La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Da invasão hacker ao barbarismo do real, por Rafael Reginato Moura

A invasão hacker ocorrida durante o Encontro de Pesquisa promovido pelo Núcleo de Estudos Contemporâneos de Literatura Italiana – NECLIT da Universidade Federal de Santa Catarina no dia 10 de julho, que utilizava a plataforma Google Meet, não se mostrou apenas, como já se sabia pelo relato de outros encontros virtuais que sofreram ataques nos últimos dias, uma repetição da intenção intimidante e hostil de banalizar a violência gratuita, o anti-intelectualismo e a homofobia. Imersos e condicionados às leis do universo virtual em meio a uma pandemia mundial, a fragilidade da crescente lógica tecnológica imiscuindo-se entre muros, paredes e a mínima frincha, derrubando a fronteira público-privado, concedeu uma clara e irrefutável demonstração de sua ilimitável limitação. Usando da liberdade individual de que esses novos processos já gozavam antes da pandemia, embora agora em irresistível aceleração[1], uma confluência de vozes e imagens desrespeitosas ganhou a desejada cena por alguns minutos, interrompendo o evento e necessitando da interferência da mediação para que o encontro retornasse temerosamente à sua continuidade.

Matrix (1999), de Andy e Larry Wachowski 


As ofensas verbais disparadas aos presentes, e a um dos apresentadores em especial, ruidosamente intercaladas com um fundo musical de ritmo funk e com imagens que variavam entre a grotesca dança de um deficiente físico até alcançar, em suposto clímax, uma genitália masculina em close, revelam os lastros de uma estética que, guardadas as suas flexões, há muito tempo vem convivendo com falsa despretensão na realidade brasileira. Aparte a brutalidade com intenção ou efeito visivelmente chocante das ofensas e da imagem final, resta a possibilidade de uma reflexão que de maneira alguma suplanta o fato real de um crime virtual ocorrido durante uma reunião acadêmica de estudos: que tipo de efeito realista, a considerar o ilusionismo que o termo admite, a invasão de imagens e ruídos ocasionou diante dos olhos perplexos enquanto durou sua passagem? O que, no plano do pensamento, pode permanecer ao final do evento como elemento produtivo à realidade e ao “gosto estético” que, não raras vezes, descortina o vazio lacunar existente entre a alta cultura e a reprodução banal de uma antiestética que se dissemina fluidamente e sem limites pela grande camada formadora de um senso comum que já não reconhece sequer o princípio de responsabilidade?[2]
À primeira vista, o barbarismo[3] da invasão hacker mobilizou, embora em uso comunicacional e de relação direta, um contato de aparente hiper-realismo que, utilizando como suporte um fértil ambiente virtual, flanou de um realismo marginal a contar com imagens encontradas nas favelas brasileiras e com um gênero musical identificado com a periferia carioca a um surrealismo que se valeu da depreciação grotesca e deformadora da perspectiva real de um evento acadêmico que era, naquele momento, solapado do primeiro plano de uma tela compartilhada. Em uma aproximação com preceitos midiáticos, sempre impulsionados pela espetacularização do real e pela comunicação de massa, do qual o advento de uma plataforma virtual não pode ser excluído, a invasão hacker inter-coordenada entre perfis que se altercavam na tela não deixa de pressupor, como derivação ou produto clandestino de uma lógica mercadológica, quando não política, a sensação de uma exibição não intermediada, fortuitamente espontânea, a fornecer aos atônitos pesquisadores e professores acadêmicos presentes o impacto de uma brutalidade do real, sem artifícios, direta, que intencionava capturar a totalidade dos sentidos visuais e auditivos. Uma falsa sensação não intermediada, ressalta-se, quando se percebe que, embora não houvesse o efeito acabado de uma edição documental ou televisiva com o propósito de um produto finalizado, agia como mensagem real (ou super-real) que exigia de uma sequência ilusoriamente despretensiosa, ainda que de forma fragmentada, a tarefa de conduzir a atenção do olhar para as imagens que se sucediam na tela como em um jogo de armação psicológica de cenas entrecortadas próximas das montagens fílmicas surrealistas.
A formulação de um hiper-realismo, a superdimensionar o efeito de uma “ilusão de realidade” ou de um “ilusionismo na realidade”[4], condição que se assenta como potência sobre a realidade virtual que se cotidianiza em meio à pandemia de Covid-19, mas que já se manifestava esteticamente até mesmo em campanhas de candidatos promovidas por grupos políticos de pseudo-clandestinidade antissistema, é o que tenta minimamente compreender um desejo ou predileção por uma vulgaridade bizarra, de um efeito que suplanta o kitsch, oriunda de uma baixa estética que, a rigor, exibe a violência sob o semblante do espetáculo. Jogos de imagens em que a ficção, facilitada pela popularização do artifício digital da fotografia e do audiovisual, flerta com a não-ficção e produz um efeito de assoberbamento surreal diante dos olhos que tentam acompanhar o nexo tortuoso de sua “narrativa” brutal. 
Essa ficção (ou falsa não-ficção) espetacularizada[5], suspeita, que brada por se apropriar de um real imediato, é a que autoriza popularmente, e sem o rigor ou a prudência artística, o uso do termo “narrativa” sob uma função meramente “política” que objetive destronar o ilusionismo oposto ou inimigo e proposto como realidade. Essa prática, materializada pelo maniqueísmo político atual, que mutuamente tenta “desrealizar” o polo oposto de uma suposta “razão sobre a realidade fabricada”, vale-se, enquanto “narrativa”, de atributos audiovisuais e fotográficos com intenção única, distante de uma historicidade que não ignore o construto da linguagem e da estética literária e artística mais elevada e crítica, aquela que supera a doxa pelo paradoxo e, assim, produz condições mais amplas ao pensamento, à contemplação, ao juízo de gosto estético[6]. Se uma espécie de hiper-realismo advém do atual contexto de produção tecnológica, de amplo e irresistível acesso, aparentemente desresponsabilizado, público acima de qualquer suposta consequência, esse “novo realismo compartilhável” mesmo a contragosto, sintetizado, artificial, sintomaticamente empobrecido de experiência e da arte de narrar[7] beberia da fonte original do hiper-realismo que se mostra, por exemplo, nas esculturas superdimensionadas de Ron Mueck ou nas fotografias ora deformadas, ora macabras, de Gottfried Helnwein?

The Silence of Innocence – the Artist Gottfried Helnwein (2009), de Claudia Schmid

Distante de uma correlação mais literária, que permita um aprofundamento e uma maior mobilização de pensamento de qualquer tipo de corrente artística, o hiper-realismo, que surgiu como um conceito fotográfico de exposição de uma super-realidade na década de 1960, prolongando-se após para a pintura e a escultura, almejava, em última instância, uma reprodução fiel da realidade que, não raras vezes, mobilizava o sobressalto da consciência, o choque da vivência a que uma memória voluntária[8] estaria sempre propensa desde a modernidade. O aprisionamento de uma intenção hiper-realista pelo lugar-comum cotidiano e contemporâneo, que banaliza o real ao invés de superdimensioná-lo por intermédio de uma lente artística, como se pode testemunhar a partir da invasão hacker no encontro de pesquisadores do NECLIT, resulta em um ato de prática violenta, brutal, criminosa, como já apontado, porém que deve ser pensado para além do ato ou para fora do ato, em correspondência com os pressupostos em deslocamento da arte contemporânea exibida em salões de bienais e museus, muitas vezes como intervenção no real, instalando-se jocosamente em espaços públicos como qualquer espaço tende a se tornar a partir de uma pandemia que faz uso de tecnologias inovadoras, mas nem por isso isentas de risco e temeridades. O que se viu, enquanto efeito advindo do ocorrido durante a invasão hacker, foi também uma violência imagética que procura tocar no psicológico sem agredir, de maneira direta, o corpo físico. Um artifício que tenta responder, por baixo, a uma crise da experiência contemporânea ou à falência do contato humano diante do afastamento da realidade e que, no entanto, isento da mediação artística e alocado apenas no suporte tecnológico, aparta-se até mesmo dos preceitos hiper-realistas fundamentados na reprodução em direção a uma pura e improdutiva repetição[9], mais próxima da frieza maquinal e irracional do que de uma possibilidade real de humanização.
Uma análise que se disponha a abordar simbolicamente, portanto sujeita à simbiose dos signos, o que se passou diante dos olhos e demais sentidos durante a invasão hacker promovida covardemente contra um grupo de pesquisadores no dia 10 de julho não se exime da instantaneidade do olhar para o que sucedeu virtualmente e realisticamente na ocasião, a mesma instantaneidade da fotografia tão comumente explorada pelo hiper-realismo, mas também pela lógica mercantil que fetichiza a realidade e banaliza aspectos como a violência. Talvez uma tentativa insuficiente de apreender um real fugidio, pervertido e violentado pelo espaço virtual.


[1] Para uma ideia mais esclarecedora desses argumentos, sugere-se o depoimento do filósofo Massimo Cacciari concedido ao Projeto Krisis.
[2] Sergio Givone, em depoimento para o Projeto Krisis, discorre sobre o “princípio de responsabilidade”, que se enquadra como um princípio, mais do que sobrepujado pela alteridade e pela empatia, de caráter vital dentre a pandemia do Covid-19, ou seja, um princípio de mútua responsabilidade em que todos são responsáveis pelo que acontece em relação aos outros.
[3] O termo “bárbaro”, em ampla acepção, está relacionado a um trajeto histórico que parte da Grécia de Homero, cuja palavra era oriunda de uma onomatopeia usada para descrever a linguagem incompreensível dos carianos do Sudeste da Ásia Menor e que, já naquela época, distinguia os vícios dos bárbaros das virtudes dos gregos. As invasões bárbaras às fronteiras romanas nos séculos IV e V, uma das causas da queda do império, reforçaram traços relacionados ao termo “bárbaro”, como covardia e crueldade, que perduraram como um oposto ao termo “civilizado” até a contemporaneidade. O filósofo francês Jean-François Mattéi realiza um esforço em desconstruir o conceito de “barbárie” na atualidade, segundo Daniel Soczek (Cf. SOCZEK, Daniel. Descontruindo o conceito de “barbárie”. Revista Política & Sociedade do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina, número 3, outubro de 2003, p. 157-162), ao admitir que civilização e barbárie são as duas máscaras, “adversárias e cúmplices, de uma mesma e única humanidade”. Isso significaria aceitar que a “barbárie é substancial, e mesmo consubstancial ao homem”. A barbárie na contemporaneidade, após tantos crimes “bárbaros” contra a humanidade ocorridos ao longo da história, estaria apta a operar sob a égide do positivismo relativista de Auguste Comte – o de que “tudo é relativo, eis o único princípio absoluto do mundo” - e do anarquismo metodológico de Paul Feyerabend, que postula o anything goes, o “vale-tudo”. Assim, a naturalização da violência da barbárie nos dias atuais se encontraria, em certo sentido, “legitimada” frente a uma virtualização dos processos democráticos resultante da diminuição do espaço público, com a sobreposição do privado sobre o público, tornando inevitável o desmantelamento da civilização em barbárie. Um conceito novo e positivo de “barbárie”, como sugeriu Walter Benjamin, que responda ao declínio da experiência dentro das trincheiras do poder econômico e tecnológico, permanece desafiador à perspectiva cultural, filosófica, artística e histórica com vistas à leitura da realidade contemporânea. Cf. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
[4] O termo “ilusionismo” associado a um realismo é desenvolvido por Vera Lúcia Follain de Figueiredo no texto “Novos Realismos, Novos Ilusionismos”, in: MARGATO, Izabel; GOMES, Renato Cordeiro. Novos Realismos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, p. 119-132.
[5] Vera Lúcia Follain Figueiredo afirma que “a ficção, numa sociedade caracterizada pelo alto grau de espetacularização do cotidiano midiatizado e em que as novas técnicas de simulação visual, tornadas possíveis com a informática, permitem antecipar o real físico, reproduzi-lo e manipulá-lo, situa-se, paradoxalmente, num lugar incômodo: parece estar em toda parte, “contaminando” as instâncias do real, mas, por isso mesmo, vem sendo colocada sob suspeita”. Essa citação da autora está relacionada às imagens editadas que circulam como documentário, reality shows, imagens fotográficas ou vídeos nos dias atuais e que naturalizam, livremente, a ilusão não autoral de uma não montagem.
[6] É Immanuel Kant quem irá, em Crítica da faculdade do juízo, fazer ressonar, também considerando a estética artística, um “juízo de gosto em parte intelectualizado”. Para Kant, o juízo de gosto, fundamentado a priori, é esteticamente contemplativo, relacionando-se ao prazer e à imaginação. Cf. KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Trad. Valério Rohden e António Marques. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
[7] Trata-se de uma clara referência aos textos Experiência e Pobreza O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, de Walter Benjamin. Cf. BENJAMIN, Walter, op. cit.
[8] Aqui novamente a referência retoma Walter Benjamin e seu texto Sobre alguns temas em Baudelaire, onde o autor detalha, a partir de Bergson, Freud e Proust, as idiossincrasias da memória voluntária e da memória involuntária, bem como os aspectos que diferenciam a vivência e a experiência. Cf. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.
[9] Raul Antelo, em recente explanação virtual no Youtube intitulada A violência que mantém o direito é uma violência que ameaça, expôs uma noção de historicidade estética que partiu da ideia da representação que perdurou até o século XX, passando pelo conceito de reprodução disseminado em sua geração – citando o célebre texto de Walter Benjamin: A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica -, que acarretou retornos ao real avassaladores e violentos, até culminar em um mundo contemporâneo cuja função do homem pós-histórico, o da simples imagem, é a da repetição. Essa nova forma de reprodução na contemporaneidade, a da inócua repetição, estaria relacionado ao capitalismo narcótico, anestesiante, desumanizador, propenso à servidão voluntária.


como citar:MOURA, Rafael Reginato. “Da invasão hacker ao barbarismo do real, por Rafael Reginato Moura”. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.7, jul. 2020. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209566