemos a morte todos os dias, talvez exibida impudicamente. Vemos ou entrevemos, sobretudo, a morte de quem morre sozinho. Isso me parece um extremo insuportável, como a trágica violência de um cortejo de caixões que passa anônimo sob  nossos olhos. A imagem ou mesmo o relato dessas mortes em si violentas age em mim como uma violência irreparável.
 Se o pranto e o luto pertencem ao humano, o quanto esses sentimentos nos permitirão descobrir o outro não como um inimigo, um rival, uma insídia?
Quando reconheceremos nos outros o direito a lamentar que hoje é frequentemente negado. Lamentar, por exemplo, pelo exilado ou pelos mortos anônimos. Lamentar não é piedade, é algo que implica uma coletividade, uma sociedade, uma polis. É, portanto, uma dimensão política.
 Nesse momento, como é sua relação com a casa, os objetos, os livros?
É uma relação estranhante, até porque habitualmente trabalho num escritório que não é minha casa (que não é onde moro?). Falta-me a paisagem desse espaço em que trabalho, onde fico, normalmente, muitas horas. A permanência em casa torna estranho os objetos cotidianos.
 Quer dizer que mudam ou mudaram seus hábitos?
Não, vivo de forma muito parecida a como vivia antes desta emergência. Contudo, sinto falta da leitura dos jornais no bar, do encontro com os netinhos, do espaço onde trabalho e de poder me mover para ver, quiçá, a mostra de Rafael ou encontrar um amigo em outra cidade.
Eram hábitos, mas acredito que a vida se estruture nos hábitos. E a até a ansiedade que, cresce, nasce quando os hábitos são lacerados.
 Como acha que vamos sair dessa?
Haverá um lento processo de reconstrução dos nossos hábitos, antigos e novos.
 Nossa mente é capaz de suportar o que até um momento antes era inimaginável?
Quanta verdade pode aguentar um cérebro humano, se pergunta Nietzsche em Ecce homo. É uma pergunta retórica e, ao mesmo tempo, dramática, porque a única resposta é “até o fim”, até quando seremos capazes de lutar. Há uma outra frase de Nietzsche: “E se um dia não conseguires aguentar a vida, deves procurar amá-la”.




[1] SANGUINETTI, Edoardo. Sanguinetti’s song. Conversazioni immorali. Antonio Gnoli (org.). Milano: Feltrinelli, 2006.
[2] KOJÈVE Alexandre. Il silenzio della tirannide. Antonio Gnolo (org.). Milano: Adelphi, 2004.
[3] RELLA, Franco; MATI, Susanna. Georges Bataille, filósofo. Trad. Davi Pessoa Carneiro. Florianópolis: EDUFSC, 2020.
[4] RELLA, Franco. Territori dell’umano. Milano: Jaka Book, 2019.
[5] Na antiga Roma, local onde eram feitas execuções, onde as pessoas eram lançadas do alto dessa rocha. [NT]



como citar: GNOLI, Antonio. “As nossas vidas no limite do humano, entrevista com Franco Rella”. Trad. Patricia Peterle. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.7, jul. 2020. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209728