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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Antonio Gnoli
Franco Rella
Morte
em
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Franco Rella é um dos maiores
filósofos italianos contemporâneos, professor titular de Estética do Istituto
Universitario di Architettura di Venezia (IUAV), colaborou com instituições
como Galleria di Arte Moderna em Roma e Musée d’Orsay em Paris. Nascido em
1944, em Rovereto, onde mora, Rella se formou em Milão com Gillo Dorfles,
professor de Estética e um dos fundadores do Movimento Arte Concreta. Organizou
algumas edições italianas de obras de Baudelaire, Rilke, Hölderlin, Flaubert e
Bataille. A relação entre filosofia e literatura é central para o pensamento de
Franco Rella. Para ele a segunda é vista como um desvio dos caminhos do logos
habitual ou comum, pressupõe certa fuga do mundo dos discursos. A literatura é
uma resposta ao princípio de não contradição que predomina no pensamento
lógico, por ela – assim como as outras artes – se debruçar, justamente, sobre o
que é invisível aos trilhos do pensamento lógico. Não cabe à literatura
resolver os enigmas, mas ela tem a possibilidade de jogar uma luz sobre eles.
É, então, nesse sentido que se pode pensar sua relação com os textos de Franz
Kafka, autor que acompanha suas reflexões e que retorna na entrevista abaixo,
por meio de um personagem que é, ao mesmo tempo, desvio, confim, limite,
a saber, Odradek.
Antonio Gnoli, jornalista de Repubblica,
organizador de livros como Sanguinetti’s song. Conversazioni immorali [A canção de Sanguinetti. Conversas imorais][1] e
Il silenzio della tirannide [O
silêncio da tirania][2],
fez a entrevista a seguir, publicada em Robinson, Repubblica, em
18/04/2020.
A obra de Franco Rella está
traduzida em diversas línguas (inglês, alemão, francês, espanhol), mas no
Brasil só há um livro seu traduzido, Georges Bataille, filósofo[3]
(EDUFSC, 2020) e é preciso preencher essa lacuna.
Agradecemos a Franco Rella e
Antonio Gnoli por consentirem a tradução e a publicação.
Patricia Peterle (Tradução e apresentação)
As nossas
vidas no limite do humano
Entrevista
a Franco Rella, por Antonio Gnoli
Em Coração
das trevas, Conrad evoca o
horror, ou seja, a descoberta assustadora que “no fundo das coisas não existe
nada mais que a falta de sentido e, portanto, o horror”, roubo essa frase do
livro de Franco Rella Territori dell’umano [Territórios do humano][4]
(Jaca Book, 2019), e penso que o pior horror é o de morrer sozinhos. Ter essa consciência
mede nossa impotência e confunde ou anula sempre mais o limite entre o que é
humano e o que é desumano: “Tenho a impressão, me diz Rella, que o homem seja
realmente capaz de tudo. Não é uma novidade. Mas vejamos a história dos velhos,
sua sacrificabilidade, que alguns insensatamente, egoistamente, cinicamente,
proclamaram. Lembra-me a Rocha Tarpeia[5],
o sacrifício dos fracos. Como podemos fazer com que essas frases retornem, razoavelmente,
no território do humano? Canetti dizia que quando morre um velho morre mais
vida”.
No sentido de que morre mais experiência, mais
passado, mais história?
Morrem os anos que eles interpretaram e viveram.
Somente com a condição de ver os velhos como crianças diferentes que se foram, seremos
capazes de reencontrá-los. Como rostos antigos, mas próximos à nossa empatia.
Aqueles rostos mascarados escondem o sofrimento,
azeram a diversidade e nos dizem mais do que qualquer outra coisa que estamos
realmente na fronteira do humano.
Contudo, se serve para salvar vidas, é uma fronteira
atravessável.
Sim, claro, mas isso não está em discussão. Quando em
1967, Christian Barnard fez o primeiro transplante de coração, abriu o caminho
não somente para o progresso da medicina, mas também para a relação que o homem
tem consigo mesmo e com o próprio corpo. Desde então, houve um grande debate
sobre os transplantes até chegar a imaginar a criação de órgãos clonados
prontos para futuros transplantes. O conhecimento do genoma abriu para a
possibilidade de intervir já em nível embrionário para evitar futuras possíveis
malformações ou doenças.
Elas combatem, muitas vezes
vitoriosamente, doenças consideradas até alguns anos atrás incuráveis. Nos oferecem
mais tempo de vida, ambicionam a realização de um tipo humano perfeitamente
são. A única coisa que não podem nos doar é a fórmula para acabar com o
sofrimento.
Muitas fórmulas, mas todas frustradas.
Seria preciso ler ou reler alguns trechos do Zibaldone para entender o
quanto o sofrimento seja uma condição intocável (inalcançável?). Leopardi a
compara a um jardim pisoteado e infestado. Subverte admiravelmente a imagem do Éden,
do encanto harmonioso e feliz, em seu perfeito contrário. O paraíso não é mais
o lugar do bem, pois tudo aquilo que é resulta ser (isso acaba sendo) mal. Falta
o comprazimento do divino em relação ao bem.
A verdade última do nosso
ser humanos, a própria verdade, é o extremo. A esse extremo se referiram os
grandes escritores, os grandes poetas, os grandes artistas. Kafka, Proust,
Bacon, Schönberg o exploraram por nós.
Indo até o limite do humano.
É o que captamos com Odradek, descrito em um conto de Kafka. Trata-se de uma
criatura estranha, parecida com um carretel de linha (retrós?). Ele tem algo
dos traços humanos, mas não é humano. É, justamente, uma figura extrema,
possível de ser encontrada no campo de extermínio de Auschwitz e que Primo Levi
descreve como o “sem nome”.
Todos nós, na emergência
desses momentos, também estamos em uma situação extrema. Estamos ou arriscamos ser
como os danados da terra que desde sempre padecem o extremo. É uma verdade que
conhecemos por meio dos nossos corpos e das nossas almas.
Não sou uma exceção.
Experimento também em mim esse sentido de extremo. Por exemplo, a insônia que
toma conta de mim de noite e a sensação do peso do corpo que se vira e se move,
inquieto, enquanto na cabeça afloram imagens que logo se despedaçam e se
fragmentam. Borges fala da nossa tentativa de dominar a noite com a “magia
inútil de uma respiração regular”. Mas a magia se quebra quando o corpo
bruscamente muda posição. E parece-me estar encolhido e inquieto na cama como em
um ventre inóspito.
Sempre amei a solidão e o
vazio. Contudo, a repentina mudança da paisagem – as praças desertas que
parecem evocar a metafísica de De Chirico ou o rasgo do som das ambulâncias que
rompe o silêncio – provoca-me desconcerto e me desestabiliza. E dou-me conta que,
no fundo, também fujo de lugares sociais, faltam rostos, expressões, vozes das
quais talvez eu não distinguisse as palavras, mas que me agarrariam sugerindo histórias
possíveis.
Há momentos em que o corpo
se torna teatro onde tudo pode ser representado: o mergulho na dor e na
solidão, o cara a cara com a morte. É com o nosso corpo que colidimos contra as
coisas. Acredito que a atual emergência do corpo tenha se tornado uma experiência
decisiva, um horizonte existencial.
Houve e há a tentação de separar
o corpo de nós, de fazer dele uma parte estranha. Descartes falava de res
extensa, uma entidade mensurável e dominável. Hoje, depois do corpo cyborg,
chegou-se a teorizar o corpo como um conjunto de energias totalmente
desmaterializado pela carne, “um web de diferenciação pós-orgânica”, como foi
dito. A proibição de contato também para impedir o contágio – apesar de entrar
nas estratégias da higienização – mira o isolamento e a anomia. Mas o corpo não
é exorcizável, sempre volta, inquieto e inquietante, trazendo consigo um grumo
de sensações que temos de tentar desemaranhar. Dizia Marina Cvetaeva que é do
corpo que saem também os estilhaços da alma.
Qual é a relação com seu corpo? O que mudou com a idade?
Poderá parecer paradoxal,
mas a relação com o meu corpo ficou basicamente igual nas minhas várias idades.
Além do mais, não conheço o silêncio do corpo. Não há um instante de minha vida
em que eu não tenha escutado a sua voz. Às vezes gritando, outras um leve murmúrio.
Acredito que a familiaridade com a voz de seu próprio corpo também seja a familiaridade
com a voz da fragilidade e da morte. Nenhuma tristeza. Aliás, em certos
momentos, é uma alegria reconhecê-la.
Muito pouco, são medos que
se parecem. No que diz respeito aos migrantes adotamos pensamentos e
estratégias muito parecidos com os processos imunitários ativados com o vírus.
Não apenas nas fronteiras, mas penso também no desconforto, às vezes de perigo,
que se percebe ao nos aproximarmos do migrante. Desconforto e sensação de
perigo que experimentamos entrando em qualquer espaço agora habitado, no mais,
por seres mascarados.
Esses rostos mascarados nos
dizem, mais do que qualquer outra coisa, que chegamos à fronteira do humano. No
momento em que deveria ser mais reconhecível, o rosto cai na indistinção.
Mostra a impossibilidade de um cara a cara. Acrescenta à distância social a
distância da alma.
Quase sempre os meus medos
são determinados por situações concretas, por eventos em que sinto o eco de uma
ameaça e no tocante aos quais me sinto indefeso. Existe, contudo, também um
medo aparentemente mais abstrato e que definiria metafísico: não sei de onde
está chegando, mesmo assim, está ali e me percorre de forma sutil e insidiosa.
Não sei dar um nome a ele porque não tenho medos de tipo religioso. Não sinto a
ameaça profética do milenarismo que anuncia o fim do mundo. Mas sinto o fim do
humano, a morte do homem, a nossa finitude, mas não tenho medo. Temo, pelo
contrário, que ela caia sobre mim sem que eu me dê conta (perceba?).
A morte, como dizia
Bataille, é o ápice da experiência, mas no momento em que ela se realiza, também
é perdida. Acredito que a relação com a morte seja muito subjetiva. Para mim,
como disse, é o desejo de estar presente e de saber. Mas existe também a morte
como horizonte coletivo. Vemos a morte todos os dias, talvez exibida
impudicamente. Vemos ou entrevemos, sobretudo, a morte de quem morre sozinho.
Isso me parece um extremo insuportável, como a trágica violência de um cortejo
de caixões que passa anônimo sob nossos
olhos. A imagem ou mesmo o relato dessas mortes em si violentas age em mim como
uma violência irreparável.
Quando reconheceremos nos
outros o direito a lamentar que hoje é frequentemente negado. Lamentar, por
exemplo, pelo exilado ou pelos mortos anônimos. Lamentar não é piedade, é algo
que implica uma coletividade, uma sociedade, uma polis. É, portanto, uma
dimensão política.
É uma relação estranhante,
até porque habitualmente trabalho num escritório que não é minha casa (que não
é onde moro?). Falta-me a paisagem desse espaço em que trabalho, onde fico,
normalmente, muitas horas. A permanência em casa torna estranho os objetos
cotidianos.
Não, vivo de forma muito
parecida a como vivia antes desta emergência. Contudo, sinto falta da leitura
dos jornais no bar, do encontro com os netinhos, do espaço onde trabalho e de
poder me mover para ver, quiçá, a mostra de Rafael ou encontrar um amigo em
outra cidade.
Eram hábitos, mas acredito
que a vida se estruture nos hábitos. E a até a ansiedade que, cresce, nasce
quando os hábitos são lacerados.
Haverá um lento processo de
reconstrução dos nossos hábitos, antigos e novos.
Quanta verdade pode aguentar
um cérebro humano, se pergunta Nietzsche em Ecce homo. É uma pergunta retórica
e, ao mesmo tempo, dramática, porque a única resposta é “até o fim”, até quando
seremos capazes de lutar. Há uma outra frase de Nietzsche: “E se um dia não conseguires
aguentar a vida, deves procurar amá-la”.
[1] SANGUINETTI,
Edoardo. Sanguinetti’s song. Conversazioni immorali. Antonio Gnoli (org.). Milano: Feltrinelli, 2006.
[2] KOJÈVE Alexandre. Il silenzio della tirannide.
Antonio Gnolo (org.). Milano: Adelphi, 2004.
[3] RELLA,
Franco; MATI, Susanna. Georges Bataille, filósofo. Trad. Davi Pessoa Carneiro. Florianópolis:
EDUFSC, 2020.
[4] RELLA,
Franco. Territori dell’umano. Milano:
Jaka Book, 2019.
[5] Na antiga
Roma, local onde eram feitas execuções, onde as pessoas eram lançadas do alto
dessa rocha. [NT]
como citar: GNOLI, Antonio. “As nossas vidas no limite do humano, entrevista com Franco Rella”. Trad. Patricia Peterle. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.7, jul. 2020. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209728
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