La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

O caminho trágico para saber quão verdadeiro é Deus, por Juan Terenzi.

 

Felix Nussbaum (1904-1944) - Triumph des Todes (1944)


     Sergio Givone, professor de estética na Universidade de Florença, publica em junho de 2018 Quant’è vero Dio. Perché non possiamo fare a meno della religione [Quão verdadeiro é Deus. Por que não podemos prescindir da religião]. Um livro que se detém em temas afins aos que ele vem desenvolvendo ao longo de sua prolífica produção, tais como o niilismo, o nada e um novo pensamento sobre o trágico[1], trazendo-nos também uma discussão renovada sobre a religião.

Givone inicia o seu prefácio com um questionamento de caráter negativo acerca de Deus, já que, por um lado, a ciência o consideraria “uma hipótese não necessária”[2]; enquanto, por outro, teríamos a sempre repetida frase nietzschiana segundo a qual “Deus morreu”[3]. É com esta perspectiva que entraremos na leitura de Quant’è vero Dio, obra dividida em sete capítulos que irão transitar pelos mais variados percursos filosóficos e literários, levando-nos de Pascal a Nietzsche, das cartas de Paulo a Kierkegaard, de Kant a Hegel, sem descurar de Luigi Pareyson, pensador importante nos anos de formação de Givone.

Um dos pontos nevrálgicos do livro encontra-se sobretudo na análise da literatura do escritor russo Fiodor Dostoievski, autor estudado a fundo por Givone em várias etapas de seu pensamento, e do qual poderemos desfrutar camadas novas de leitura. Givone sustenta, seguindo a leitura de Dostoievski, que se Deus sai de cena, o homem passa a ocupar um lugar exagerado, em que é imagem e semelhança de si mesmo; e que se Deus existe, ele é uma palavra de verdade, a luz que provém da linguagem, é o Lógos que era no princípio e estava com Deus e era Deus.[4] As últimas palavras do Prefácio dizem que ter fé em Deus seria atribuir um sentido ao mundo, ao menos um sentido último.

O primeiro capítulo, cujo título impacta o leitor, pois a indagação se debruça sobre aquilo que diz respeito a cada um de nós: “A vida tem sentido?”, será norteado e terá o seu conteúdo argumentativo disparado por três definições elaboradas por três autores. A primeira delas nos é fornecida pelo filósofo britânico – do campo da lógica – Whitehead, que, sem medir palavras, lança-nos na cara que a vida é “Unfortunately life is an offensive (schiaffo, na tradução fornecida por Givone) against the repetitious mechanism of the universe” [Infelizmente a vida é um ataque frontal contra o mecanismo repetitivo do universo] (1933, p. 103). As outras duas afirmações sobre a vida nos são fornecidas por dois autores franceses, o escritor Albert Camus e o filósofo Henri Bergson. Diz Camus que a vida é uma revolta contra o mecanismo repetitivo da vida (1951, p. 192), enquanto Bergson afirma que a vida é uma refutação do mecanismo repetitivo do universo (1889, p. 78)[5].

São ressaltadas essas três definições para mostrar que o que existe por trás dessa semelhança é que a lei da causalidade – ou o mecanismo repetitivo ressaltado nessas três definições – não seria a única à disposição do homem. Sendo assim, Givone discorre que, se a vida é como algo que contraria o princípio repetitivo do universo, ela estaria, então, associada à outra face do ser, a saber, o lado escuro e regido pela arbitrariedade irracional e ilógica. A discussão se alonga e Kant também é convidado ao debate, uma vez que ele não estaria de acordo com a conclusão provisória de que a vida seria um mero acaso, pois, para ele, o mundo fenomênico e o mundo noumênico seriam a mesma coisa.

A questão sobre o sentido da vida ganha contornos dramáticos quando Givone menciona Nietzsche e o seu “no princípio era o sem sentido”. Essa discussão de caráter ontológico percorrerá todo o capítulo, passando também por uma reflexão polêmica e discutível sobre a religião e sobre como ela deveria ser definida[6]. Um deleite para quem se compraz nessas sendas escuras e de resoluções abertas, pois que sentido há em estarmos aqui e não alhures, aqui, neste mundo, neste tempo e neste espaço? – indaga o autor.[7]

O capítulo seguinte, “Lei e Amor”, centra sua discussão sobre o judaísmo e o cristianismo, mostrando como o cristianismo refuta a sua raiz judaica, enquanto o judaísmo não reconhece o cristianismo como herdeiro. Paulo de Tarso entra em cena, saímos do século XIX e XX abordados no capítulo de abertura, e retrocedemos quase dois mil anos, chegando nos primeiros anos do cristianismo primitivo. Mas será em Hegel e em sua imersão na noção de trágico que Givone se deterá até o final do capítulo[8], dizendo que o destino da religião é trágico, seja ela religião do Amor – Deus é Amor – no sentido de reconciliar, recompor, reunir – para o cristianismo – seja religião da Lei – Deus é Lei para o judaísmo –, não obstante, a própria religião é capaz de sanar e religar as contradições (bem e mal, teísmo e ateísmo, etc.). Givone desenvolve a sua argumentação levando em consideração o sistema filosófico de Hegel, que foi levado a cabo, por exemplo, nas páginas da Fenomenologia do Espírito, do qual extrai com mais intensidade a problemática apresentada nesse capítulo.

Em “Um pensamento de outros mundos”, somos convidados a entrar no mundo dostoievskiano, destacando que, para o escritor russo, há apenas duas alternativas: ou acreditamos na ressurreição de Jesus para dar sentido à nossa vida ou um niilismo radical se apresentaria. A dramaticidade persiste, as páginas que lemos estão carregadas de uma potente discussão, pois Dostoievski pode ser lido com Paulo de Tarso (novamente o lapso temporal passa despercebido). Nesse movimento, Givone nos leva da Rússia do século XIX para a Roma do século I. Para refletir sobre como a religião é abordada pelo escritor russo – principalmente a questão do niilismo em Ivan Karamazov, Givone nomeia dois leitores da obra de Dostoievski: Nikolai Berdiaev e Pareyson. Como grande leitor de sua obra, Givone não duvida de que, nos romances de Dostoievski, Cristo se apresenta entre os homens[9]. Claro que a figura do Anticristo não poderia faltar, e aqui Givone salienta especialmente o contexto histórico do século XIX, detendo-se na definição dada pelo filósofo, poeta e teólogo Vladimiri Soloviov em seu livro A história do Anticristo (1900), que, entre outras questões, explora o tema do mal: “O anticristo busca realizar na terra a mensagem de Cristo, mensagem de amor pelo homem, sem acreditar na ressurreição.”[10].

A abordagem da poesia e especificamente da linguagem ocorre no capítulo “Contemplemos o espaço aberto”, título extraído de um fragmento do poema elegíaco “Brot und Wein” [“Pão e vinho”] de Hölderlin[11], e que se destaca por ser um momento ápice na leitura, após Givone ter revisitado itinerários filosóficos complexos, uma vez que se vê em Hölderlin não só um poeta que aborda o tema da religião, mas também como habitante de um mundo em que a figura de Deus nos esconderia o seu rosto, enquanto os deuses pagãos já o teriam desertado[12]. Givone toma Hölderlin como exemplo para a sua análise sobre o mal e sobre o vínculo do mal com a religião, lembrando que antes Romani Guardini na Itália e Heidegger na Alemanha, já haviam visitado os poemas hölderlianos para embasar suas reflexões filosóficas. A concepção de aberto (das Offene) no poema de Hölderlin será vista como uma possibilidade para que a religião se destaque como aquilo que irá iluminar todas as coisas, religando, assim, o finito com o infinito. Infinito este que já fora tema dos pré-socráticos, o ápeiron de Anaximandro é o exemplo que nos fornece Givone. Entra-se no mundo grego através da leitura atenta do Banquete platônico e da famosa passagem em que lemos o discurso sobre o amor proferido por Diotima, assim como a filosofia do neo-platônico Plotino e a passagem pela poesia de Ungaretti marcarão o passo deste capítulo, que também explora a questão do belo. Nesse sentido, próximo do fim do capítulo, é mencionada uma definição forjada por Rilke muito pertinente ao tema: “O belo não é outra coisa senão o início do terrível”[13].

Fuga in Egitto (1305-1306) - Giotto

No último capítulo, “Poder espiritual e poder temporal”, explora-se a ideia de religião na sociedade pós-secular elaborada pelo filósofo alemão Jürgen Habermas. Givone coloca questões densas em contato, a vasta bibliografia converge, diverge, por vezes faz-nos parar a leitura para refletir pausadamente e com atenção redobrada, externando o desejo de que o seu livro seja um convite para que o pensamento se lance nos meandros dessa floresta que ora mostra clarões, ora se obscurece em sua folhagem fechada. O livro é polêmico, pois o tema em si é polêmico. Na obra, o autor, ao indagar pela veracidade de Deus, propõe muito mais perguntas do que respostas fixas a essa questão delicada, uma vez que encontrar uma resposta para o que o título mesmo do livro indaga seria encerrar a leitura em um único caminho.

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Como citar: TERENZI, Juan. "O caminho trágico para saber quão verdadeiro é Deus". In "Literatura Italiana Traduzida", v. 1., n. 9, set. 2020. 

Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/212571



[1] No livro Estetica italiana contemporanea (2017) [Estética italiana contemporânea], o filósofo Mario Perniola destacara justamente o desenvolvimento da noção de trágico em Givone como sendo uma abordagem que encontraria a sua gênese em Luigi Pareyson.

[2] Givone recorda a frase que o matemático francês Laplace teria dito a Napoleão Bonaparte a respeito de Deus: “una graziosa ipotesi di cui non ho avuto bisogno” [uma bela hipótese da qual não tive necessidade]. In: GIVONE, Sergio. Quant’è vero Dio. Perché non possiamo fare a meno della religione. Milano: Solferino, 2018, p. 6.

[3] Considero importante recorder o momento em que Nietzsche profere a morte de Deus, visto que Givone irá percorrer o caminho negativo nietzschiano tanto no início de sua argumentação – ao discutir o sentido da vida – quanto no último capítulo, ao abordar o sagrado. Também lembramos que a afinidade entre Nietzsche e Dostoievski é marcante, especialmente no episódio de matizes anedóticos que relata o abraço de Nietzsche a um cavalo sendo espancado por um camponês numa gelada manhã invernal de Turim – cena que encontramos em Crime e castigo (1866) e que Nietzsche estaria, assim, reproduzindo. Em de Die fröhliche Wissenschaft [A gaia ciência], lemos três parágrafos (§108, §125 e §343), destacando especialmente o §125 pela sua dramaticidade e potência poética: “108. Novas lutas. – (...) Deus está morto [Gott ist todt]; mas, tal como são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada. – Quanto a nós – nós teremos que vencer também a sua sombra [seinen Schatten besiegen]!” [...] 125. O homem louco. – (...) O homem louco [Der tolle Mensch] se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?” [“Wohin ist Gott?”], gritou ele, “já lhes direi” Nós o matamos [wir haben ihn getödtet]– vocês e eu [ihr und ich]. Somos todos seus assassinos [wir Alle sind seine Mörder].”. [...] 343. O sentido de nossa jovialidade. – O maior acontecimento [Ereigniss] recente – o fato de que “Deus está morto”, de que a crença [der Glaube] no Deus cristão perdeu o crédito [unglaubwürdig geworden ist] – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa.”. In: NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[4] O início do evangelho de João e toda a ideia aí contida pode ser lida no seguinte trecho: “Dio, se è, è una parola di verità, è la luce che proviene dal linguaggio, è il Logos che ‘era in principio ed era presso Dio ed era Dio’. Possiamo pure dimenticare il problema dell’esistenza di Dio. Non importa dimostrare l’esistenza di Dio: così fosse, si tratterebbe pur sempre dell’esistenza di un ente, se non di un idolo.”. In: GIVONE, Sergio. Op. cit., p. 8.

[5] “La vita è uno schiaffo al meccanismo ripetitivo dell’universo, ha detto Alfred North Whitehead. La vita è una rivolta contro il meccanismo ripetitivo dell’universo, ha detto Albert Camus. La vita è una confutazione del meccanismo ripetitivo dell’universo, ha detto Henri Bergson.”. In: GIVONE, Sergio. Op. cit., p. 9. Os livros citados por Givone são: Essais sur les données immédiates de la conscience (1889) de Henri Bergson, L’homme révolté (1951) de Albert Camus e Adventure of Ideas (1933) de Alfred North Whitehead.

[6] Nas palavras de Givone: “Qualunque cosa sia la religione, di essa si deve dire che ‘è’ e non solo che ‘è stata’.” [O que quer que a religião seja, deve-se dizer que ela “é” e não apenas que “foi”]. In: GIVONE, Sergio. Op. cit., p. 10.

[7] “Eccola, la domanda: che senso ha? Non che senso ha questo o quello, bensì che senso ha il nostro trovarci qui, in un punto qualsiasi dello spazio e del tempo, piuttosto che là. In breve: che senso ha il nostro essere al mondo e anzi l’essere in quanto tale, che senso ha la vita.” [Eis aqui a pergunta: qual o seu sentido? Não que sentido tem isto ou aquilo, mas qual o sentido de estarmos aqui, em um ponto qualquer do espaço e do tempo, ao invés de estarmos em outro lugar]. In: GIVONE, Sergio. Op. cit., pp. 15-16.

[8] É importante frisar que no âmbito da filosofia hegeliana há uma ideia de re-ligamento dos opostos, uma definição muito abreviada de Deus para Hegel está em que ele seria oposto à nossa natureza finita e falível.

[9] “Vero è che in tutti i romanzi di Dostoevskij accade più o meno larvatamente ciò che accade scopertamente nella Leggenda del Grande Inquisitore: Cristo è tornato a essere una presenza viva fra gli uomini.” [É verdade que em todos os romances de Dostoievski acontece de forma mais ou menos oculta aquilo que acontece manifestamente na Lenda do grande inquisidor: Cristo volta a ser uma presença viva entre os homens.]. In: GIVONE, Sergio. Op. cit., p. 41.

[10] “L’Anticristo è colui che intende realizzare in terra il messaggio del Cristo, messaggio d’amore per l’uomo, però senza credere nella risurrezione.”. In: GIVONE, Sergio. Op. cit., p. 68.

[11] Lê-se no original: “So komm! daß wir das Offene schauen”. (negrito meu)

[12] “(...) il poeta che ebbe altissimo il senso religioso della vita nel mondo ormai disertato dagli dèi e in cui Dio ci nasconde il suo volto.”. In: GIVONE, Sergio. Op. cit., p. 71.

[13] “‘Il bello è nient’altro che l’inizio del terribile’ dice Rilke nella prima delle Elegie duinesi. In: GIVONE, Sergio. Op. cit., p. 83.