La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

A poesia tem a função de levar a comunicação ao seu limite último: Entrevista com Valerio Magrelli, por Elena Santi e Patricia Peterle


 

Abstrato (1964) - Antonio Bandeira (1922-1967)

Dando continuidade às publicações dos trechos de entrevistas com poetas italianos, publicadas no volume Vozes: cinco décadas de poesia italiana[1], que saiu em 2017 pela Editora Comunità e organizado por Patricia Peterle e Elena Santi, propomos hoje algumas reflexões a partir das afirmações de Valerio Magrelli (1957). Figura central no panorama literário italiano contemporâneo, Magrelli trabalha na encruzilhada entre escrita poética, ensaio, e tradução, além disso, é professor de literatura francesa. A escrita do outro é fundamental para Magrelli: em 1993 assumiu a direção da coleção da editora Einaudi Scrittori tradotti da scrittori [Escritores traduzidos porr escritores] e, em 1996,  ganhou o importante prêmio de tradução da República Italiana. Sua estreia poética se dá em 1980 com a coletânea Ora serrata retinae, sua produção a partir de então é longa e complexa.

Poeta erudito e profundamente irônico, Magrelli progressivamente desenvolve uma escrita poética que vai na direção da prosa e da fragmentação. Experiências e experimentações se sobrepõem, a língua da sua poesia explora terrenos diferentes. E, por trás de tudo isso, há uma grande reflexão, sobre a língua, a palavra, o espaço que a palavra poética pode e deve ocupar, sempre com um olhar para a sua dimensão ética. Gostaríamos de lembrar que Valerio Magrelli foi hóspede, em outubro de 2019, do Congresso da Associação Brasileira de Professores de Italiano – ABPI na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e, pouco depois, participou de um encontro em Florianópolis, organizado pelo Núcleo de Estudos Contemporâneos de Literatura Italiana (NECLIT) em que foi apresentado o volume 66 poemas, edição bilíngue de uma seleção de poemas de Magrelli com a tradução para o português feita por Patricia Peterle e Lucia Wataghin[2]. Escrevem as tradutoras no posfácio do volume: “Magrelli tem, assim, em comum com uma vasta tendência de poetas nossos contemporâneos, a escolha tipicamente anti-lírica pelo léxico médio-alto, impoético da prosa, mas inervado em ritmo e sintaxe refinados e complexas” (p. 190). A palavra de Magrelli, então, se coloca nessa encruzilhada entre um léxico mais prosaico, se afastando do tom alto e poético, mas não abre mão de certa complexidade, mostrando todo o trabalho de labor limae que subjaz sua criação poética.

Assinalamos também o projeto do Istituto Italiano di Cultura di San Paolo, em que Magrelli, por meio de vídeos publicados no canal do Istituto, propõe uma viagem pela literatura italiana a partir do seu livro Millennium Poetry: viaggio sentimentale nella poesia italiana.[3] Nesse projeto, graças à colaboração com a editora Emons, que publicou o e-book de Millenium poetry. Viaggio sentimentale nella poesia italiana (2018)[4], é proposto um itinerário poético de autor, através de oito séculos de literatura italiana.[5]

A seguir, apresentamos um trecho da entrevista que Magrelli, realizada em janeiro de 2015, em que ressoa de maneira muito contundente o horror e a incredulidade pelo ataque à sede do jornal Charlie Hebdo. A reflexão sobre o gesto poético, necessariamente, se mistura àquela sobre o papel do poeta na sociedade. Frente às ameaças à liberdade de expressão, a poesia não pode aceitar compromisso, e mais do que nunca precisa se posicionar, não renunciar à própria voz e à palavra. Por sua vez, essa palavra, tão inflacionada na linguagem comum, encontra na poesia um possível terreno de transformação, sendo dobrada, trabalhada, dilatada, deformada, nos versos dos poemas. Para antecipar uma expressão de Magrelli, é esse papel “antagônico” da linguagem poética que permite novas aberturas, novas possibilidades. A total liberdade da poesia e sua capacidade de colocar em cheque as estruturas da linguagem fazem dela, para Magrelli, um instrumento importantíssimo, para pensar o mundo, a sociedade, a arte, as relações humanas.

 

A poesia tem a função de levar a comunicação ao seu limite último

 

Entrevista de Valerio Magrelli

(Vozes, p. 334)

 

Vozes: O que significa ser poeta hoje? O que é um poeta? O poeta é um nostálgico cantor da palavra já desgastada e obsoleta? É necessariamente um opositor do mundo?

VM: Ontem houve a chacina dos jornalistas de Charlie Hebdo (ndr: referência ao ataque à sede do jornal Charlie Hebdo em 7 de janeiro 2015). Apesar do horror do gesto, houve quem sustentasse que os escritores devem cuidar apenas de sua escritura. Demência. Agora, mais do que nunca, um escritor deve falar. Deve fazê-lo para defender aquilo que é mais seu: a liberdade da palavra. Quem mais deveria fazê-lo, se não ele? Um homem de negócios, um político, deve defender apenas a liberdade dos números – e como demonstra a Casta italiana, sabe defendê-la muito bem.

 Vozes: O elemento essencial para um poeta é a palavra, a matéria-prima a ser buscada, trabalhada e depois “fixada” na página em branco. Quais relações possui com a palavra? E também com a língua? Enfim, como pode ser definida a sua língua?

VM: Se trata, antes de tudo, de tomar conhecimento da natureza fundamentalmente antagonista da linguagem poética. Antagonista, porém, não diretamente, na mecânica relação com o poder, mas em relação ao emprego cotidiano, instrumental, “prosaico” da linguagem. Mesmo quando cada coisa parece já decretar o seu fim, a poesia não se apaga, pelo contrário, tira força própria de tal iminente ameaça. Um anticorpo verbal.

A coisa pode se apresentar em outros termos. Se a escritura é a ligação que une autor e leitor, se cada sociedade se estabelece com o partilhamento de uma linguagem, a poesia tem a função de levar a comunicação ao seu limite último. Como foi afirmado, ela coloca a linguagem em um estado de alerta. Ela coincide, em suma, com o máximo de liberdade e de alarme, já que sua liberdade reside exatamente num contínuo alarme da palavra.

Quem disse isso muito bem foi Iosif Brodsky: “A poesia não é uma subdivisão da arte, mas alguma coisa a mais. Se aquilo que nos distingue das outras espécies é a palavra, a poesia, que é a operação linguística suprema, constitui a nossa meta antropológica e, de fato, genética. Quem considera a poesia um modo de passar o tempo, uma leitura, comete, portanto, um crime antropológico, em primeiro lugar contra si mesmo”.

 Vozes: Quais poetas ou escritores (italianos ou estrangeiros) operam em sua escritura? E em que modo se constroem essas relações de leitura, escritura e poéticas?

VM: A atividade poética, este “fazer” por antonomásia, representa uma forma de resistência linguística contra cada suposto uso “inocente” da linguagem. Por isso, quem insiste em compor versos, deverá procurar devolver à palavra o brilho do cunho que vem cotidianamente ofuscado.

A poesia exige, portanto, uma aproximação reativa, capaz de subtrair os materiais verbais à mercantilização cotidiana. É exatamente isso que a torna tão complexa, empenhada, saudável, “ética”. É isso que explica porque, como a fênix árabe, ela renasce de suas próprias cinzas, e tem por origem a chama. Para dizer de outra forma, recorrendo a uma imagem muito menos sublime, quanto mais a linguagem se deteriora, maior é a necessidade de sua manutenção poética. E de manutenção, hoje, tem bastante necessidade.

Então, para recuperar Mallarmé, diria que o poeta é um mantenedor dos materiais verbais, como ensinam.


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Como citar: PETERLE, P.; SANTI, E. A poesia tem a função de levar a comunicação ao seu limite último:  Entrevista com Valerio Magrelli. In Literatura Italiana Traduzida, v. 1, n. 9, set. 2020.  Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/212680


[1] PETERLE, Patricia; SANTI, Elena. Vozes: cinco décadas de poesia italiana. Rio de Janeiro: Editora Comunità, 2017. Encontram-se disponíveis, na Revista de Literatura Italiana Traduzida, as seguintes entrevistas a poetas italianos, todas reunidas no volume Vozes: cinco décadas de poesia italiana: PETERLE, Patricia; SANTI, Elena. A poesia é uma palavra que mantém consigo também o silêncio – entrevista com Mariangela Gualtieri. In Literatura Italiana traduzida, v.1, n. 6, jun. 2020. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209784. PETERLE, Patricia; SANTI, Elena. Gesto de amor, não como ato subversivo – entrevista com Fabio Franzin. In Revista de Literatura Italiana traduzida, v.1, n.5, mai. 2020. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209826. PETERLE, Patricia; SANTI, Elena. Nas palavras sobrevive ... um rastro do passado – entrevista com Fabio Pusterla. In: Literatura Italiana Traduzida, v.1, n. 4, abr. 2020. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209881; PETERLE, Patricia; SANTI, Elena. A palavra é sempre um objeto: entrevista com Valentino Zeichen. In Literatura Italiana traduzida, v.1, n. 8, ago. 2020. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/210069
[2] MAGRELLI, Valerio. 66 poemas. Tradução de Patricia Peterle e Lucia Wataghin. São Paulo: Rafael Copetti Editor, 2019.
[3] MAGRELLI, Valerio. Millennium Poetry: viaggio sentimentale nella poesia italiana. Bologna: Il Mulino, 2015.
[4] MAGRELLI, Valerio. Millennium Poetry: viaggio sentimentale nella poesia italiana. Roma: Emons Edizioni, 2018.
[5] Para maiores informações sobre o projeto acessar a página do Istituto Italiano di Cultura di San Paolo: https://iicsanpaolo.esteri.it/iic_sanpaolo/it/gli_eventi/calendario/2020/04/millenium-poetry-viaggio-sentimentale.html.