La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Epifanias e traumas infantis na construção de jovens psicologias criminosas nos romances de Roberto Saviano e Ferréz, por Gesualdo Maffia.

 


 

Introdução
 
Nestas páginas apresento uma primeira reflexão resultante da leitura dos livros La paranza dei bambini (2016), do escritor e jornalista italiano Roberto Saviano e Manual prático do ódio (2003) e Capão pecado (2000), do escritor brasileiro Ferréz[1], analisando  como os autores pensam em justificar ou reconstruir e apresentar de forma crível as experiências de vida, os traumas, as mensagens criadoras de valores, de crenças, de sentido existencial para crianças que estão se tornando adultas (e para adultos marcados por eventos vivenciados na infância) em um contexto violento ou gerador de violência nos espaços urbanos contemporâneos.
La paranza conta a história da constituição de uma quadrilha de criminosos por um grupo de crianças e adolescentes que querem chegar rapidamente ao poder nas ruas do bairro napolitano de Forcella, usando a violência e a intimidação, conforme a lógica e a prática da organização criminosa local, a Camorra. Esse livro tem uma continuação Il bacio feroce (O beijo feroz), que fecha tragicamente a parábola dessa ascensão.
Os dois romances de Ferréz, que se passam também na periferia urbana, a de São Paulo, mostram o cotidiano de violência e de luta pela sobrevivência e a autoafirmação no qual crescem jovens brasileiros das classes populares no Brasil contemporâneo.
 
Violência e melancolia: definição e delimitação dos conceitos.
 
Procuro analisar esses romances a partir de definições de conceitos presentes na linguagem comum, mas que precisam ser colocados com clareza para ser usados no campo literário.
Para a definição de violência, considero bem fundamentada, adaptada para a análise literária, a reflexão de Jaime Ginzburg, tanto pela delimitação do conceito que ele propõe ao leitor, quanto pela associação deste conceito ao de “melancolia”.
Escreve Ginzburg:
 
A violência é entendida aqui como construção material e histórica. Não se trata de uma manifestação que seja entendida fora de referências no tempo e no espaço. Ela é produzida por seres humanos, de acordo com suas condições concretas de existência. [...] Há uma perspectiva fundamental para discutir a regularidade do comportamento violento: a histórica. É necessário, antes de tentar estabelecer uma diferenciação maniqueísta entre seres humanos violentos e não violentos, observar a capacidade de destruição coletiva demonstrada no passado.[2]
 
A escolha de historicizar o conceito de violência, talvez nos permita alcançar um nível de distanciamento e de profundidade na análise que possa nos proteger de uma atitude maniqueísta devido às situações e aos feitos violentos narrados nesses livros. Por isso, vou utilizar também as considerações do historiador francês Robert Muchembled, que dedicou décadas à pesquisa histórica sobre a violência, especialmente da Europa entre a idade média e moderna. Entre as muitas sugestões que ele apresenta no seu denso estudo sobre a história da violência nos últimos 700 anos, chamou minha atenção uma afirmação baseada na impossibilidade de considerar a violência como “um fenômeno puramente inato”. A violência
 
Distingue-se da agressividade, que é uma potencialidade da violência cuja força destruidora pode ser inibida pelas civilizações – se assim o decidirem e se encontrarem uma adesão suficiente de interesses para impor os seus pontos de vista. No início do século XXI, por exemplo, os jovens de condição humilde têm muito menos a perder que os filhos de família, cuja reputação e plano de carreira podem ser arruinados se forem perseguidos pela justiça após ter ferido ou assassinado alguém. Para os primeiros, pelo contrário, um sentimento de injustiça ou de grandes frustrações enfraquece os constrangimentos morais e éticos relativos à proibição de verter sangue humano, que as instâncias de socialização inculcam a todos.[3]
 
O foco, o contexto da análise desta pesquisa é colocado em uma dimensão de pequenos grupos geográfica e historicamente definidos, na cidade de Nápoles e na São Paulo do começo do século XXI. Eles, mesmo que de forma diferente, compartilham deste enfraquecimento dos valores proclamados pelas “instâncias de socialização” que proíbem ou não incentivam o uso da violência.
Jaime Ginzburg nos auxilia também na delimitação do tipo de violência a ser considerada na pesquisa:
“Aqui a violência é entendida como uma situação, agenciada por um ser humano ou um grupo de seres humanos, capaz de produzir danos físicos em outro ser humano ou outro grupo de seres humanos. Estou entendendo a violência como um fenômeno que inclui um deliberado dano corporal”.[4]

O conceito de “melancolia”, apresentado também por Ginzburg, complica essa visão material do conceito de violência. Aproximando-a do “luto”, a melancolia é vista como “resultado de uma perda”, “uma perda afetiva”[5] de uma pessoa ou grupo, ou de uma época da própria vida (a infância, por exemplo).
 
O comportamento melancólico é caracterizado por um mal-estar com relação à realidade. [...] A realidade é observada como um campo de desencantamento e desconfiança. Contemplativo, o sujeito não se conforma com a perda. Embora objetivamente possa ter sido informado do que ocorreu, não aceita a situação, sendo seu objeto de amor insubstituível por qualquer outro.[6]
 
A impossibilidade de fazer sentido por qualquer coisa mostra como a condição melancólica possa ser associada a uma “atitude autodestrutiva”.[7]
 
Nascer já “na realidade”
 
Começando a análise, proponho uma primeira observação sobre o fato que o percurso de passagem da infância pela adolescência até a idade adulta, se pensado como linear e mais ou menos demorado, mostra-se claramente idealizado e impossível nos contextos vivenciados pelos jovens protagonistas desses romances.

Tomamos como exemplo alguns trechos do livro de Saviano. A um certo ponto o narrador, muito presente na narração contextualizando e explicando (às vezes apenas com comentários breves ou frases de efeito, mas também com digressões mais amplas que mostram a sensibilidade de jornalista investigativo, preocupado que o leitor entenda bem as conexões entre os eventos e os personagens) a realidade napolitana em que agem os jovens paranzini, comenta que em Nápoles as crianças nascem diretamente na realidade, que não é nada fácil viver nas ruas e necessita ter logo muita esperteza e vontade de aprender os truques para se dar bem, ganhar dinheiro e ser respeitado. Um menino chamado Biscoitinho explica para o líder da paranza, Nicolas, que presta muita atenção e leva a sua fala a sério, qual é o método inventado por ele e os seus amiguinhos (uma verdadeira “miniparanza”) para ganhar dinheiro. A ideia é encenar uma situação de briga que envolve crianças ciganas e outras que brincam em um parquinho, supervisionadas pelas mães, as avós, as babás. Essas últimas aceitam pagar Biscoitinho e os seus amigos para que eles ajudem a manter a tranquilidade dos filhos e dos netos que querem brincar sem ser incomodados pelos pequenos ciganos. Obviamente é toda uma armação que envolve Biscoitinho e as outras crianças, que fazem bagunça e barulho para extorquir dinheiro facilmente de adultos que aceitam pagar como uma forma de “pedágio”, abusiva mas inevitável, para que os seus pequenos possam brincar e curtir uma tarde ao ar livre. Biscoitinho quer se mostrar esperto diante de Nicolas, demonstrar com um exemplo concreto como eles são já capazes de trabalhar e ganhar dinheiro, sem precisar dos adultos, apenas com a própria organização e desenvoltura. Além de muita cara de pau:
 
A miniparanza se aproximava do carrossel com muito estardalhaço: tiravam os menorezinhos do balanço e espantavam as outras crianças, que caíam de bruços no chão, assustando-as e fazendo-as chorar. As mamães e as babás gritavam com eles (...)
Em poucos minutos, o parquinho inteiro se transformou em uma poeirada confusa e barulhenta, uma bagunça em que não se entendia mais nada. Depois Biscoitinho, adotando uma expressão respeitosa que lhe caía muito mal, interferiu para restabelecer a calma:

– Dona, dona, cês não se preocupe, mando eles embora daqui, mando eles embora daqui! – e começou a gritar para os (...) ciganos. – Cai fora, cai fora! Ciganos de merda! Some daqui!

 
O narrador avalia os feitos e as atitudes dessas crianças, declarando a normalidade de tudo isso em Nápoles, onde tanto Biscoitinho, quanto os seus amigos (menores que ele) Mijãozinho e Oreste Teletabbi
 
Tinham a fisionomia das crianças que já conheciam tudo, falavam de sexo e de armas: nenhum adulto, desde que eles tinham nascido, acreditava que houvesse verdades, fatos e comportamentos que não pudessem ouvir. Em Nápoles não existem fases de crescimento: já se nasce na realidade, dentro dela, você não a descobre aos poucos.[8]
 
As crianças e os adolescentes do bairro Capão Redondo, retratadas literariamente a partir do verdadeiro universo de vida e de ação de Ferréz, também são expostas a todo tipo de abuso, de crueldade psicológica, de violência física crua e gratuita, acostumando-se facilmente a não ter esperança, não ter projetos, em uma realidade de profunda desigualdade de vida e oportunidades. O narrador do Manual afirma incisivamente que “vítimas” e “executores” de assaltos muitas vezes têm “a mesma idade, a única diferença entre os jovens que roubavam e os roubados é o muro social que divide o país”.[9]
E muito mais amargas e raivosas são as palavras retomadas em Capão Pecado, sobre o futuro dos pequenos naquele que, para Stefan Zweig, foi muitos anos atrás o “país do futuro”:
 
Uma vez ouvi que as crianças são o futuro, concordo, mas não as daqui, jogadas na rua, criadas pela rotina, o pobre fica na rua sem perspectiva, enquanto o futuro está nas universidades aprendendo a ser o “produto” certo para o “mercado” certo, se a gente fracassar sobra a vala, se o boy fracassar vai administrar o patrimônio da família, sempre sobra uma vaga pra ele em alguma empresa.[10]
 
Considerações por meio das quais o posicionamento engajado, a crítica social do narrador (e do autor) ficam bem mais evidentes que em Saviano, onde parece prevalecer, neste caso específico, uma reflexão de cunho antropológico.
Voltando ao começo do texto, a pergunta que levantei era: os narradores têm interesse em mostrar algumas experiências de vida ou traumas anteriores, que justifiquem a atitude violenta (efetiva ou possível) dos protagonistas?
Saviano parece nos mostrar que a psicologia de Nicolas, a sua futura ascensão como chefe de quadrilha criminosa, não dependa tanto de traumas caracterizados pelo medo, sofrimento, por alguma forma de bloqueio das emoções, de sociopatia, de perda considerada como irreparável e geradora de angústia e raiva. Há experiências que Nicolas vivenciou quando era criança que mostram, pelo contrário, algo que ele já possuía na própria interioridade. Experiências diretas do sangue derramado e da auto afirmação violenta no contexto social não marcam, mas sim revelam o que Nicolas tinha de potencial para se tornar um dia um camorrista. Um expediente narrativo usado por Saviano para ressaltar esse dado da formação e da revelação da personalidade de Nicolas, é uma lembrança da mãe do garoto, mais pensativa quando o filho começa a ter problemas com a justiça. A relação entre mãe e filho, ou seja entre Mena e Nicolas, é uma das mais cuidadosamente desenvolvidas do romance de Saviano. Uma conexão muito forte entre os dois que mostra tanto um conflito quanto, até um certo ponto, uma aceitação da escolha do filho e uma verdadeira cumplicidade com as consequências sociais da afirmação bem sucedida de Nicolas no mundo do crime. Começando a perceber algo que podemos definir como a verdadeira natureza ou predisposição do garoto, ela lembra subitamente, enquanto trabalha, de uma situação vivenciada quando ele era muito pequeno, em um domingo a passeio pela cidade com toda a família: “Ela tivera então uma sensação ruim que só agora podia relacionar com os maus pensamentos”. Nicolas é muito vivaz, o pai mal consegue segura-lo, e de repente acontece um fato de sangue: um homicídio da camorra, que transforma a praça pública em uma cena de caça, resolvida com frieza pelo homicida que entra em um restaurante, atira e, depois, sai para atirar em uma pessoa que tinha conseguido escapar e se esconder entre os carros estacionados. Ouvidos os tiros dentro do local,
 
Mena deixa o carrinho com o marido e agarra Nicolas pela gola da camiseta. Sente certa dificuldade ao segurá-lo. Ninguém abandona o posto, como naquela brincadeira de estátua, em que se deve ficar plantado sem se mexer quando um amigo te toca.
 
Quando o atirador mata o outro homem perto de um carro e vai embora, essa brincadeira não se sustenta mais, e começa outra: Nicolas quer ver.
 
Mena sente que Nicolas faz força para ir adiante. Quando o homem que atirou desaparece, Nicolas se solta da mão de Mena e corre na direção do sedan estacionado. “Tem sangue, tem sangue”, diz em voz alta, indicando um riozinho que sai de lá de baixo, e nesse momento se põe de joelhos e observa o que os outros não veem. Mena corre para afastá-lo, puxando-o pela camiseta listrada. “Não tem sangue nenhum”, diz o pai, “é geleia.” Nicolas não está ouvindo, quer ver o morto. A mãe o leva embora com dificuldade. Sente que a sua família está, sem querer, se transformando na verdadeira protagonista daquela cena. O sangue, cúmplice do leve declive da rua, corre abundante. Mena só é capaz de empurrar o menininho para longe, aos trancos e tropeções, mas sem conseguir tirar dele aquela curiosidade sem medo, aquela brincadeira.
 
Essa lembrança dá arrepio, Mena não quer pensar no assunto, não quer pensar no que está se tornando o seu filho: com certeza ele não é feito para a vida humilde de trabalho na sua loja e “talvez esteja bem onde está”.[11]

Voltando aos romances de Ferréz, podemos também encontrar exemplos de lembranças que marcam vários personagens que protagonizam as histórias contadas. Às vezes são poucas palavras, são referências mínimas que pretendem apenas deixar o leitor imaginando quais traumas, quais feridas psicológicas afetem a personalidade dos futuros adultos envolvidos. Mas em alguns casos, Ferréz decide se deter mais e mostrar os fatos que moldaram esses jovens, que alimentam a raiva e o ódio individual e social que legitima o uso da violência nas relações cotidianas ou ocasionalmente. Não por acaso ele escolhe se deter sobre questões diferentes, sobre situações que afetam a autoestima das crianças, que mostram ao leitor o porquê esse “muro social” que citei anteriormente é tão persistente e se encontra cravado nas pessoas, nas suas emoções e nos seus pensamentos.
No Manual, Regis se abandona várias vezes às lembranças, como também aos sonhos de olhos abertos sobre o seu futuro no interior de São Paulo, longe das tensões, dos perigos e das amizades interesseiras do mundo do crime urbano. As lembranças da sua infância são tristes, marcadas por um (na época ainda despercebido) senso de humilhação, mostram as dificuldades materiais de uma família pobre, o que significa ter que trabalhar a serviço de famílias burguesas que não escondem o senso de superioridade e de distanciamento social em relação aos colaboradores domésticos, empregados nas suas casas, onde ele muitas vezes estava presente, sem ter como ficar com alguém enquanto a mãe trabalhava: “Quantas casas ela limpou, em quantas casas ele ficou com ela, só acompanhando a limpeza, tinha manteiga na geladeira, jurava que tinha visto, mas o que a patroa de sua mãe colocava em seu pão era tutano do osso derretido na frigideira”. É Regis homem que, juntando as peças, mistura as suas sensações com as que a mãe deveria ter provado, lembrando com ternura como “apesar de todo o sofrimento ela era a mãe perfeita”. Mas a ternura pela mãe abre o caminho para outra lembrança, que parece gritar mais forte e alimentar toda a raiva e a crueldade que Regis deve usar como combustível na sua vida adulta de criminoso conhecido e temido no seu bairro.

 

A patroa da mãe de Régis lhe disse uma coisa que ficou com ele esse tempo todo, e ele guarda como o começo de sua revolta, como o começo de todo o ódio que nutria por quem tinha o que ele sempre quis ter: dinheiro. Um dia, durante uma conversa entre a patroa e sua mãe, a patroa perguntou de que bairro eles eram, sua mãe disse o nome do bairro, a patroa passou a mão na cabeça do pequeno e disse:

– Então é esse pivete que um dia vai crescer e vir roubar minha casa?

Régis não entendeu a piada, nem sua mãe entendeu o que a patroa quis dizer, mas imitou a patroa na risada, a patroa ria que se acabava e a mãe de Régis tentava acompanhar aquela que lhe pagava o salário todo mês, que sustentava sua família, afinal a patroa era tão estudada que deveria estar certa de achar graça em seu filho talvez ser um futuro marginal.[12]

 

Em Capão pecado Rael representa, pelo contrário, o garoto que quer ficar longe de encrencas, que não quer se tornar criminoso. Ele adora ler, trabalha e se esforça para melhorar a própria vida e sair da condição de pobreza da família, ele quer criar a sua própria família um dia e curti-la nas horas de folga. Mas ele também está mergulhado em um contexto gerador de ódio, de inveja, de estados depressivos, que normaliza a violência e as mortes dos jovens do seu bairro, amigos e vizinhos. A marginalidade, a falta de respeito, de reconhecimento da dignidade do outro estão inscritos, às vezes, nas letras miúdas da parte traseira de um simples cartão de Natal, enviado pela empresa do pai de Rael:
 

O conteúdo do envelope era um cartão de Natal. Todos pensaram juntos, a firma se importa com o Zé, com certeza ele é muito especial. Seu Zé colocou o cartão na árvore e foi dormir, acompanhado de toda a família. (...) Mas Rael era muito curioso, e não conseguia dormir. Algo o incomodava. Levantou-se lentamente, acendeu a luz, foi até a

árvore, pegou o cartão e resolveu ler, pois quando seu pai olhava o cartão, ele só estava fingindo entender o escrito, pois tinha vergonha de ficar dizendo que era analfabeto.
Rael leu o cartão:
“Um Feliz Natal e que seja feliz, você e toda a família, é o que nós da METALCO desejamos a todos nossos funcionários, Amor & Paz!”
E Rael continuou a observar o cartão, notou que atrás havia letrinhas minúsculas, e, curioso, as leu. “Cartão comprado de associações beneficentes com efeito de abate no imposto de renda.”
Era Rael sábio e entendeu aquilo.
Era Zé Pedro humilde e dormia tranqüilo.
Era mais uma família comum.
Era um Natal de paz.
 
O narrador remarca como esse fato, com o passar do tempo, “se tornou algo insignificante” na vida de Rael, se comparado com a experiência direta da morte, os lutos pelos amigos perdidos que naturalizam o inferno no Capão Redondo. Eventos traumáticos com os quais ele tem que se acostumar, seguindo em frente para não ser o próximo e ter algo melhor na própria vida.
 
Suas perdas eram constantes e aparentemente intermináveis: o primeiro amigo a morrer lhe causou um baque e tanto, mas a morte dos outros dois fora menos desgastante, afinal Rael estava crescendo. A necessidade de roupas e de um material melhor para a escola o fez começar a trabalhar numa padaria. Nos fins de semana, ele fazia curso de datilografia no mutirão cultural.[13]

 

Um olhar geral sobre as experiências marcantes, traumáticas, reveladoras da futura personalidade dos protagonistas dos romances de Saviano e Ferréz, faz pensar em uma significativa diferença de intensidade entre os dois contextos narrados. Enquanto as crianças e adolescentes de Saviano vivenciam situações que são como um ou dois tiros de revólver na barriga, as representadas por Ferréz parecem receber e ter que aguentar todo um carregador de metralhadora disparado à queima roupa.

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Como citar: MAFFIA, Gesualdo. "Epifanias e traumas infantis na construção de jovens psicologias criminosas nos romances de Roberto Saviano e Ferréz". In "Literatura Italiana Traduzida", v. 1, n. 9, set. 2020. 

Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/213128


[1] SAVIANO, Roberto. La paranza dei bambini. Milão: Feltrinelli, 2016 (ed. brasileira: Os meninos de Nápoles. Conquistando a cidade - Volume 1. Trad. Solange Pinheiro. São Paulo: Companhia Das Letras, 2019); FERRÉZ. Capão pecado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. ID. Manual prático do ódio. São Paulo: Planeta, 2014.
[2] GINZBURG, Jaime. Literatura, violência e melancolia. Campinas: Autores Associados, 2013, pp. 8-9.
[3] MUCHEMBLED, Robert. “A violência é inata?”. In: Uma história da violência. Do final da Idade Média aos nossos dias. Lisboa: Edições 70, 2014.
[4] GINZBURG, Jaime. Op. cit., p. 11.
[5] Idem.
[6] Ibidem, p. 12.
[7] Ibidem.
[8] SAVIANO, Roberto. Os meninos de Nápoles. Op. cit., pp. 107-08.
[9] FERRÉZ. “Cap. 2. Quem é não comenta”. In Manual prático do ódio. Op. cit.
[10] FERRÉZ. Capão pecado. Op. cit., p. 133.
[11] SAVIANO, Roberto. Os meninos de Nápoles. Op. cit., pp. 51-53.
[12] FERRÉZ. “Cap. 2. Quem é não comenta”. Op. cit.
[13] FERRÉZ. Capão pecado. Op. cit., p. 18.