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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Covid-19
Pandemia
Paolo Giordano
em
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Já faz alguns meses que o Coronavírus se alastrou pelo mundo afora. Ao lado de informações pontuais e atualizadas, também se faz urgente começar a construir um arquivo da memória, começar a historicizar os fatos, procurando, através da lente do distanciamento, ter uma visão mais crítica e, quem sabe, mais lúcida. Nesse sentido, vamos propor aqui um artigo do escritor e físico, Paolo Giordano, ao qual agradecemos, publicado no período da expansão da pandemia na Itália. Em seu mais recente livro, No contágio, publicado no Brasil pela editora Ayine, com tradução de Davi Pessoa, Paulo Giordano trata de um mundo em transformação e dos desafios que se impõem em contextos de epidemia. Neste artigo, certamente, será possível reconhecer dinâmicas ainda em ato no Brasil e refletir, mais uma vez, sobre as repercussões de cunho social e até mesmo cultural, em particular no que diz respeito aos preconceitos que envolvem realidades distantes da nossa. N. da R.
Existe uma linha
temporal desta epidemia. Tem sua origem num momento incerto e num lugar incerto,
talvez um mercado de Wuhan, e continua com a difusão do vírus na China e depois
no mundo, até chegar aqui. Uma parte da desorientação, do sentimento de aflição
destas horas, deriva desta linha temporal ter sido negligenciada repetidamente.
O contágio, uma vez iniciado numa região, avança de modo
semelhante ao que aconteceu ou acontecerá
em outras. Não há razão evidente para não ser assim: pertencemos à mesma espécie
e nossas dinâmicas sociais são idênticas, ou pelo menos afins, onde quer que
seja. No entanto, em janeiro, olhando com suspeita a China, tivemos a percepção
de que nada do gênero pudesse acontecer na Europa. Não nessa escala, não assim,
não conosco. Por que não? Por um preconceito infundado, o preconceito do outro
lugar. E porque ninguém examinava a sério a hipótese de que nós e a China estávamos
na mesma linha temporal.
Mas estamos, exatamente como a França está na mesma linha temporal da Itália, e o Lazio está na mesma
linha temporal da Lombardia. Se a situação não é homogênea entre esses lugares,
é só porque estamos em pontos diferentes da linha, alguns mais na frente porque
partiram primeiro, outros um pouco mais atrás. Mas o princípio em que deveriam
se basear todas as nossas considerações é que a evolução da epidemia, em suas
linhas gerais, é a mesma em todos os lugares.
Olhar com lucidez para quem nos precede é, portanto, o instrumento mais eficaz em nosso
poder para atenuar o choque da Covid-19, e não nos deixarmos surpreender
desorganizados com sua chegada mais maciça. Roma, agora, deveria olhar para Milão,
exatamente como a Itália e o resto do mundo deveriam ter olhado mais seriamente
para a China dois meses atrás. Mas não apenas as metrópoles ou o continente, todos,
até as cidadezinhas mais remotas de nossas ilhas. Gostaria de afirmar com a máxima
clareza: a Itália não está dividida entre uma parte vermelha, em crise, e outra
que no fim das contas está se safando. Como não estão a Europa e o resto do mundo.
Essa percepção é aparente e temporária. Estamos todos em estágios diferentes da
mesma evolução.
Portanto, não é
“se” chega, nem “onde”. É “quando” e “como”. Essa ideia gera pânico? Ao
contrário. É uma ideia que gera prevenção, a única coisa com que devemos nos preocupar
há dias, cada um por si e juntos como comunidade.
A epidemia se desenvolve
no tempo e nós temos necessidade de ganhar tempo, o maior tempo possível para atenuar o impacto, para que os
órgãos de saúde consigam se aparelhar e então administrar os casos com todos os
recursos úteis. Não estamos fugindo desordenadamente da erupção de um vulcão. Estamos,
todos juntos, freando o avanço de alguma coisa.
Com respeito às discrepâncias temporais, é bom avisar a todos que até os números que nos são
fornecidos todos os dias estão em pontos diferentes da linha temporal: um testar
positivo é um estágio da doença diferente de uma internação, uma cura ou uma
morte. Isto é, os mortos de hoje se referem a hipotéticos resultados positivos de
muitos dias atrás. Portanto, atenção ao tirar conclusões aritméticas demasiado simples
dividindo um número pelo outro.
Muitas das demoras e das desorientações são devidos a uma
falta de confiança na população, e ao vago desejo de tranquilizar. Mas não se tranquiliza ninguém repetindo
que não é nada de grave e logo depois fechando uma cidade; fixando um tempo e depois
alongando-o mais e mais; repetindo que a Itália não deve parar e logo depois punindo
os italianos por seu hábito irresponsável de se encontrar no bar. É preciso
reverter esse paradigma de desconfiança, logo; convencer-se que as pessoas, se colocadas
na condição de entender, entendem. E se comportam de acordo.
A propensão ao atraso também veio dos especialistas, que deveriam ter iniciado um trabalho de informação clara
e de pressão institucional muito antes. A bola de cristal nas mãos deles era a curva
epidemiológica chinesa, e estava disponível online. Evidentemente, o
preconceito do outro lugar está mais radicado do que se pensa.
Agora, porém,
nós cidadãos nos arriscamos a ser os piores retardatários. As medidas impostas nas
zonas vermelhas deveriam ser seguidas ao pé da letra também fora delas, por
todos, e a partir de agora, aliás, de ontem. A evolução, entretanto, será a mesma.
Quando um contágio se espalha, as medidas reativas de contenção são muito menos
eficazes do que as medidas preventivas.
Estas linhas, portanto, são um triplo apelo. Às
instituições, para que atenuem a sensação de
uma Itália fragmentada e de uma Itália mais aflita do que os outros países. Aos
cidadãos, a todos nós, para que adotemos as medidas de máxima prudência, máximas,
sem considerar que o nosso bairro esteja “tranquilo no final das contas”. E à
mídia e aos especialistas, para que em vez de apoiar as mudanças de tom repentinas
das instituições, encontrem uma linha de continuidade e decoro. Décadas de comunicação
baseada na emotividade nos habituaram mal, injetamos paixão em tudo, mas agora basta.
É preciso uma parcimônia de frases, principalmente de adjetivos e advérbios. É
preciso ponderar os “dramaticamente” e os “desesperado”, assim como os “somente”,
os “simplesmente”, os “exagerado”. É necessário explicar, explicar, explicar, com
toda a calma possível. Quem entendeu algo a mais deve explicá-lo a quem ainda
não entendeu. Essa também é uma nova cadeia na qual cada um tem seu papel.
Estamos enfrentando uma crise coletiva e a linha temporal
na qual viajamos é a mesma. Não há uma
verdadeira solidão, não nos hospitais, não nas zonas vermelhas, não na Itália, portanto
expulsemos logo esse pensamento. E se a ideia de que o coronavírus chegará a
todos os lugares suscita em alguém um instinto de impotência, de rendição, também
a expulsemos. Toda forma de fatalismo é uma vantagem para epidemia. Devemos resistir
nestas circunstâncias por um tempo que não será breve, e devemos encontrar o
modo certo de fazê-lo a tempo.
Corriere della Sera, 9 de março de 2020[2].
Tradução de Francisco Degani
[1] Referência à coletiva de impressa do dia
07/03/2020 do Ministro da Justiça. Para todas as coletivas do governo italiano,
acesse-se: http://www.governo.it/it/coronavirus-video
como citar: GIORDANO, Paolo. “Coronavírus, a linha temporal que foi negligenciada”. Trad. Francisco Degani. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.7, jul. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209568
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