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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Cláudia Tavares Alves
Patrizia Cavalli
poesia contemporânea
em
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Patrizia
Cavalli (Todi, 1944) é um grande nome da poesia italiana contemporânea. Segundo
o filósofo Giorgio Agamben, sua língua talvez seja a mais “fluída, contínua e
cotidiana da poesia italiana do século XX”.[1]
Seguindo a mesma linha, Alfonso Berardinelli, um dos primeiros críticos literários
a reconhecer a importância da poesia contemporânea italiana escrita por
mulheres[2],
exalta a pungência de Cavalli atribuindo à sua poesia uma voz e uma
teatralidade capazes de criar, a partir de modulações da língua cotidiana, uma
entonação poética singular[3].
Seu
primeiro livro de poemas, Le mie poesie non cambieranno il mondo [As minhas poesias não mudarão o mundo],
foi publicado em 1974 e é dedicado à escritora Elsa Morante, amiga e grande
incentivadora de sua carreira. Atualmente, este livro compõe a coletânea Poesie
(1974-1992) [Poesias (1974-1992)],
publicada pela Einaudi, em 1992, na qual estão reunidos ainda o volume Il cielo [O céu] (1981) e os escritos de L'io
singolare proprio mio [Meu próprio eu singular] (1992). Nesses poemas,
destaca-se a capacidade de sintetizar em poucos versos sentimentos e sensações
que nós, leitoras e leitores, reconhecemos de imediato - mas, por pressa ou
pela imersão total em nossas rotinas desestimulantes, raramente paramos para
nomeá-los. Por isso, junto de escolhas potentes que revelam um tipo de poesia
feita para ser declamada em voz alta, Cavalli desloca as rimas tradicionais
para o centro dos versos, evocando assim a poesia existente nas brechas dos acontecimentos
rotineiros.
Isso
não significa escolhas formais frouxas, porém a rigidez estética não pesa sobre
as palavras - um gesto rigoroso que poderia desnaturalizar e descaracterizar as
sentenças fluídas. Pelo contrário, o encantamento está na leveza e sobretudo no
humor das estrofes que se encadeiam, recuperando a forma poética como um
instrumento intrínseco à performance. A palavra escrita parece, portanto, ser
concebida despretensiosamente, assim como são as palavras ditas em voz alta, mesmo
quando memorizadas para serem declamadas. Aliás, nesse sentido, vale conferir a
própria Cavalli recitando alguns de seus poemas[4],
pois a experiência de ouvi-la atribui som, melodia, cores e nuances à voz que inicialmente
apreenderíamos somente pela leitura silenciosa.
Aos
seus últimos escritos poéticos, Pigre divinità e pigra sorte [Preguiçosas divindades e preguiçoso
destino] (2006) e Datura (2013), soma-se a sua mais recente publicação,
Con passi giaponesi [Com passos
japoneses] (2019), um conjunto de breves narrativas que escapam a
definições de gênero e se aprofundam em investigações literárias na busca por novas
possibilidades da escrita performática. A autora, que para além da poesia já
havia escrito também textos dramáticos, aventura-se finalmente pela prosa e o
efeito alcançado é, mais uma vez, a força que emana de sua própria voz, que não
deixa de ser poética mesmo quando é prosaica.
Sua
obra, ainda inédita no Brasil, chegará em breve por aqui pela tradução – em que
estou trabalhando atualmente – de Os meus poemas não mudarão o mundo, a
ser publicada em 2021 pela Edições Jabuticaba. A seguir, apresento uma pequena
seleção de poemas entre os diversos livros publicados por Cavalli, acompanhados
de suas respectivas traduções.
![]() |
Foto de Dino Ignani |
E quem poderá dizer
ainda
que não tenho
coragem, que não ando
entre os outros e que
não me apaixono?
Fiquei numa fila por
quase
meia hora hoje no
correio;
percorri toda a fila
passo
a passo, farejei
odores atrozes de
machos
de velhos e também de
mulheres, senti
mãos tocarem meu rabo
me empurrarem
o quadril. Reconheci
a náusea e a deixei
lá
onde ela estava, o
meu corpo
se encheu de suor,
contraí
uma pneumonia. Não se
trata de amor
por mim, mas de
horror pelos outros
onde
eu me reconheço.
E
chi potrà più dire
che
non ho coraggio, che non vado
fra
gli altri e che non mi appassiono?
Ho
fatto una fila di quasi
mezz’ora
oggi alla posta;
ho
percorso tutta la fila passetto
per
passetto, ho annusato
gli
odori atroci di maschi
di
vecchi e anche di donne, ho sentito
mani
toccarmi il culo spingermi
il
fianco. Ho riconosciuto
la
nausea e l’ho lasciata là
dov’era,
il mio corpo
si
è riempito di sudore, ho sfiorato
una
polmonite. Non d’amor di me
si
tratta, ma orrore degli altri
dove io mi riconosco.[5]
*
Não tenho sêmen para espalhar pelo mundo
não posso inundar mictórios nem
colchões. O meu avaro sêmen de mulher
é muito pouco para ofender. O que posso
deixar pelas estradas pelas casas
pelos ventres infecundados? As palavras
aquelas muitíssimas
mas já não se parecem mais comigo
se esqueceram da fúria
e da maldição, se tornaram donzelas
um pouco mal faladas talvez
mas sempre donzelas.
Non
ho seme da spargere per il mondo
non
posso inondare i pisciatoi né
i
materassi. Il mio avaro seme di donna
è
troppo poco per offendere. Cosa posso
lasciare
nelle strade nelle case
nei
ventri infecondati? Le parole
quelle
moltissime
ma
già non mi assomigliano più
hanno
dimenticato la furia
e
la maledizione, sono diventate signorine
un
po’ malfamate forse
ma
sempre signorine.[6]
*
Este tempo sabático
antes de uma partida, este tempo
roubado do tempo, este tempo não meu
nem dos outros, o tempo da bagagem
e do atraso, este luxo suspenso,
esta rica margem
quando audaz e irresponsável posso
aquilo que nem mesmo os anos me concedem,
onde se apressam os pensamentos mais negligenciados
e são acolhidos, e entre um pijama
e uma camisa se instala majestoso
mas flexível o possível, onde eu poderia
até mesmo te telefonar e me declarar
louca de amor, este único tempo verdadeiro
involuntário que nos é dado
pela graça das partidas, este
que não é nada mais do que uma oração.
Questo tempo sabbatico
prima di una partenza, questo tempo
rubato al tempo, questo tempo non mio
né di altri, il tempo della valigia
e del ritardo, questo lusso sospeso,
questo margine ricco,
quando audace e irresponsabile posso
quello che neanche gli anni mi concedono,
dove accorrono i pensieri più negletti
e sono accolti, e tra un pigiama
e una camicia s'insedia maestoso
ma arrendevole il possibile, dove potrei
persino telefonarti e dichiararmi
folle d'amore, questo unico tempo vero
involontario che ci è dato
per grazia di partenze, questo
non è nient'altro che preghiera.[7]
*
Quero o tétano de volta
na manhã avançada
e a picada da víbora
à tarde na praça,
a meningite
ali pela meia noite
e a poliomielite
logo ao despertar.
Quero a minha saúde de volta,
fantasiosa saúde
assaz potente e certa,
aquela que se agitava ao preencher
o inefável silêncio dos terrores.
Rivoglio il tetano
in tarda mattinata
e il morso della vipera
di pomeriggio in piazza,
la meningite
verso mezzanotte
e la poliomielite
subito al risveglio.
Rivoglio la mia salute,
fantasiosa salute
così potente e certa
che si eccitava a riempire
il suo ineffabile silenzio di terrori.[8]
*
O coração nunca está seguro, por isso,
mesmo que esteja em silêncio, não se gabe
da vitória ou da indiferença.
Honre aquilo que você amou,
ainda que te pareça não amar mais.
Você está ali tranquila? Se sente satisfeita?
Poderia finalmente, depois de anos
de ingloriosa incerteza, de inquietudes e humilhações,
inverter as partes, ser você
aquela que humilha e comanda? Não, não faça isso,
é melhor fingir, finja o amor que sentia
de verdade, finja perfeitamente e vença
a natureza. O amor cansado
é talvez o único perfeito.
Il cuore non è mai al sicuro e
dunque,
fosse pure in silenzio, non
vantarti
della vittoria o
dell’indifferenza.
Rendi comunque onore a ciò che
hai amato
anche quando ti sembra di non
amarlo più.
Te ne stai lì tranquilla? Ti
senti soddisfatta?
Potresti finalmente dopo anni
d’ingloriosa incertezza, di
smanie e umiliazioni,
rovesciare le parti, essere tu
che umili e che comandi? No,
non farlo,
fingi piuttosto, fingi l’amore
che sentivi
vero, fingi perfettamente e
vinci
la natura. L’amore stanco
forse è l’unico perfetto.[9]
___________________________________
Como citar: ALVES, Cláudia Tavares. "A poesia de Patrizia Cavalli em tradução". In Literatura Italiana Traduzida, v. 1, n. 9, set. 2020.
Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/213034
[1] “Una breve analisi della lingua di Patrizia Cavalli [...] risulta alla
fine, non si sa come, nella lingua forse più fluida, continua e quotidiana
della poesia italiana del Novecento.” [Uma breve análise da língua de Patrizia Cavalli […] resulta
no final, não se sabe como, na língua talvez mais fluida, contínua e cotidiana
da poesia italiana do século XX]. AGAMBEN, Giorgio. “L’antielegia di Patrizia Cavalli”. In.
Categorie italiane: studi di poeta e di letteratura. Bari: Editori
Laterza, 2010, p. 162.
[2] “Da più di un decennio sostengo con convinzione che il meglio della
poesia italiana recente lo hanno scritto e lo scrivono le donne.” [Há mais de uma década afirmo que o
melhor da poesia italiana recente foi e é escrito pelas mulheres] BERARDINELLI,
Alfonso. “Almeno in poesia la via del futuro era già stata
tracciata anni fa in Italia”. In. Il Foglio Quotidiano, 08 de fevereiro
de 2020.
[3] Cf.
BERARDINELLI, Alfonso. “Il
personaggio in poesia”. In. Una città, n. 263, fevereiro de 2020.
[4] Por exemplo, na ocasião em que
recebeu o prêmio Città di Recanati, em 2000. Disponível em:
<https://youtu.be/Sjn6krxvZIo>. Consultado em: 20/08/2020.
[5] Le mie poesie non cambieranno il mondo. Turim:
Einaudi, 1974.
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