La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

“O silêncio criativo”: sobre a poesia de Vittorio Sereni, por Patricia Peterle

  


Vittorio Sereni (Luino 1913 - Milão 1983) é um poeta da chamada “Terceira Geração”, junto com Giorgio Caproni, Attilio Bertolucci, Sandro Penna, entre outros, e é com certeza uma das vozes mais representativas quando o assunto é poesia italiana da segunda metade do século XX. Geração que nasce no início da segunda década do século passado e que tem a primeira idade adulta marcada pela guerra ou, melhor dizendo, pelas diferentes vivências que cada um terá desse acontecimento perturbador.

Aigues mortes (1979), Carlo Mattioli



Contudo, antes de tratar desse fato, que abarca as esferas coletiva e individual, é interessante pensar, não apenas por questões biográficas, mas pela alegoria que aos poucos vai assumindo, na geografia da cidade natal de Sereni. Luino fica na província de Varese, na Lombardia, na margem oriental do Lago Maggiore, e também está muito perto da fronteira com a Suíça. Fronteira[1] não por acaso é o nome de seu primeiro livro de poemas, publicado em 1941. O termo “fronteira” indica, certamente, essa vivência num espaço do “entre”, seja este marcado pela fronteira nacional que separa dois países, Itália e Suíça, seja pela própria topografia desse território às margens do lago. Na obra de Sereni, esse elemento terá desdobramentos para além dessa inicial fisicidade e concretude.[2] Um exemplo é a própria experiência da guerra, vivenciada a partir da distância, pois o poeta é preso em 1943, sendo levado para um campo na Argélia, onde ficará por dois anos. A experiência da guerra, da luta partigiana, da Resistenza, que marca toda uma geração, não é partilhada por ele; o sentimento de “exclusão da história”[3] é, então, o núcleo central dos poemas reunidos em Diario d’Algeria, seu segundo livro, publicado pouco depois do retorno, em 1947. Esse sentimento de estar excluído da história se torna, como aponta Enrico Testa, uma verdadeira chave para interpretar a própria existência como uma prisão, ao lado de uma sensação de não pertencimento. “Non sanno d’esser morti / i morti come noi, / non hanno pace” são versos do Diario citados por Luciano Anceschi em Lirica del Novecento (1953); para o crítico e amigo, Sereni soube encontrar os acentos verdadeiros da condição desses anos de guerra, quando o sofrimento humano descobre uma nova profundidade e uma nova palavra junto com um novo verso. Sereni, que já figurava em Lirici nuovi, chama a atenção de Anceschi por apresentar uma língua objetiva e simbólica – os objetos são também aqui essenciais –, em que a palavra, carregada de reflexão, é afetiva: “uma poesia de objetos que se dissolve numa tênue elegia da memória”.[4]

Verão (1979), Carlo Mattioli


Vittorio Sereni, então, desde seu livro de estreia, tem uma marca, uma escrita que já apresenta certa maturidade e uma grande intensidade. Se de um lado talvez seja possível dizer que Sereni, desde Frontiera, é um grande poeta, de outro, toda essa intensidade não se traduz em prolificidade, no sentido de escrever muito. Ao longo de quatro décadas, ele irá publicar apenas quatro livros de poesia e um volume com suas traduções (principalmente do inglês e do francês), Il musicante di Saint-Merry (1981), para além de alguns contos e textos críticos. Concentração é, portanto, outro termo com o qual podemos pensar a escritura sereniana: concentração do verso (em especial nos primeiros dois livros), concentração da palavra que chega a se corroer, concentração em algumas temáticas como o exílio da existência, a relação com os mortos e a dissolvência e labilidade do eu-lírico, que é central no poema “Paura seconda” de Stella Variabile, último livro de poemas, publicado em 1982, um ano antes de sua morte.
A coletânea Strumenti umani, de 1965, traz a marca de uma década de muitas transformações sociais e de outras obras que caracterizam de alguma forma o panorama cultural italiano, entre as quais: Nel magma de Mario Luzi (1963), Il congedo di un viaggiatore cerimonioso, (1965), o início das filmagens de Gaviões e passarinhos de Pasolini, em 1966, e La beltà di Andrea Zanzotto (1968). Strumenti umani, sem dúvida, é um livro que chama a atenção e que abarca uma série de questões, das reflexões metapoéticas (“I versi”), ao trabalho na fábrica (“Un posto di lavoro”), à guerra (“Dall’Olanda”), incluindo aspectos que fazem parte de determinado cotidiano (“Via Scarlatti”) e também o tema dos mortos (“Il muro”) – já presente nos dois livros anteriores. Nessas diferentes perspectivas há, contudo, algo em comum, que é justamente a experiência. Escritura e experiência fazem parte de uma mesma urdidura neste laboratório. É, com efeito, num texto de 1962, “Il silenzio creativo”, que Sereni afirma que mais do que se perguntar o que é poesia, faz mais sentido tratar de:

um plano de desenvolvimento das emoções que leve a figurar sob um ângulo específico a relação entre experiência e invenção [...] significa evitar na medida do possível fazer também da invenção, dos próprios interiorizados modos inventivos, uma fórmula e um hábito, saber sempre – com o risco de outros silêncios – que o ângulo útil, a relação iluminante nunca é dada, mas deve ser encontrada; e, ao mesmo tempo, colocar-se na condição de melhor aderir ao que há no variado moto da existência. E este é o preço da comunicação.[5]

Para além do fato de, nesse texto, existir um contraste com o hermetismo, o que aqui interessa é pensar nesse “variado moto da existência”, que se traduz na página poética em pluralidade de temas e registros trazidos pelo poeta. A experiência pressupõe o contato, o outro, um perder-se quase do próprio eu, que se vê enlaçado por relações com vozes e presenças outras, mortos ou vivos que sejam. Não é, então, uma mera coincidência que “Pantomima terrestre” ("con quelli che fingono a ogni giro di andare via per sempre / com quelli che fingono a ogni giro di arrivare [...]”)  seja o título de um poema desse volume de 1965. É possível dizer, ainda, que em alguns poemas de Gli strumenti umani se começa a ter uma experiência larval do sujeito, que se concretiza e radicaliza em Stella variabile. Esse caráter larval não incide somente na categoria antes monolítica do eu, que agora passa a ser mais “gasoso”, “vaporoso”, “líquido”, mas também numa questão que é central no século XX: a da linguagem[6], ou melhor, seu traço mortificante, já apontado por Blanchot e Foucault. E é um pouco desse movimento, bastante complexo, que se tem em “Paura seconda”, poema escolhido por Valerio Magrelli para sua antologia Millennium Poetry.

Paura seconda

Niente ha di spavento
la voce che chiama me
proprio me
dalla strada sotto casa
in un’ora di notte:
è un breve risveglio di vento,
una pioggia fuggiasca.
Nel dire il mio nome non enumera
i miei torti, non mi rinfaccia il passato.
Con dolcezza (Vittorio,
Vittorio) mi disarma, arma
contro me stesso me.
Medo segundo

Não há espavento
na voz que chama por mim
justo por mim
da rua perto de casa
em uma hora noturna:
é um breve despertar de vento,
uma chuva fugitiva.
Ao dizer meu nome não enumera
as minhas falhas, não me cobra o passado.
Com doçura (Vittorio,
Vittorio) me desarma, arma
a mim contra mim mesmo.

(Trad. Patricia Peterle)


Natureza morta (1965), Carlo Mattioli

“Paura seconda” faz parte da quinta e última seção de Stella variabile. O título desse curto poema, de uma única estrofe e formado por versos de diferentes medidas, tendentes para as mais breves, pode soar, sim, estranho: “Medo segundo”. O que seria esse medo segundo? Há um primeiro medo? Duas perguntas que logo vem à mente do leitor, depois de certo sentimento de estranhamento. É preciso dizer que a sensação de medo é um sentimento que perpassa pela sua obra de Sereni, o primeiro registro dessa palavra se faz no poema “Dimitrios”, colocado em seguida do famoso “Italiano in Grecia”, em Diario d’Algeria. Depois, no livro de 1965, o termo “paura” volta como título de um poema na seção “Uno sguardo di rimando”, que também acolhe textos emblemáticos como “Viaggio di andata e retorno”, “Ancora sulla strada di Zenna” e “Le ceneri”. O medo é de fato um dos temas serenianos, como o próprio poeta confirma na entrevista de 1982, concedida a Anna Del Bo Boffino, citada por Giulia Raboni.[7] Contudo, o poema inicia de forma coloquial, rotineira, poder-se-ia dizer sem grandes ambições: “Nada de espavento”. Um evento qualquer, mas talvez seja justamente essa “qualqueridade” que chama a atenção:  de um lado traz certa serenidade e de outro anuncia certa estranheza, que só se concretiza realmente no final. Mas há um movimento paradoxal, que também faz parte desse último livro.
O poema pode ser dividido em dois momentos: o primeiro até o verso 7 e o segundo do verso 8 ao último. Na primeira parte, o “eu” ouve uma voz que chama por ele, ela está bem próxima, perto de casa, provavelmente é de madrugada, em plena noite. A hora em que essa voz se faz presente é importante, pois a atmosfera noturna carrega consigo uma série de relações que ficam aqui sugeridas para o leitor. Interessante enfatizar que não é a presença de uma pessoa que está perto de casa, o som é humano, uma vez que é dito “voz”, mas não se sabe ainda de quem. Os traços dessa voz, como fica claro depois da indicação dos dois pontos, é efêmera como o vento, ela passa e desperta. Uma segunda imagem é associada a essa voz, a de uma “chuva fugitiva”. Elementos que corroboram o que foi apontado antes, a saber, essa atmosfera nada concreta, mas sim gasosa e líquida. A voz, seguindo a discussão de Paul Zumthor, entra numa zona do vivido que escapa a fórmulas conceituais e pode somente ser intuída.[8] Nessa primeira parte, ainda, tem um traço bem comum à poesia de Sereni, que permanece também na segunda: trata-se, justamente, do mecanismo da repetição. O pronome pessoal, por exemplo, é repetido duas vezes e colocado numa posição chave, no final do verso; em seguida, no verso 8, ele é retomado com uma pequena variação.

Noturno (1974), Carlo Mattioli
Quando se chega ao conteúdo dessa voz, ou melhor, àquilo que não é dito, outro traço da escritura de Sereni se faz presente, a negação, que é ainda enfatizada pela estrutura do quiasmo nos versos 8 e 9 (“Ao dizer meu nome não enumera /as minhas falhas, não me cobra o passado”). Essa voz que vem de fora é doce, é outra do próprio eu (um eu e um ele), que aqui se escuta, se desdobra, como fica evidenciado pela estrutura parentética “(Vittorio / Vittorio)”[9],  reforçada pelo enjambement que, por sua vez, ecoa na leitura. Ela não cobra nada, não enumera as falhas do passado. No som do vento e da chuva, é ouvido o próprio nome, que perturba, inquieta: um acerto de contas. Tem-se, assim, o peso de um não-dito, como em outros poemas (por exemplo, “Il muro”), uma voz que paranomasticamente “desarma e arma” (ecos de Dante), mostrando uma sensação de estranhamento, de se sentir em exílio de si mesmo, um estar em “trânsito”. O verso final como num movimento circular retorna ao início, com o pronome “mim” em posição final no verso.
O tema da morte ronda nesses versos, que poderiam ser lidos de forma incompleta caso não se fizesse menção aos dois poemas que o antecedem: “Requiem” e, sobretudo, “Paura prima” [Medo primeiro].[10] O que se tem na verdade é um díptico, que poderia ter sido um tríptico se Sereni não tivesse alterado o título de outro poema para “Notturno”, na seção “Traducendo Char”, também de Stella variabile. Diante da morte, a sensação de medo é inevitável e, nesses versos, isso é deixado mais do que explícito. Se em “Paura prima” há a presença de um killer, agora, o que ameaça é uma voz que vem de fora, mas está perto de casa (um eu fora do eu que fala com seu eu; um eu em luta com ele mesmo). Se nos livros anteriores era comum a presença de outros e diferentes interlocutores, reais ou não, em Stella variabile há uma diminuição deles, movimento que dá lugar ao descompasso, ao esgarçamento do eu e, por conseguinte, se chega à imagem de um eu que chega até a lutar com ele mesmo.
Na escritura sereniana, não há nenhum tipo de saída por vias transcendentais, o embate se dá no hic et nunc. Haveria ainda muito a ser dito, mas isso ficará para um ensaio mais longo. O que é importante assinalar é que existe uma “Paura terza”, não escrita por Sereni e sim por Giorgio Caproni.[11] O poema caproniano, escrito em setembro de 1985, foi publicado em Il Conte di Kevenhuller (1986) e retoma ironicamente o texto do amigo falecido no inverno de 1983.

Paura terza

    Una volta sola «Giorgio!
Giorgio!» mi sono chiamato.
    Mi è venuto in mente «Vittorio!
Vittorio!»
                E mi sono allarmato.

Medo Terceiro

    Uma única vez “Giorgio!
Giorgio!” eu me chamei.
    Me veio na cabeça “Vittorio!
Vittorio!”
                E me alarmei.



como citar: PETERLE, Patricia. ““O silêncio criativo”: sobre a poesia de Vittorio Sereni”. In Literatura Italiana Traduzida, v.1., n.7, jul. 2020.Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209578



[1] Um primeiro estudo no Brasil sobre a obra de Sereni é DUARTE, Adriana Cristina Vieira. “Fronteira”: uma introdução a Vittorio Sereni. Dissertação de Mestrado. Programa de Língua, Literatura e Cultura Italiana, Universidade de São Paulo, 2015. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8148/tde-17112015-115719/en.php. Acesso em: 06/07/2020.
[2] Sobre a ideia de “fronteira” na poesia de Sereni ver AGUSTONI, Prisca. “As várias fronteiras de Vittorio Sereni”, in PETERLE, Patricia; GASPARI, Silvana (Orgs.). Arquivos poéticos: desagregação e potencialidades do Novecento italiano. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015, pp. 42-54.
[3] TESTA, Enrico. Cinzas do século XX: três lições sobre a poesia italiana. Organização Patricia Peterle e Silvana de Gaspari. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016.
[4] ANCESCHI, Luciano; ANTONIELLI, Sergio. Lirici del Novecento. Firenze: Vallecchi Editore, 1953, p. C.
[5] SERENI, Vittorio. Poesia e prosa. Org. de Giulia Raboni, introdução de Pier Vincenzo Mengaldo. Milano: Mondadori, 2013, p. 627. Trad. nossa.
[6] Cf. PETERLE, Patricia. no limite da palavra. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016 (especialmente os capítulos dedicados a Vittorio Sereni e Giorgio Caproni).
[7] SERENI, Vittorio. Poesia e prosa. Org. de Giulia Raboni, introdução de Pier Vincenzo Mengaldo. Milano: Mondadori, 2013, p. 25. Trad. nossa.
[8] ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura medieval”. Trad. Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
[9] A questão da autonomeação é tratada no artigo de GRIGNANI, Maria Antonietta. “Nomi di Sereni e Caproni: un’analisi contrastiva, in Il Nome nel testo”, in Atti del VI Convegno internazionale di «Onomastica & Letteratura», Pisa, 2000, pp. 89-1012. Em relação à essa questão, é possível também lembrar que Vittorio Sereni conclui os estudos universitários com uma monografia dedicada a Guido Gozzano. Outro nome importante é o de Giuseppe Ungaretti, principalmente o de Allegria, que será considerado por ele como um segundo pai, mas que, sobretudo, é percebido por Sereni a partir do seu “choque com o onipresente sentido da catástrofe”, como o próprio Sereni afirma no texto escrito por ocasião da morte do poeta mais velho. SERENI, Vittorio. Poesie e prose, op. cit., p. 657.
[10] Uma atenta análise do díptico levaria a um diálogo direto com a tradição nas presenças de Dante e de Petrarca.
[11] Cf. GRIGNANI, Maria Antonietta, op. cit.



Esta postagem é a décima do projeto Valerio Magrelli - Millennium Poetry: Viagem sentimental na poesia italiana, iniciativa promovida pelo Istituto Italiano di Cultura di São Paulo durante esta Pandemia de Covid-19.
“Cruzaremos oito séculos de poesia italiana seguindo um percurso autoral. Exclusivamente para o público do IICSP, graças à colaboração da Editora Emons, o poeta Valerio Magrelli apresenta e ilustra em áudio trechos da própria particularíssima antologia de poesia italiana. A proposta é enriquecida pelas traduções e comentários (literatura-italiana.blogspot.com) em português dos professores Patricia Peterle e Andrea Santurbano da UFSC e Lucia Wataghin da USP.”
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