La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

A poesia de Patrizia Cavalli em tradução, por Cláudia Tavares Alves

 


Patrizia Cavalli (Todi, 1944) é um grande nome da poesia italiana contemporânea. Segundo o filósofo Giorgio Agamben, sua língua talvez seja a mais “fluída, contínua e cotidiana da poesia italiana do século XX”.[1] Seguindo a mesma linha, Alfonso Berardinelli, um dos primeiros críticos literários a reconhecer a importância da poesia contemporânea italiana escrita por mulheres[2], exalta a pungência de Cavalli atribuindo à sua poesia uma voz e uma teatralidade capazes de criar, a partir de modulações da língua cotidiana, uma entonação poética singular[3].

Seu primeiro livro de poemas, Le mie poesie non cambieranno il mondo [As minhas poesias não mudarão o mundo], foi publicado em 1974 e é dedicado à escritora Elsa Morante, amiga e grande incentivadora de sua carreira. Atualmente, este livro compõe a coletânea Poesie (1974-1992) [Poesias (1974-1992)], publicada pela Einaudi, em 1992, na qual estão reunidos ainda o volume Il cielo [O céu] (1981) e os escritos de L'io singolare proprio mio [Meu próprio eu singular] (1992). Nesses poemas, destaca-se a capacidade de sintetizar em poucos versos sentimentos e sensações que nós, leitoras e leitores, reconhecemos de imediato - mas, por pressa ou pela imersão total em nossas rotinas desestimulantes, raramente paramos para nomeá-los. Por isso, junto de escolhas potentes que revelam um tipo de poesia feita para ser declamada em voz alta, Cavalli desloca as rimas tradicionais para o centro dos versos, evocando assim a poesia existente nas brechas dos acontecimentos rotineiros.

Isso não significa escolhas formais frouxas, porém a rigidez estética não pesa sobre as palavras - um gesto rigoroso que poderia desnaturalizar e descaracterizar as sentenças fluídas. Pelo contrário, o encantamento está na leveza e sobretudo no humor das estrofes que se encadeiam, recuperando a forma poética como um instrumento intrínseco à performance. A palavra escrita parece, portanto, ser concebida despretensiosamente, assim como são as palavras ditas em voz alta, mesmo quando memorizadas para serem declamadas. Aliás, nesse sentido, vale conferir a própria Cavalli recitando alguns de seus poemas[4], pois a experiência de ouvi-la atribui som, melodia, cores e nuances à voz que inicialmente apreenderíamos somente pela leitura silenciosa.

Aos seus últimos escritos poéticos, Pigre divinità e pigra sorte [Preguiçosas divindades e preguiçoso destino] (2006) e Datura (2013), soma-se a sua mais recente publicação, Con passi giaponesi [Com passos japoneses] (2019), um conjunto de breves narrativas que escapam a definições de gênero e se aprofundam em investigações literárias na busca por novas possibilidades da escrita performática. A autora, que para além da poesia já havia escrito também textos dramáticos, aventura-se finalmente pela prosa e o efeito alcançado é, mais uma vez, a força que emana de sua própria voz, que não deixa de ser poética mesmo quando é prosaica.

Sua obra, ainda inédita no Brasil, chegará em breve por aqui pela tradução – em que estou trabalhando atualmente – de Os meus poemas não mudarão o mundo, a ser publicada em 2021 pela Edições Jabuticaba. A seguir, apresento uma pequena seleção de poemas entre os diversos livros publicados por Cavalli, acompanhados de suas respectivas traduções.

 

Foto de Dino Ignani

 

E quem poderá dizer ainda

que não tenho coragem, que não ando

entre os outros e que não me apaixono?

Fiquei numa fila por quase

meia hora hoje no correio;

percorri toda a fila passo

a passo, farejei

odores atrozes de machos

de velhos e também de mulheres, senti

mãos tocarem meu rabo me empurrarem

o quadril. Reconheci

a náusea e a deixei lá

onde ela estava, o meu corpo

se encheu de suor, contraí

uma pneumonia. Não se trata de amor

por mim, mas de horror pelos outros

onde eu me reconheço. 

 

E chi potrà più dire

che non ho coraggio, che non vado

fra gli altri e che non mi appassiono?

Ho fatto una fila di quasi

mezz’ora oggi alla posta;

ho percorso tutta la fila passetto

per passetto, ho annusato

gli odori atroci di maschi

di vecchi e anche di donne, ho sentito

mani toccarmi il culo spingermi

il fianco. Ho riconosciuto

la nausea e l’ho lasciata là

dov’era, il mio corpo

si è riempito di sudore, ho sfiorato

una polmonite. Non d’amor di me

si tratta, ma orrore degli altri

dove io mi riconosco.[5]

 

*

 

Não tenho sêmen para espalhar pelo mundo

não posso inundar mictórios nem

colchões. O meu avaro sêmen de mulher

é muito pouco para ofender. O que posso

deixar pelas estradas pelas casas

pelos ventres infecundados? As palavras

aquelas muitíssimas 

mas já não se parecem mais comigo

se esqueceram da fúria

e da maldição, se tornaram donzelas

um pouco mal faladas talvez

mas sempre donzelas.

 

Non ho seme da spargere per il mondo

non posso inondare i pisciatoi né

i materassi. Il mio avaro seme di donna

è troppo poco per offendere. Cosa posso

lasciare nelle strade nelle case

nei ventri infecondati? Le parole

quelle moltissime

ma già non mi assomigliano più

hanno dimenticato la furia

e la maledizione, sono diventate signorine

un po’ malfamate forse

ma sempre signorine.[6]

 

*

 

Este tempo sabático

antes de uma partida, este tempo

roubado do tempo, este tempo não meu

nem dos outros, o tempo da bagagem

e do atraso, este luxo suspenso,

esta rica margem

quando audaz e irresponsável posso

aquilo que nem mesmo os anos me concedem,

onde se apressam os pensamentos mais negligenciados

e são acolhidos, e entre um pijama

e uma camisa se instala majestoso

mas flexível o possível, onde eu poderia

até mesmo te telefonar e me declarar

louca de amor, este único tempo verdadeiro

involuntário que nos é dado

pela graça das partidas, este

que não é nada mais do que uma oração.

 

Questo tempo sabbatico

prima di una partenza, questo tempo

rubato al tempo, questo tempo non mio

né di altri, il tempo della valigia

e del ritardo, questo lusso sospeso,

questo margine ricco,

quando audace e irresponsabile posso

quello che neanche gli anni mi concedono,

dove accorrono i pensieri più negletti

e sono accolti, e tra un pigiama

e una camicia s'insedia maestoso

ma arrendevole il possibile, dove potrei

persino telefonarti e dichiararmi

folle d'amore, questo unico tempo vero

involontario che ci è dato

per grazia di partenze, questo

non è nient'altro che preghiera.[7]

 

*

 

Quero o tétano de volta

na manhã avançada

e a picada da víbora

à tarde na praça,

a meningite

ali pela meia noite

e a poliomielite 

logo ao despertar. 

Quero a minha saúde de volta,

fantasiosa saúde

assaz potente e certa,

aquela que se agitava ao preencher 

o inefável silêncio dos terrores.

 

Rivoglio il tetano

in tarda mattinata

e il morso della vipera

di pomeriggio in piazza,

la meningite

verso mezzanotte

e la poliomielite

subito al risveglio.

Rivoglio la mia salute,

fantasiosa salute

così potente e certa

che si eccitava a riempire

il suo ineffabile silenzio di terrori.[8]

 

*

 

O coração nunca está seguro, por isso,

mesmo que esteja em silêncio, não se gabe

da vitória ou da indiferença.

Honre aquilo que você amou,

ainda que te pareça não amar mais.

Você está ali tranquila? Se sente satisfeita?

Poderia finalmente, depois de anos

de ingloriosa incerteza, de inquietudes e humilhações,

inverter as partes, ser você

aquela que humilha e comanda? Não, não faça isso,

é melhor fingir, finja o amor que sentia

de verdade, finja perfeitamente e vença

a natureza. O amor cansado

é talvez o único perfeito.

 

Il cuore non è mai al sicuro e dunque,

fosse pure in silenzio, non vantarti

della vittoria o dell’indifferenza.

Rendi comunque onore a ciò che hai amato

anche quando ti sembra di non amarlo più.

Te ne stai lì tranquilla? Ti senti soddisfatta?

Potresti finalmente dopo anni

d’ingloriosa incertezza, di smanie e umiliazioni,

rovesciare le parti, essere tu

che umili e che comandi? No, non farlo,

fingi piuttosto, fingi l’amore che sentivi

vero, fingi perfettamente e vinci

la natura. L’amore stanco

forse è l’unico perfetto.[9]

___________________________________

Como citar: ALVES, Cláudia Tavares. "A poesia de Patrizia Cavalli em tradução". In Literatura Italiana Traduzida, v. 1, n. 9, set. 2020. 
Disponível em  https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/213034



[1] “Una breve analisi della lingua di Patrizia Cavalli [...] risulta alla fine, non si sa come, nella lingua forse più fluida, continua e quotidiana della poesia italiana del Novecento.” [Uma breve análise da língua de Patrizia Cavalli […] resulta no final, não se sabe como, na língua talvez mais fluida, contínua e cotidiana da poesia italiana do século XX]. AGAMBEN, Giorgio. “L’antielegia di Patrizia Cavalli”. In. Categorie italiane: studi di poeta e di letteratura. Bari: Editori Laterza, 2010, p. 162.
[2] “Da più di un decennio sostengo con convinzione che il meglio della poesia italiana recente lo hanno scritto e lo scrivono le donne.” [Há mais de uma década afirmo que o melhor da poesia italiana recente foi e é escrito pelas mulheres] BERARDINELLI, Alfonso. “Almeno in poesia la via del futuro era già stata tracciata anni fa in Italia”. In. Il Foglio Quotidiano, 08 de fevereiro de 2020.
[3] Cf. BERARDINELLI, Alfonso. “Il personaggio in poesia”. In. Una città, n. 263, fevereiro de 2020.
[4] Por exemplo, na ocasião em que recebeu o prêmio Città di Recanati, em 2000. Disponível em: <https://youtu.be/Sjn6krxvZIo>. Consultado em: 20/08/2020.
[5] Le mie poesie non cambieranno il mondo. Turim: Einaudi, 1974.
[6] Le mie poesie non cambieranno il mondo. Turim: Einaudi, 1974.
[7] Pigre divinità e pigra sorte. Turim: Einaudi, 2006.
[8] Datura. Turim: Einaudi, 2013.
[9] Datura. Turim: Einaudi, 2013.