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Epifanias e traumas infantis na construção de jovens psicologias criminosas nos romances de Roberto Saviano e Ferréz, por Gesualdo Maffia.
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Ferréz
Gesualdo Maffia
Roberto Saviano
em
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Introdução
Nestas páginas apresento uma primeira reflexão resultante da
leitura dos livros La paranza dei bambini
(2016), do escritor e jornalista italiano Roberto Saviano e Manual prático do ódio (2003) e Capão pecado (2000), do escritor
brasileiro Ferréz[1],
analisando como os autores pensam em
justificar ou reconstruir e apresentar de forma crível as experiências de vida,
os traumas, as mensagens criadoras de valores, de crenças, de sentido
existencial para crianças que estão se tornando adultas (e para adultos
marcados por eventos vivenciados na infância) em um contexto violento ou
gerador de violência nos espaços urbanos contemporâneos.
La paranza conta a história da constituição de
uma quadrilha de criminosos por um grupo de crianças e adolescentes que querem
chegar rapidamente ao poder nas ruas do bairro napolitano de Forcella, usando a
violência e a intimidação, conforme a lógica e a prática da organização
criminosa local, a Camorra. Esse
livro tem uma continuação Il bacio feroce
(O beijo feroz), que fecha
tragicamente a parábola dessa ascensão.
Os dois romances de Ferréz, que se passam também na periferia
urbana, a de São Paulo, mostram o cotidiano de violência e de luta pela
sobrevivência e a autoafirmação no qual crescem jovens brasileiros das classes
populares no Brasil contemporâneo.
Violência e melancolia:
definição e delimitação dos conceitos.
Procuro analisar esses romances a partir de definições de
conceitos presentes na linguagem comum, mas que precisam ser colocados com
clareza para ser usados no campo literário.
Para a definição de violência, considero bem fundamentada,
adaptada para a análise literária, a reflexão de Jaime Ginzburg, tanto pela
delimitação do conceito que ele propõe ao leitor, quanto pela associação deste
conceito ao de “melancolia”.
Escreve Ginzburg:
A violência é entendida aqui como construção material
e histórica. Não se trata de uma manifestação que seja entendida fora de
referências no tempo e no espaço. Ela é produzida por seres humanos, de acordo
com suas condições concretas de existência. [...] Há uma perspectiva
fundamental para discutir a regularidade do comportamento violento: a
histórica. É necessário, antes de tentar estabelecer uma diferenciação
maniqueísta entre seres humanos violentos e não violentos, observar a
capacidade de destruição coletiva demonstrada no passado.[2]
A escolha de historicizar o conceito de violência, talvez nos
permita alcançar um nível de distanciamento e de profundidade na análise que
possa nos proteger de uma atitude maniqueísta devido às situações e aos feitos
violentos narrados nesses livros. Por isso, vou utilizar também as
considerações do historiador francês Robert Muchembled, que dedicou décadas à
pesquisa histórica sobre a violência, especialmente da Europa entre a idade
média e moderna. Entre as muitas sugestões que ele apresenta no seu denso
estudo sobre a história da violência nos últimos 700 anos, chamou minha atenção
uma afirmação baseada na impossibilidade de considerar a violência como “um
fenômeno puramente inato”. A violência
Distingue-se da agressividade, que é uma
potencialidade da violência cuja força destruidora pode ser inibida pelas
civilizações – se assim o decidirem e se encontrarem uma adesão suficiente de
interesses para impor os seus pontos de vista. No início do século XXI, por
exemplo, os jovens de condição humilde têm muito menos a perder que os filhos
de família, cuja reputação e plano de carreira podem ser arruinados se forem
perseguidos pela justiça após ter ferido ou assassinado alguém. Para os
primeiros, pelo contrário, um sentimento de injustiça ou de grandes frustrações
enfraquece os constrangimentos morais e éticos relativos à proibição de verter
sangue humano, que as instâncias de socialização inculcam a todos.[3]
O foco, o contexto da análise desta pesquisa é colocado em
uma dimensão de pequenos grupos geográfica e historicamente definidos, na
cidade de Nápoles e na São Paulo do começo do século XXI. Eles, mesmo que de
forma diferente, compartilham deste enfraquecimento dos valores proclamados
pelas “instâncias de socialização” que proíbem ou não incentivam o uso da
violência.
Jaime Ginzburg nos auxilia também na delimitação do tipo de
violência a ser considerada na pesquisa:
“Aqui a violência é entendida como uma situação, agenciada
por um ser humano ou um grupo de seres humanos, capaz de produzir danos físicos
em outro ser humano ou outro grupo de seres humanos. Estou entendendo a
violência como um fenômeno que inclui um deliberado dano corporal”.[4]
O conceito de “melancolia”, apresentado também por Ginzburg,
complica essa visão material do conceito de violência. Aproximando-a do “luto”,
a melancolia é vista como “resultado de uma perda”, “uma perda afetiva”[5] de
uma pessoa ou grupo, ou de uma época da própria vida (a infância, por exemplo).
O comportamento melancólico é caracterizado por um
mal-estar com relação à realidade. [...] A realidade é observada como um campo
de desencantamento e desconfiança. Contemplativo, o sujeito não se conforma com
a perda. Embora objetivamente possa ter sido informado do que ocorreu, não
aceita a situação, sendo seu objeto de amor insubstituível por qualquer outro.[6]
A impossibilidade de fazer sentido por qualquer coisa mostra
como a condição melancólica possa ser associada a uma “atitude autodestrutiva”.[7]
Nascer já “na
realidade”
Começando a análise, proponho uma primeira observação sobre o
fato que o percurso de passagem da infância pela adolescência até a idade
adulta, se pensado como linear e mais ou menos demorado, mostra-se claramente
idealizado e impossível nos contextos vivenciados pelos jovens protagonistas
desses romances.
Tomamos como exemplo alguns trechos do livro de Saviano. A um
certo ponto o narrador, muito presente na narração contextualizando e
explicando (às vezes apenas com comentários breves ou frases de efeito, mas
também com digressões mais amplas que mostram a sensibilidade de jornalista
investigativo, preocupado que o leitor entenda bem as conexões entre os eventos
e os personagens) a realidade napolitana em que agem os jovens paranzini, comenta que em Nápoles as
crianças nascem diretamente na realidade, que não é nada fácil viver nas ruas e
necessita ter logo muita esperteza e vontade de aprender os truques para se dar
bem, ganhar dinheiro e ser respeitado. Um menino chamado Biscoitinho explica
para o líder da paranza, Nicolas, que
presta muita atenção e leva a sua fala a sério, qual é o método inventado por ele
e os seus amiguinhos (uma verdadeira “miniparanza”) para ganhar dinheiro. A
ideia é encenar uma situação de briga que envolve crianças ciganas e outras que
brincam em um parquinho, supervisionadas pelas mães, as avós, as babás. Essas
últimas aceitam pagar Biscoitinho e os seus amigos para que eles ajudem a
manter a tranquilidade dos filhos e dos netos que querem brincar sem ser
incomodados pelos pequenos ciganos. Obviamente é toda uma armação que envolve
Biscoitinho e as outras crianças, que fazem bagunça e barulho para extorquir
dinheiro facilmente de adultos que aceitam pagar como uma forma de “pedágio”,
abusiva mas inevitável, para que os seus pequenos possam brincar e curtir uma
tarde ao ar livre. Biscoitinho quer se mostrar esperto diante de Nicolas,
demonstrar com um exemplo concreto como eles são já capazes de trabalhar e
ganhar dinheiro, sem precisar dos adultos, apenas com a própria organização e
desenvoltura. Além de muita cara de pau:
A miniparanza se aproximava do carrossel com muito
estardalhaço: tiravam os menorezinhos do balanço e espantavam as outras
crianças, que caíam de bruços no chão, assustando-as e fazendo-as chorar. As
mamães e as babás gritavam com eles (...)
Em poucos minutos, o parquinho inteiro se transformou
em uma poeirada confusa e barulhenta, uma bagunça em que não se entendia mais
nada. Depois Biscoitinho, adotando uma expressão respeitosa que lhe caía muito
mal, interferiu para restabelecer a calma:
– Dona, dona, cês não se preocupe, mando eles embora
daqui, mando eles embora daqui! – e começou a gritar para os (...) ciganos. –
Cai fora, cai fora! Ciganos de merda! Some daqui!
O narrador avalia os feitos e as atitudes dessas crianças,
declarando a normalidade de tudo isso em Nápoles, onde tanto Biscoitinho,
quanto os seus amigos (menores que ele) Mijãozinho e Oreste Teletabbi
Tinham a fisionomia das crianças que já conheciam
tudo, falavam de sexo e de armas: nenhum adulto, desde que eles tinham nascido,
acreditava que houvesse verdades, fatos e comportamentos que não pudessem
ouvir. Em Nápoles não existem fases de crescimento: já se nasce na realidade,
dentro dela, você não a descobre aos poucos.[8]
As crianças e os adolescentes do bairro Capão Redondo,
retratadas literariamente a partir do verdadeiro universo de vida e de ação de
Ferréz, também são expostas a todo tipo de abuso, de crueldade psicológica, de
violência física crua e gratuita, acostumando-se facilmente a não ter
esperança, não ter projetos, em uma realidade de profunda desigualdade de vida
e oportunidades. O narrador do Manual
afirma incisivamente que “vítimas” e “executores” de assaltos muitas vezes têm
“a mesma idade, a única diferença entre os jovens que roubavam e os roubados é
o muro social que divide o país”.[9]
E muito mais amargas e raivosas são as palavras retomadas em Capão Pecado, sobre o futuro dos
pequenos naquele que, para Stefan Zweig, foi muitos anos atrás o “país do
futuro”:
Uma vez ouvi que as crianças são o futuro, concordo,
mas não as daqui, jogadas na rua, criadas pela rotina, o pobre fica na rua sem
perspectiva, enquanto o futuro está nas universidades aprendendo a ser o
“produto” certo para o “mercado” certo, se a gente fracassar sobra a vala, se o
boy fracassar vai administrar o patrimônio da família, sempre sobra uma vaga
pra ele em alguma empresa.[10]
Considerações por meio das quais o posicionamento engajado, a
crítica social do narrador (e do autor) ficam bem mais evidentes que em
Saviano, onde parece prevalecer, neste caso específico, uma reflexão de cunho
antropológico.
Voltando ao começo do texto, a pergunta que levantei era: os
narradores têm interesse em mostrar algumas experiências de vida ou traumas
anteriores, que justifiquem a atitude violenta (efetiva ou possível) dos
protagonistas?
Saviano parece nos mostrar que a psicologia de Nicolas, a sua
futura ascensão como chefe de quadrilha criminosa, não dependa tanto de traumas
caracterizados pelo medo, sofrimento, por alguma forma de bloqueio das emoções,
de sociopatia, de perda considerada como irreparável e geradora de angústia e
raiva. Há experiências que Nicolas vivenciou quando era criança que mostram,
pelo contrário, algo que ele já possuía na própria interioridade. Experiências
diretas do sangue derramado e da auto afirmação violenta no contexto social não
marcam, mas sim revelam o que Nicolas tinha de potencial para se tornar um dia
um camorrista. Um expediente
narrativo usado por Saviano para ressaltar esse dado da formação e da revelação
da personalidade de Nicolas, é uma lembrança da mãe do garoto, mais pensativa
quando o filho começa a ter problemas com a justiça. A relação entre mãe e
filho, ou seja entre Mena e Nicolas, é uma das mais cuidadosamente
desenvolvidas do romance de Saviano. Uma conexão muito forte entre os dois que
mostra tanto um conflito quanto, até um certo ponto, uma aceitação da escolha
do filho e uma verdadeira cumplicidade com as consequências sociais da
afirmação bem sucedida de Nicolas no mundo do crime. Começando a perceber algo
que podemos definir como a verdadeira natureza ou predisposição do garoto, ela
lembra subitamente, enquanto trabalha, de uma situação vivenciada quando ele
era muito pequeno, em um domingo a passeio pela cidade com toda a família: “Ela
tivera então uma sensação ruim que só agora podia relacionar com os maus
pensamentos”. Nicolas é muito vivaz, o pai mal consegue segura-lo, e de repente
acontece um fato de sangue: um homicídio da camorra,
que transforma a praça pública em uma cena de caça, resolvida com frieza pelo
homicida que entra em um restaurante, atira e, depois, sai para atirar em uma
pessoa que tinha conseguido escapar e se esconder entre os carros estacionados.
Ouvidos os tiros dentro do local,
Mena deixa o carrinho com o marido e agarra Nicolas
pela gola da camiseta. Sente certa dificuldade ao segurá-lo. Ninguém abandona o
posto, como naquela brincadeira de estátua, em que se deve ficar plantado sem
se mexer quando um amigo te toca.
Quando o atirador mata o outro homem perto de um carro e vai
embora, essa brincadeira não se sustenta mais, e começa outra: Nicolas quer
ver.
Mena sente que Nicolas faz força para ir adiante.
Quando o homem que atirou desaparece, Nicolas se solta da mão de Mena e corre
na direção do sedan estacionado. “Tem sangue, tem sangue”, diz em voz alta,
indicando um riozinho que sai de lá de baixo, e nesse momento se põe de joelhos
e observa o que os outros não veem. Mena corre para afastá-lo, puxando-o pela
camiseta listrada. “Não tem sangue nenhum”, diz o pai, “é geleia.” Nicolas não
está ouvindo, quer ver o morto. A mãe o leva embora com dificuldade. Sente que
a sua família está, sem querer, se transformando na verdadeira protagonista
daquela cena. O sangue, cúmplice do leve declive da rua, corre abundante. Mena
só é capaz de empurrar o menininho para longe, aos trancos e tropeções, mas sem
conseguir tirar dele aquela curiosidade sem medo, aquela brincadeira.
Essa lembrança dá arrepio, Mena não quer pensar no assunto,
não quer pensar no que está se tornando o seu filho: com certeza ele não é
feito para a vida humilde de trabalho na sua loja e “talvez esteja bem onde
está”.[11]
Voltando aos romances de Ferréz, podemos também encontrar exemplos de lembranças que marcam vários personagens que protagonizam as histórias contadas. Às vezes são poucas palavras, são referências mínimas que pretendem apenas deixar o leitor imaginando quais traumas, quais feridas psicológicas afetem a personalidade dos futuros adultos envolvidos. Mas em alguns casos, Ferréz decide se deter mais e mostrar os fatos que moldaram esses jovens, que alimentam a raiva e o ódio individual e social que legitima o uso da violência nas relações cotidianas ou ocasionalmente. Não por acaso ele escolhe se deter sobre questões diferentes, sobre situações que afetam a autoestima das crianças, que mostram ao leitor o porquê esse “muro social” que citei anteriormente é tão persistente e se encontra cravado nas pessoas, nas suas emoções e nos seus pensamentos.
No Manual, Regis se
abandona várias vezes às lembranças, como também aos sonhos de olhos abertos
sobre o seu futuro no interior de São Paulo, longe das tensões, dos perigos e
das amizades interesseiras do mundo do crime urbano. As lembranças da sua
infância são tristes, marcadas por um (na época ainda despercebido) senso de
humilhação, mostram as dificuldades materiais de uma família pobre, o que
significa ter que trabalhar a serviço de famílias burguesas que não escondem o
senso de superioridade e de distanciamento social em relação aos colaboradores
domésticos, empregados nas suas casas, onde ele muitas vezes estava presente,
sem ter como ficar com alguém enquanto a mãe trabalhava: “Quantas casas ela
limpou, em quantas casas ele ficou com ela, só acompanhando a limpeza, tinha
manteiga na geladeira, jurava que tinha visto, mas o que a patroa de sua mãe
colocava em seu pão era tutano do osso derretido na frigideira”. É Regis homem
que, juntando as peças, mistura as suas sensações com as que a mãe deveria ter
provado, lembrando com ternura como “apesar de todo o sofrimento ela era a mãe
perfeita”. Mas a ternura pela mãe abre o caminho para outra lembrança, que
parece gritar mais forte e alimentar toda a raiva e a crueldade que Regis deve
usar como combustível na sua vida adulta de criminoso conhecido e temido no seu
bairro.
A patroa da mãe de Régis lhe disse uma coisa que ficou
com ele esse tempo todo, e ele guarda como o começo de sua revolta, como o
começo de todo o ódio que nutria por quem tinha o que ele sempre quis ter:
dinheiro. Um dia, durante uma conversa entre a patroa e sua mãe, a patroa
perguntou de que bairro eles eram, sua mãe disse o nome do bairro, a patroa
passou a mão na cabeça do pequeno e disse:
–
Então é esse pivete que um dia vai crescer e vir roubar minha casa?
Régis não entendeu a piada, nem sua mãe entendeu o que
a patroa quis dizer, mas imitou a patroa na risada, a patroa ria que se acabava
e a mãe de Régis tentava acompanhar aquela que lhe pagava o salário todo mês,
que sustentava sua família, afinal a patroa era tão estudada que deveria estar
certa de achar graça em seu filho talvez ser um futuro marginal.[12]
Em Capão pecado Rael representa, pelo contrário, o garoto que quer ficar longe de encrencas, que não quer se tornar criminoso. Ele adora ler, trabalha e se esforça para melhorar a própria vida e sair da condição de pobreza da família, ele quer criar a sua própria família um dia e curti-la nas horas de folga. Mas ele também está mergulhado em um contexto gerador de ódio, de inveja, de estados depressivos, que normaliza a violência e as mortes dos jovens do seu bairro, amigos e vizinhos. A marginalidade, a falta de respeito, de reconhecimento da dignidade do outro estão inscritos, às vezes, nas letras miúdas da parte traseira de um simples cartão de Natal, enviado pela empresa do pai de Rael:
O conteúdo do envelope era um cartão de Natal. Todos
pensaram juntos, a firma se importa com o Zé, com certeza ele é muito especial.
Seu Zé colocou o cartão na árvore e foi dormir, acompanhado de toda a família.
(...) Mas Rael era muito curioso, e não conseguia dormir. Algo o incomodava.
Levantou-se lentamente, acendeu a luz, foi até a
árvore, pegou o cartão e resolveu ler, pois quando seu
pai olhava o cartão, ele só estava fingindo entender o escrito, pois tinha
vergonha de ficar dizendo que era analfabeto.
Rael
leu o cartão:
“Um Feliz Natal e que seja feliz, você e toda a
família, é o que nós da METALCO desejamos a todos nossos funcionários, Amor
& Paz!”
E Rael continuou a observar o cartão, notou que atrás
havia letrinhas minúsculas, e, curioso, as leu. “Cartão comprado de associações
beneficentes com efeito de abate no imposto de renda.”
Era
Rael sábio e entendeu aquilo.
Era
Zé Pedro humilde e dormia tranqüilo.
Era
mais uma família comum.
Era
um Natal de paz.
O narrador remarca como esse fato, com o passar do tempo, “se
tornou algo insignificante” na vida de Rael, se comparado com a experiência
direta da morte, os lutos pelos amigos perdidos que naturalizam o inferno no
Capão Redondo. Eventos traumáticos com os quais ele tem que se acostumar,
seguindo em frente para não ser o próximo e ter algo melhor na própria vida.
Suas perdas eram constantes e aparentemente
intermináveis: o primeiro amigo a morrer lhe causou um baque e tanto, mas a
morte dos outros dois fora menos desgastante, afinal Rael estava crescendo. A
necessidade de roupas e de um material melhor para a escola o fez começar a
trabalhar numa padaria. Nos fins de semana, ele fazia curso de datilografia no
mutirão cultural.[13]
Um olhar geral sobre as
experiências marcantes, traumáticas, reveladoras da futura personalidade dos
protagonistas dos romances de Saviano e Ferréz, faz pensar em uma significativa
diferença de intensidade entre os dois contextos narrados. Enquanto as crianças
e adolescentes de Saviano vivenciam situações que são como um ou dois tiros de
revólver na barriga, as representadas por Ferréz parecem receber e ter que
aguentar todo um carregador de metralhadora disparado à queima roupa.
_____________________
Como citar: MAFFIA, Gesualdo. "Epifanias e traumas infantis na construção de jovens psicologias criminosas nos romances de Roberto Saviano e Ferréz". In "Literatura Italiana Traduzida", v. 1, n. 9, set. 2020.
Disponível em https://repositorio.ufsc.br/ handle/123456789/213128
[1] SAVIANO, Roberto. La paranza dei bambini. Milão: Feltrinelli, 2016 (ed. brasileira: Os meninos de Nápoles. Conquistando a cidade - Volume 1. Trad. Solange Pinheiro. São Paulo:
Companhia Das Letras, 2019); FERRÉZ. Capão
pecado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. ID. Manual prático do ódio. São Paulo: Planeta, 2014.
[2] GINZBURG, Jaime. Literatura,
violência e melancolia. Campinas: Autores Associados, 2013, pp. 8-9.
[3] MUCHEMBLED, Robert. “A violência é inata?”. In: Uma história da violência. Do final da Idade
Média aos nossos dias. Lisboa: Edições 70, 2014.
[4] GINZBURG, Jaime. Op. cit.,
p. 11.
[5] Idem.
[6] Ibidem, p. 12.
[7] Ibidem.
[8] SAVIANO, Roberto. Os
meninos de Nápoles. Op. cit., pp. 107-08.
[9] FERRÉZ. “Cap. 2. Quem é não comenta”. In Manual prático do ódio. Op. cit.
[10] FERRÉZ. Capão pecado.
Op. cit., p. 133.
[11] SAVIANO, Roberto. Os
meninos de Nápoles. Op. cit., pp. 51-53.
[12] FERRÉZ. “Cap. 2. Quem é não comenta”. Op. cit.
[13] FERRÉZ. Capão pecado.
Op. cit., p. 18.
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