La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Basile nas telas do cinema: modernidade e revisionismo em Gatta Cenerentola, por Adriana Aparecida de Jesus Reis e Inessa Rosa de Amorim

 

Gatta Cenerentola - 2017

  

De acordo com Câmara Cascudo, “Maria Borralheira, Cinderela, está em todos os idiomas e terras, mas raramente num bloco compacto, com os episódios que julgamos constituir a verdadeira história. Um dos primeiros registros literários desse conto de fadas foi realizado pelo escritor napolitano Giambattista Basile no século XVII em sua obra-prima Lo cunto de li cunti ou Pentamerone, traduzida integralmente do napolitano para o português brasileiro como O conto dos contos, por Francisco Degani, em 2018. O registro pioneiro de Basile de “La gatta cenerentola” (“A gata borralheira”) serviu de inspiração para as versões de “A gata borralheira” de Perrault e “Cinderela” dos Irmãos Grimm. 
A narrativa “La gatta cenerentola” foi adaptada em 2017 para o cinema italiano por Alessandro Rak Marino Guarnieri, Ivan Cappiello e Dario Sansone com título homônimo ao de Basile. O filme foi lançado no 74º Festival Internacional de Cinema de Veneza em 2017 e exibido recentemente na programação da Festa do Cinema Italiano no Brasil em 2020, realizada em formato virtual.
O conto “La gatta cenerentola” de Basile, ambientado na cidade de Nápoles, conta a história de Zezolla que “instigada pela mestra a matar a madrasta e acreditando ser querida por ela, por fazer com que se casasse com seu pai, é posta na cozinha. mas por virtude das fadas, depois de vários acontecimentos, ganha um rei por marido”[1],  resumo este apresentado por Basile antes mesmo de iniciar a narração do conto propriamente dito.
Adaptar uma obra é o mesmo que a fazer reviver de outros modos. Em consonância com Linda Hutcheon[2], os adaptadores possuem uma maneira própria de realizar uma adaptação e podem propor novas análises e perspectivas, por isso as adaptações ganharam tanta visibilidade e aceitação do público. Ainda segundo a mesma autora, o que mudaria de um autor do “texto fonte” para os idealizadores de uma reprodução seriam os lugares de fala, uma vez que os adaptadores estão inseridos em outro contexto social, ou seja, utilizam o texto base para propor uma nova leitura e fazem com que os momentos históricos se cruzem: o passado se presentifica com novas abordagens, mudanças e análises.
Assim, a personagem Borralheira ganha nova roupagem e vida nas telas do cinema por meio de Mia Basile. A história se passa dentro do navio Megaride, ancorado no porto de Nápoles, onde o cientista Vittorio Basile busca êxito em seus projetos futuristas para tornar a cidade próspera e reconhecida pelos avanços tecnológicos. Logo, o império e o dinheiro do visionário despertam cobiça nos golpistas Salvatore Lo Giusto (“Re” em italiano ou “Rei”), chefe da máfia napolitana e traficante de drogas, e Angelica Carannante, que, juntos, desenvolvem um plano para ficar com a fortuna do visionário Basile.
A começar, merecem relevo os nomes de tais personagens da adaptação: Vittorio Basile é uma referência direta ao pai das fadas, Giambattista Basile, pois, assim como Vittorio Basile é o pai de Mia Basile, o escritor Giambattista Basile pode ser considerado metaforicamente o pai de “La gatta cenerentola”, dado o seu registro literário datar de antes de Perrault e Grimm; Salvatore Lo Giusto tem um nome irônico, pois a expressão linguística em italiano “Lo Giusto” significa “O Justo”, alcunha que não pode ser atribuída a este personagem, já que suas ações para angariar ainda mais poder e riqueza se revelam repletas de malandragem; e Angelica Carannante, cujo primeiro nome remete à palavra italiana “angelo”, que significa “anjo”, porém a maldade da personagem a coloca como um estereótipo das madrastas dos contos de fadas clássicos, comumente representadas como más, velhas e feias.  Como se vê, portanto, também aqui há forte tom irônico no nome do personagem. Dessa forma, os nomes irônicos dados aos vilões do filme, Salvatore Lo Giusto e Angelica Carannante, chamam a atenção sobretudo do ouvinte que conhece o idioma italiano, destacando o confronto entre a caracterização de tais personagens e as posturas que eles adotam no decorrer do longa.
Além dos nomes dos personagens, devemos destacar o ambiente futurista do navio, fazendo com que a cidade de Nápoles no filme seja projetada para um futuro distante. Assim, a narrativa registrada por Basile no século XVII é lançada a um futuro (ainda) impensável. Paralelo ao recurso do futuro da cidade de Nápoles utilizado na adaptação, há ainda o emprego da fórmula inicial presente no conto de Basile “Era uma vez...”, a qual nos transporta imediatamente para um passado indefinido de Nápoles. Essa indeterminação temporal cria uma atmosfera de magia que se inspira no mundo encantado das fábulas, nos contos de fadas, no mundo do imaginário e do maravilhoso[3].
Por outro lado, é justamente o recurso à projeção futura que faz o filme ganhar características de ficção científica. De acordo com o Damien Broderick, os avanços tecnológicos são frutos da engenhosidade humana, que influenciam os seres humanos de forma rápida e às vezes imperceptível. Seria uma subversão da ordem, um mundo de possibilidades:
 
Em termos de “profecia”, o melhor que a ficção científica pode nos proporcionar é uma probabilidade de futuros possíveis ou alternativos. Muitos elementos narrativos dessas probabilidades como o uso de alteridade partem da gramática e léxico comuns aos escritores de ficção científica e são impossíveis no mundo real de fato - e não apenas de forma empírica, mas logicamente impossível, ou insistem nossos paradigmas poderosos e reforçados dessa maneira[4]
 
Vittorio Basile desenvolve em seu navio uma pesquisa futurista pautada na projeção de hologramas como forma de reforço e registro de memória. A maneira de vislumbrar o futuro se torna a chave que desvenda todo o mistério do filme, e este assunto será tratado posteriormente. Os produtores conseguiram obter tal efeito talvez por terem produzido o filme sob a forma de animação, pois esse recurso faz uso constante da projeção de cartoon.
Gatta Cenerentola - 2017
Várias são as comparações possíveis de mudanças e permanências feitas entre o conto e o filme. Na animação, Vittorio Basile, mesmo sendo alertado sobre a influência de pessoas más, apaixona-se e casa-se com Angelica. Mas tudo faz parte de um plano dela e de Salvatore Lo Giusto. Durante a festa em que seria celebrado o casamento entre Salvatore Lo Giusto e Mia Basile, Basile é morto e logo os projetos e o navio ficam à deriva, assim como suas ocupantes: a viúva Angelica, as seis filhas e a órfã Mia Basile. No conto clássico, a personagem Zezolla é influenciada por sua mestra e mata a primeira esposa do pai, ou seja, o Príncipe, pois o plano era que a mestra ocupasse o lugar da Princesa.
A Borralheira do filme fica órfã aos três anos e passa outros quinze à mercê da tirania da madrasta e de suas filhas. A personagem é silenciada de todas as formas, sempre cabisbaixa, vestida com roupas velhas e solitária no quarto bagunçado; é introspectiva a tal ponto de os espectadores não conhecerem a própria voz de Mia Basile, que trabalha exaustivamente no navio enquanto Angelica apresenta espetáculos com suas filhas, sempre vestidas com luxo e sensualidade, até porque as seis irmãs eram prostitutas, elementos do filme que o caracterizam como uma releitura moderna e adulta do conto.
A partir disso, podemos ler o nome da Borralheira “Mia Basile” de forma simbólica: ele representa o estado de prisioneira de Mia no navio, pois o termo “mia” em italiano é um pronome possessivo, cujo significado é “minha” em português. Como a própria nomenclatura sugere, há um sentido de posse em “mia/minha”, isto significa que a protagonista era tratada como prisioneira e escrava da madrasta e de suas irmãs mais velhas. Da mesma forma, Zezolla, no conto, trabalhava exaustivamente na cozinha.
Contudo, Zezolla será auxiliada por uma tâmara, fruto mágico que a protagonista havia pedido para que seu pai trouxesse de uma viagem de barco à Sardenha. Da tâmara, depois de plantada por Zezolla, sai uma belíssima fada que a auxilia a se vestir para o baile no qual conhecerá o Rei com quem se casará na terceira noite da festa, após o encaixe perfeito da chinela nos pés da borralheira. No filme, a chinela é substituída por um salto de cristal dado por Salvatore Lo Giusto. O salto só caberá nos pés de Mia Basile, fato que desperta inveja em suas seis irmãs mais velhas e na madrasta Angelica. O mesmo ocorre no conto: as seis irmãs mais velhas de Zezolla também sentem inveja dela, na medida em que a chinela não cabe em seus pés, porém, aqui, os pés das seis irmãs são mutilados.  
Há muitos elementos do maravilhoso condensados neste episódio: a tâmara como fruto mágico porque dela sai uma fada, situação somente possível no universo do maravilhoso, já que não provoca estranheza por parte das personagens e leitores do conto[5].
A tâmara alude à romã do mito Ceres e Proserpina. A romã, aponta Câmara Cascudo[6], revela ter uma força detentora mágica no mito greco-romano, pois foi a ingestão desse fruto que prendeu Proserpina no reino de Plutão. Com inversões, Basile recupera a simbologia da romã no conto, pois a tâmara liberta Zezolla de sua madrasta e de suas seis irmãs, uma vez que do fruto sai uma fada que ajudará a protagonista. Além disso, assim como a romã no mito greco-romano, a tâmara é um símbolo de fecundidade por ser utilizada nos bolos das cerimônias de casamento na Grécia e em Roma, segundo Junito de Souza Brandão[7].
Tal simbologia pode ser atribuída à tâmara no conto de Basile, pois, assim como o fruto era utilizado em cerimônias de casamento na Antiguidade, ele é o objeto mágico por meio do qual Zezolla conseguirá ir ao baile e, por conseguinte, se casar com Rei. Portanto, a tâmara é o símbolo do casamento e da futura experiência sexual da princesa.
As fadas são habitualmente encontradas nos contos de fadas clássicos como seres mediadores do “final feliz. Etimologicamente, a função do termo “fada”, de acordo com Nelly Novaes Coelho[8], faz menção à fata (oráculo), derivada de fatum que em latim significa destino, enquanto em português a palavra “fado” designa “um destino que está traçado”, que inevitavelmente vai acontecer. Por esta razão podemos dizer que o conto "A gata borralheira" de Basile é um conto de fadas por excelência, no qual a fada faz a mediação entre a Gata Borralheira e seu destino, uma vez que ela fornece instrumentos mágicos que permitem a transformação da personagem e consequentemente lhe possibilita o acesso aos bailes. Por meio do acesso ao primeiro baile ela perde um sapato. Este será o símbolo que posteriormente a ligará ao Rei.
Já no filme o aspecto mágico é criado por meio da projeção de imagens que têm configuração similar à de “hologramas fantasmas”, reproduzindo o dia da morte de Basile. Este seria o elemento mágico mediador entre Mia e o desfecho do filme, neste caso a protagonista, ao ver as cenas de Salvatore matando o pai, poderia se vingar do “noivo assassino” em meio a cenas em que Angelica perde suas filhas, mortas pelos policiais que entraram no navio, mas Mia não o mata. Por vingança, Angelica coloca fogo no navio, alegando que todos iriam morrer menos o pássaro, uma vez que ele merecia a liberdade depois de 15 anos preso em uma gaiola. Mia solta o pássaro em uma cena simbólica, pois o sombrio e negro pássaro, assim como ela, estava silenciado e trancafiado no navio. Mia une novamente o par de sapatos perdido na infância (o mesmo que ela havia perdido durante as cenas em que vinga a morte do pai) e consegue sair do navio em chamas com Primo Gemito, amigo e assessor de Basile, que volta para ajudar a resgatar a personagem depois de ela desferir vários golpes com revólver na cabeça de Salvatore, deixando a morte do personagem por conta do fogo no navio. Mia e Gemito pulam juntos do navio e isso permite aos espectadores um final libertador à protagonista, final este, porém, que não se dá por meio do casamento, e sim pela liberdade para cuidar do próprio destino.
Assim, a personagem Mia Basile subverte o conto de fadas tradicional (de Basile) ao agredir o noivo mafioso, ao descobrir que ele matou seu pai Basile e, finalmente, ao fugir do navio em chamas. A verdade sobre a morte de seu pai é revelada graças à projeção dos hologramas que mostram Salvatore Lo Giusto cometendo o crime. Dessa forma, os hologramas, que constituem traços da ficção científica no filme, aludem à magia ou ao poder das fadas no conto de fadas de Basile, que salvam Zezolla da madrasta e das irmãs. Mesmo que a história seja inspirada na clássica princesa, não há nada que a identifique como tal, uma vez que Mia incorpora a “princesa moderna”, revisionista, sem a presença de rei, rainha, castelo e casamento. Como define Maria Cristina Martins[9]: “Os textos revisionistas transgridem e subvertem as narrativas tradicionais e contestam significados cristalizados nas histórias”.
Concluímos que a animação italiana Gatta Cenerentola de 2017, ao fazer uma referência direta tanto à personagem Cenerentola quanto ao escritor Giambattista Basile, parece chamar a atenção dos espectadores para a intertextualidade que os diretores pretendem estabelecer com a obra napolitana, representando-a não num esquema tradicional dos contos de fadas, mas sim num modelo que ultrapassa as fronteiras do maravilhoso, o que a aproxima de outros gêneros e subgêneros literários.
O cunto de Basile se inicia pela fórmula “Era uma vez...”, que nos leva não só para uma atmosfera mágica e fabular, mas também para um passado indefinido, ao passo que a visão futurista de Nápoles presente na adaptação - traço da ficção científica - conduz o leitor a um futuro inimaginável dessa cidade. Além disso, Basile, por ser um escritor do século XVII, traz muitos elementos ligados à tradição folclórica, como a tâmara, que alude à mitologia greco-romana, as fadas e o casamento como símbolo do final feliz. Já a animação apresenta traços da modernidade e do revisionismo, sobretudo pela ausência do casamento, desenvolvimento da trama narrativa que modifica e subverte a estrutura arraigada das narrativas dos séculos passados.
O espectador encontra elementos futuristas como o navio que serve de base para o desenvolvimento de pesquisas, os hologramas-fantasmas, as problemáticas sociais entrelaçadas, remetendo à corrupção e ao tráfico de drogas. Contudo, alguns elementos maravilhosos permanecem e, portanto, merecem destaque, tais como os sapatos infantis de Mia em contraste com os sapatos feitos para o casamento, a presença dos vilões em busca de poder, a ajuda mágica em forma de memórias holográficas e o tom sombrio que permeia os ambientes do navio, conjugado à atmosfera nebulosa da própria personagem, o que atribui características inovadoras góticas não incorporadas (ainda) na contemporaneidade por filmes da Disney, por exemplo.

 

Gatta Cenerentola - 2017
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Como citar: REIS, Adriana Aparecida de Jesus; AMORIM, Inessa Rosa de "Basile nas telas do cinema: modernidade e revisionismo em Gatta Cenerentola", In "Literatura Italiana Traduzida", v. 1, n. 11, nov. 2020. 

Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/217473



[1]BASILE, Giambattista. O conto dos contos. Tradução do napolitano, comentários e notas de Francisco Degani. São Paulo: Nova Alexandria, 2018, p. 87.
[2]HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2013.
[3]GUERINI, Andréia; COAN, Rolizar Burigo. “A arte de narrar em Basile”. TriceVersa: Revista do Centro Ítalo-Luso-Brasileiro de Estudos Linguísticos e Culturais, Assis, v. 2, n. 1, p. 165- 172, 2008. Disponível em: http://www2.assis.unesp.br/cilbelc/AndreiaGuerini.pdf. Consultado em: 14 set. 2020.
[4] BRODERICK, Damien. Reading by Starlight. Taylor & Francis e-Library, 2005, p.53-54 (Tradução nossa).
[5] TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.
[6] CASCUDO, Luís da Câmara. Superstições no Brasil. 5ª ed. São Paulo: Global, 2002.
[7] BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Editora Vozes, 1986, vol. 1, p. 306.[8]COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: símbolos-mitos-arquétipos. São Paulo: Paulinas, 2012.
[9]MARTINS, Maria Cristina. (Re) Escrituras: gênero e o revisionismo contemporâneo dos contos de fadas. Jundiaí: Paco Editorial, 2015, p. 40.