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Basile nas telas do cinema: modernidade e revisionismo em Gatta Cenerentola, por Adriana Aparecida de Jesus Reis e Inessa Rosa de Amorim
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Adriana Reis
Gianbattista Basile
Inessa Amorim
em
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Gatta Cenerentola - 2017 |
De acordo com
Câmara Cascudo, “Maria Borralheira, Cinderela, está em todos os idiomas e
terras, mas raramente num bloco compacto, com os episódios que julgamos
constituir a verdadeira história. Um dos primeiros registros literários desse conto de fadas foi
realizado pelo escritor napolitano Giambattista Basile no século XVII em sua
obra-prima Lo cunto de li cunti ou Pentamerone, traduzida
integralmente do napolitano para o português brasileiro como O conto dos
contos, por Francisco Degani, em 2018. O registro pioneiro de Basile de “La
gatta cenerentola” (“A gata borralheira”) serviu de inspiração para as versões
de “A gata borralheira” de Perrault e “Cinderela” dos Irmãos Grimm.
A
narrativa “La gatta cenerentola” foi adaptada em 2017 para o cinema italiano
por Alessandro Rak Marino Guarnieri, Ivan Cappiello e Dario
Sansone com título homônimo ao de Basile. O filme foi lançado no 74º Festival Internacional de Cinema
de Veneza em 2017 e exibido recentemente na programação da Festa do Cinema
Italiano no Brasil em 2020, realizada em formato virtual.
O conto “La gatta cenerentola” de Basile,
ambientado na cidade de Nápoles, conta a história de Zezolla que “instigada
pela mestra a matar a madrasta e acreditando ser querida por ela, por fazer com
que se casasse com seu pai, é posta na cozinha. mas por virtude das fadas,
depois de vários acontecimentos, ganha um rei por marido”[1], resumo este apresentado por Basile antes
mesmo de iniciar a narração do conto propriamente dito.
Adaptar uma obra é o mesmo que a fazer
reviver de outros modos. Em
consonância com Linda Hutcheon[2],
os adaptadores possuem uma maneira própria de realizar uma adaptação e podem
propor novas análises e perspectivas, por isso as adaptações ganharam tanta
visibilidade e aceitação do público. Ainda segundo a mesma autora, o que
mudaria de um autor do “texto fonte” para os idealizadores de uma reprodução
seriam os lugares de fala, uma vez que os adaptadores estão inseridos em outro
contexto social, ou seja, utilizam o texto base para propor uma nova leitura e
fazem com que os momentos históricos se cruzem: o passado se presentifica com
novas abordagens, mudanças e análises.
Assim, a personagem Borralheira
ganha nova roupagem e vida nas telas do cinema por meio de Mia Basile. A
história se passa dentro do navio Megaride, ancorado no porto de Nápoles, onde
o cientista Vittorio Basile busca êxito em seus projetos futuristas para tornar
a cidade próspera e reconhecida pelos avanços tecnológicos. Logo, o império e o
dinheiro do visionário despertam cobiça nos golpistas Salvatore Lo Giusto (“Re”
em italiano ou “Rei”), chefe da máfia napolitana e traficante de drogas, e
Angelica Carannante, que, juntos, desenvolvem um plano para ficar com a fortuna
do visionário Basile.
A começar, merecem relevo os nomes
de tais personagens da adaptação: Vittorio Basile é uma referência direta ao
pai das fadas, Giambattista Basile, pois, assim como Vittorio Basile é o pai de
Mia Basile, o escritor Giambattista Basile pode ser considerado metaforicamente
o pai de “La gatta cenerentola”, dado o seu registro literário datar de antes
de Perrault e Grimm; Salvatore Lo Giusto tem um nome irônico, pois a expressão
linguística em italiano “Lo Giusto”
significa “O Justo”, alcunha que não pode ser atribuída a este personagem, já
que suas ações para angariar ainda mais poder e riqueza se revelam repletas de
malandragem; e Angelica Carannante, cujo primeiro nome remete à palavra
italiana “angelo”, que significa
“anjo”, porém a maldade da personagem a coloca como um estereótipo das
madrastas dos contos de fadas clássicos, comumente representadas como más,
velhas e feias. Como se vê, portanto,
também aqui há forte tom irônico no nome do personagem. Dessa forma, os nomes
irônicos dados aos vilões do filme, Salvatore Lo Giusto e Angelica Carannante,
chamam a atenção sobretudo do ouvinte que conhece o idioma italiano, destacando
o confronto entre a caracterização de tais personagens e as posturas que eles
adotam no decorrer do longa.
Além dos nomes dos personagens,
devemos destacar o ambiente futurista do navio, fazendo com que a cidade de
Nápoles no filme seja projetada para um futuro distante. Assim, a narrativa
registrada por Basile no século XVII é lançada a um futuro (ainda) impensável.
Paralelo ao recurso do futuro da cidade de Nápoles utilizado na adaptação, há
ainda o emprego da fórmula inicial presente no conto de Basile “Era uma vez...”,
a qual nos transporta imediatamente para um passado indefinido de Nápoles. Essa
indeterminação temporal cria uma atmosfera de magia que se inspira no mundo
encantado das fábulas, nos contos de fadas, no mundo do imaginário e do
maravilhoso[3].
Por outro lado, é justamente o
recurso à projeção futura que faz o filme ganhar características de ficção
científica. De acordo com o Damien Broderick, os avanços tecnológicos são
frutos da engenhosidade humana, que influenciam os seres humanos de forma
rápida e às vezes imperceptível. Seria uma subversão da ordem, um mundo de
possibilidades:
Em termos de “profecia”, o
melhor que a ficção científica pode nos proporcionar é uma probabilidade de
futuros possíveis ou alternativos. Muitos elementos narrativos dessas
probabilidades como o uso de alteridade partem da gramática e léxico comuns aos
escritores de ficção científica e são impossíveis no mundo real de fato - e não
apenas de forma empírica, mas logicamente impossível, ou insistem nossos
paradigmas poderosos e reforçados dessa maneira[4]
Vittorio Basile desenvolve em seu
navio uma pesquisa futurista pautada na projeção de hologramas como forma de
reforço e registro de memória. A maneira de vislumbrar o futuro se torna a
chave que desvenda todo o mistério do filme, e este assunto será tratado
posteriormente. Os produtores conseguiram obter tal efeito talvez por terem
produzido o filme sob a forma de animação, pois esse recurso faz uso constante
da projeção de cartoon.
Várias são as comparações possíveis
de mudanças e permanências feitas entre o conto e o filme. Na animação,
Vittorio Basile, mesmo sendo alertado sobre a influência de pessoas más,
apaixona-se e casa-se com Angelica. Mas tudo faz parte de um plano dela e de
Salvatore Lo Giusto. Durante a festa em que seria celebrado o casamento entre
Salvatore Lo Giusto e Mia Basile, Basile é morto e logo os projetos e o navio
ficam à deriva, assim como suas ocupantes: a viúva Angelica, as seis filhas e a
órfã Mia Basile. No conto clássico, a personagem Zezolla é influenciada por sua
mestra e mata a primeira esposa do pai, ou seja, o Príncipe, pois o plano era
que a mestra ocupasse o lugar da Princesa.
A Borralheira do filme fica órfã aos
três anos e passa outros quinze à mercê da tirania da madrasta e de suas
filhas. A personagem é silenciada de todas as formas, sempre cabisbaixa,
vestida com roupas velhas e solitária no quarto bagunçado; é introspectiva a
tal ponto de os espectadores não conhecerem a própria voz de Mia Basile, que
trabalha exaustivamente no navio enquanto Angelica apresenta espetáculos com
suas filhas, sempre vestidas com luxo e sensualidade, até porque as seis irmãs
eram prostitutas, elementos do filme que o caracterizam como uma releitura
moderna e adulta do conto.
A partir disso, podemos ler o nome
da Borralheira “Mia Basile” de forma simbólica: ele representa o estado de
prisioneira de Mia no navio, pois o termo “mia” em italiano é um pronome
possessivo, cujo significado é “minha” em português. Como a própria
nomenclatura sugere, há um sentido de posse em “mia/minha”, isto significa que
a protagonista era tratada como prisioneira e escrava da madrasta e de suas
irmãs mais velhas. Da mesma forma, Zezolla, no conto, trabalhava exaustivamente
na cozinha.
Contudo, Zezolla será auxiliada por
uma tâmara, fruto mágico que a protagonista havia pedido para que seu pai
trouxesse de uma viagem de barco à Sardenha. Da tâmara, depois de plantada por
Zezolla, sai uma belíssima fada que a auxilia a se vestir para o baile no qual
conhecerá o Rei com quem se casará na terceira noite da festa, após o encaixe
perfeito da chinela nos pés da borralheira. No filme, a chinela é substituída
por um salto de cristal dado por Salvatore Lo Giusto. O salto só caberá nos pés
de Mia Basile, fato que desperta inveja em suas seis irmãs mais velhas e na
madrasta Angelica. O mesmo ocorre no conto: as seis irmãs mais velhas de
Zezolla também sentem inveja dela, na medida em que a chinela não cabe em seus
pés, porém, aqui, os pés das seis irmãs são mutilados.
Há muitos elementos do maravilhoso
condensados neste episódio: a tâmara como fruto mágico porque dela sai uma
fada, situação somente possível no universo do maravilhoso, já que não provoca
estranheza por parte das personagens e leitores do conto[5].
A tâmara alude à romã do mito Ceres
e Proserpina. A romã, aponta Câmara Cascudo[6],
revela ter uma força detentora mágica no mito greco-romano, pois foi a ingestão
desse fruto que prendeu Proserpina no reino de Plutão. Com inversões, Basile
recupera a simbologia da romã no conto, pois a tâmara liberta Zezolla de sua
madrasta e de suas seis irmãs, uma vez que do fruto sai uma fada que ajudará a
protagonista. Além disso, assim como a romã no mito greco-romano, a tâmara é um
símbolo de fecundidade por ser utilizada nos bolos das cerimônias de casamento
na Grécia e em Roma, segundo Junito de Souza Brandão[7].
Tal
simbologia pode ser atribuída à tâmara no
conto de Basile, pois, assim como o fruto era utilizado em cerimônias de
casamento na Antiguidade, ele é o objeto mágico por meio do qual Zezolla
conseguirá ir ao baile e, por conseguinte, se casar com Rei. Portanto, a tâmara
é o símbolo do casamento e da futura experiência sexual da princesa.
As fadas são habitualmente
encontradas nos contos de fadas clássicos como seres mediadores do “final feliz.
Etimologicamente, a função do termo “fada”, de acordo com Nelly Novaes Coelho[8],
faz menção à fata (oráculo), derivada
de fatum que em latim significa
destino, enquanto em português a palavra “fado” designa “um destino que está
traçado”, que inevitavelmente vai acontecer. Por esta razão podemos dizer que o
conto "A gata borralheira" de Basile é um conto de fadas por
excelência, no qual a fada faz a mediação entre a Gata Borralheira e seu
destino, uma vez que ela fornece instrumentos mágicos que permitem a
transformação da personagem e consequentemente lhe possibilita o acesso aos
bailes. Por meio do acesso ao primeiro baile ela perde um sapato. Este será o
símbolo que posteriormente a ligará ao Rei.
Já
no filme o aspecto mágico é criado por meio da projeção de imagens que têm
configuração similar à de “hologramas fantasmas”, reproduzindo o dia da morte
de Basile. Este seria o elemento mágico mediador entre Mia e o desfecho do
filme, neste caso a protagonista, ao ver as cenas de Salvatore matando o pai,
poderia se vingar do “noivo assassino” em meio a cenas em que Angelica perde
suas filhas, mortas pelos policiais que entraram no navio, mas Mia não o mata.
Por vingança, Angelica coloca fogo no navio, alegando que todos iriam morrer
menos o pássaro, uma vez que ele merecia a liberdade depois de 15 anos preso em
uma gaiola. Mia solta o pássaro em uma cena simbólica, pois o sombrio e negro
pássaro, assim como ela, estava silenciado e trancafiado no navio. Mia une
novamente o par de sapatos perdido na infância (o mesmo que ela havia perdido
durante as cenas em que vinga a morte do pai) e consegue sair do navio em
chamas com Primo Gemito, amigo e assessor de Basile, que volta para ajudar a
resgatar a personagem depois de ela desferir vários golpes com revólver na
cabeça de Salvatore, deixando a morte do personagem por conta do fogo no navio.
Mia e Gemito pulam juntos do navio e isso permite aos espectadores um final
libertador à protagonista, final este, porém, que não se dá por meio do
casamento, e sim pela liberdade para cuidar do próprio destino.
Assim,
a personagem Mia Basile subverte o conto de fadas tradicional (de Basile) ao
agredir o noivo mafioso, ao descobrir que ele matou seu pai Basile e,
finalmente, ao fugir do navio em chamas. A verdade sobre a morte de seu pai é
revelada graças à projeção dos hologramas que mostram Salvatore Lo Giusto
cometendo o crime. Dessa forma, os hologramas, que constituem traços da ficção
científica no filme, aludem à magia ou ao poder das fadas no conto de fadas de
Basile, que salvam Zezolla da madrasta e das irmãs. Mesmo que a história seja
inspirada na clássica princesa, não há nada que a identifique como tal, uma vez
que Mia incorpora a “princesa moderna”, revisionista, sem a presença de rei,
rainha, castelo e casamento. Como define Maria Cristina Martins[9]:
“Os textos revisionistas transgridem e subvertem as narrativas tradicionais e
contestam significados cristalizados nas histórias”.
Concluímos
que a animação italiana Gatta Cenerentola
de 2017, ao fazer uma referência direta tanto à personagem Cenerentola quanto
ao escritor Giambattista Basile, parece chamar a atenção dos espectadores para
a intertextualidade que os diretores pretendem estabelecer com a obra
napolitana, representando-a não num esquema tradicional dos contos de fadas,
mas sim num modelo que ultrapassa as fronteiras do maravilhoso, o que a aproxima
de outros gêneros e subgêneros literários.
O
cunto de Basile se inicia pela
fórmula “Era uma vez...”, que nos leva não só para uma atmosfera mágica e
fabular, mas também para um passado indefinido, ao passo que a visão futurista de Nápoles presente na adaptação
- traço da ficção científica - conduz o leitor a um futuro inimaginável dessa
cidade. Além disso, Basile, por ser um escritor do século XVII, traz muitos
elementos ligados à tradição folclórica, como a tâmara, que alude à mitologia
greco-romana, as fadas e o casamento como símbolo do final feliz. Já a animação
apresenta traços da modernidade e do revisionismo, sobretudo pela ausência do
casamento, desenvolvimento da trama narrativa que modifica e subverte a
estrutura arraigada das narrativas dos séculos passados.
O espectador encontra elementos
futuristas como o navio que serve de base para o desenvolvimento de pesquisas,
os hologramas-fantasmas, as problemáticas sociais entrelaçadas, remetendo à
corrupção e ao tráfico de drogas. Contudo, alguns elementos maravilhosos
permanecem e, portanto, merecem destaque, tais como os sapatos infantis de Mia
em contraste com os sapatos feitos para o casamento, a presença dos vilões em
busca de poder, a ajuda mágica em forma de memórias holográficas e o tom
sombrio que permeia os ambientes do navio, conjugado à atmosfera nebulosa da
própria personagem, o que atribui características inovadoras góticas não
incorporadas (ainda) na contemporaneidade por filmes da Disney, por exemplo.
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Gatta Cenerentola - 2017 |
Como citar: REIS, Adriana Aparecida de Jesus; AMORIM, Inessa Rosa de "Basile nas telas do cinema: modernidade e revisionismo em Gatta Cenerentola", In "Literatura Italiana Traduzida", v. 1, n. 11, nov. 2020.
Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/217473
[1]BASILE, Giambattista. O conto dos contos. Tradução do
napolitano, comentários e notas de Francisco Degani. São Paulo: Nova
Alexandria, 2018, p. 87.
[2]HUTCHEON, Linda. Uma
teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2013.
[3]GUERINI, Andréia; COAN,
Rolizar Burigo. “A arte de narrar em Basile”. TriceVersa: Revista do Centro Ítalo-Luso-Brasileiro de Estudos
Linguísticos e Culturais, Assis, v. 2, n. 1, p. 165- 172, 2008. Disponível em: http://www2.assis.unesp.br/cilbelc/AndreiaGuerini.pdf. Consultado em: 14 set. 2020.
[4] BRODERICK, Damien.
Reading by Starlight. Taylor &
Francis e-Library, 2005, p.53-54 (Tradução nossa).
[5] TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica.
Trad. Maria Clara Correa Castello. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.
[9]MARTINS, Maria Cristina.
(Re) Escrituras: gênero e o revisionismo contemporâneo dos contos de fadas.
Jundiaí: Paco Editorial, 2015, p. 40.
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