La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Estilhaços grotescos do Antigo ao Neorreal, por Rafael Reginato Moura

 

Teto da Galleria degli Uffizi - Florença

 

Derivado da palavra italiana grotta (ou gruta, no português), a manifestação estética do grotesco remonta à Antiga Roma. Mais precisamente, enquanto objeto de atenção, ao Domus Aurea, a casa dourada do imperador Nero[1]. As escavações arqueológicas ocorridas no Domus Aurea a partir do século XIV intentavam resgatar o passado romano, motivo posterior de grande interesse dos renascentistas. Durante as escavações, foram encontrados elementos decorativos incomuns que no início do século XVI causaram admiração e fascínio nos renascentistas. Era uma decoração fantasiosa, ornamental, com motivos naturais misturados, tais como aves, animais, plantas e frutas, que não guardava semelhança com o estilo clássico predominante em Roma. A beleza ornamental do grotesco acabaria sendo absorvida, sem abrir mão de seu caráter de estranhamento, muitas vezes metamórfico, às vezes cômico, às vezes fantástico, às vezes bizarro, pela arte decorativa do pintor Rafaello.
Dado o grande volume de trabalho, especialmente na segunda década do século XVI, Rafaello forma sua célebre equipe de ajudantes, dotados de habilidades específicas. Cabe a Giovanni da Udine a tarefa de criar os estuques grotescos das chamadas Logge di Rafaello no Vaticano. É importante destacar que Giovanni da Udine realizou uma importante descoberta: refez o procedimento usado na época romana para a elaboração do estuque, mesclando à cal um pó finíssimo de mármore e resultando em um modelo mais refinado e brilhante, resistente e duradouro. A força ornamental e artística trazida pelo estilo grotesco às Logge di Rafaello no Vaticano explorou tematicamente, e sob o consenso do papa Leone Decimo, traços da natureza, dos mitos clássicos, da história, das religiões místicas e do hebraísmo, abarcando ainda instrumentos de música, armas, cenas de guerra, de jogo, de caça, de dança, entre outros que, à guisa de representar a unidade das artes sob a cultura do renascimento e sob os auspícios da igreja católica, não disfarçou a mescla ou união do sagrado e do profano.

Giovanni da Udine, Detalhe da decoração grotesca
da Loggetta do cardeal Bibbiena, 1516, Vaticano

Percorrendo os sendeiros do grotesco e preservando sua aura pagã, o pintor milanês Giuseppe Arcimboldo compôs quadros ou paradoxos visuais, em um misto de maneirismo e naturalismo, onde imagens da natureza como frutas, verduras e flores formavam, em conjunto, fisionomias humanas, as suas famosas cabeças compostas. A partir de então o estilo grotesco, à medida que se dissemina pela Europa, também passa a ganhar alcunhas pejorativas, como um adjetivo que representasse o ridículo, o antinatural, o excessivo, o monstruoso[2], o bizarro, o vulgar, não mais uma expressão estética do período romano tardio. É com o romantismo francês que o estilo grotesco ganha uma nova relevância e interpretação que admitisse o seu paradoxo formativo[3], o de uma arte que pudesse representar tanto o belo quanto o deformado.
Na França, Victor Hugo abre espaço para uma arte inesgotável a partir do grotesco que, em sua derivação ou união com o belo, constituiria o “moderno”[4]. O sublime residente na arte grotesca, conforme o escritor francês, permitiria pensar em infinitas possibilidades artísticas, ou seja, “o belo tem somente um tipo; o feio tem mil”[5]. Essa mistura, fusão ou profusão do belo e do feio no grotesco, que não se esgota no romantismo nem nas ideias de Victor Hugo, pode ser visível, por outro lado, no romance Notre Dame de Paris, onde a figura do quasímodo, o corcunda, reúne a beleza da bondade e a imperfeição da deformação física. Não se deve deixar de notar também que o principal cenário parisiense do romance, a Catedral de Notre-Dame, com suas gárgulas e quimeras góticas no exterior, contribuem visualmente para a atmosfera grotesca do romance.
De Rafaello até após Victor Hugo, num devir-louco como nos propõe Deleuze, que nunca se detém, ou também anacronicamente como uma montagem de tempos heterogêneos à maneira de Didi-Huberman, o estilo grotesco ganhou diversas formas, variadas obras. Desde os trípticos de Bosch e a Parábola dos Cegos de Peter Brueghel, passando pela série de gravuras Los caprichos de Goya, pelo Frankenstein de Mary Shelley, pelos contos de horror de Edgar Allan Poe, pelas caricaturas pintadas por Honoré Daumier, pelas jagunças pietás sobraçando suas esquálidas crianças em Os Sertões de Euclides da Cunha[6], pela expressão pavorosa do grito de Edvard Munch, até chegar ao desespero monstruoso da Guernica de Picasso, até atingir as imagens poéticas e oníricas de Breton ou as deformidades da natureza operadas por outros surrealistas, como Salvador Dalí e Marc Chagall[7], desde então e até então o estilo grotesco insistiu sempre em ressurgir como um avatar polissêmico, pleno de possibilidades e relações em suas imagens dialéticas[8], maliciosas, cuja imaginação montadora fez sobreviver no tempo a sua expressão multifacetada.

Francisco de Goya, Gravura 80 “Já é hora” 
da Série Los Caprichos, 1799, Museu do Prado

A tarefa de definir esteticamente o grotesco ou em tentar delimitá-lo resulta inócua, caso não esteja associada a um recorte ou a um objetivo estético. Em defesa do grotesco ou em seu confronto, as análises se dividem entre um estilo alegre, lúdico, leve e fantasioso ou, por outro lado, angustiante e obscuro, que foge à realidade ao deslocar a ordem. Mas a riqueza do grotesco, como percebeu Victor Hugo e muito antes Rafaello ao trazê-lo para dentro da arte renascentista, parece residir, como potência, em sua composição ou associação com outros movimentos ou escolas artísticas, com o hibridismo que o toma sempre por origem ou novo recomeço.
Como todo realismo advém da realidade e é para ela que retorna, pensar em um novo realismo que acolha esteticamente também o advento da deformação, do grotesco, pode ampliar o seu horizonte de alcance. Mário Dionísio, poeta, pintor e crítico neorrealista português, escreveu ser necessário deformar: “deformar sempre até onde esta palavra (liberta do sentido etimológico) possa significar dar nova forma, escolher a forma capaz, a única de dar a toda a gente claramente aquilo que queremos revelar”[9]. A associação ao grotesco, ao deformado neste caso, mais do que um traço estético, apresenta-se decerto como um sintoma. Um apontamento de cura, talvez. Ou uma marca (cicatriz, corte ou fissura) de contornos realistas. Pensar em uma carga genética que sustenha aspectos da natureza, da animalização, da metamorfose, da transformação, como é o caso da salutar apropriação do grotesco por um novo realismo, passa também por visar o homem e sua condição diante do tempo. É ao deparar-se com as deformidades humanas e dramáticas de muralistas mexicanos como Diego Rivera e Orozco, com a descrição das vidas secas de Graciliano Ramos que fazem de um cão mais gente do que a gente, com o monstruoso Gadanheiro de Júlio Pomar, com os alugados ou jornaleiros (aqueles que recebiam apenas por jornadas de trabalho) de Alves Redol ou de Carlos de Oliveira, com a caricatura brutal e desconsoladora do Zampanò de La Strada de Fellini, com a violência lírica e disforme de Renato Guttuso, que se trava contato com a riqueza estética e de linguagem que todo neorrealismo, movimento sempre heterogêneo, permite assomar.

Cartaz do filme “A Estrada da Vida” (La Strada, 1954), de Federico Fellini

Em 17 de agosto de 1940, assombrado pela aparição do quadro Café, de Candido Portinari, ocorrido na Exposição do Mundo Português naquele mesmo ano em Lisboa, Afonso Ribeiro proclama no semanário O Diabo, veículo que primeiro divulgou o neorrealismo em Portugal, as seguintes palavras:

 

Portinari não deforma pelo próprio prazer de deformar ou com o receio de cair na cópia servil da realidade. E não há dúvida que o consegue. Cedo, porém, aqueles trabalhadores de mãos e pés enormes, quase monstruosos, aqueles trabalhadores de braços grossos como pernas, terrivelmente musculados, se nos fixam na retina, se apossam de nós. E o efeito que o artista saca do seu processo de tal modo lhe avigora as figuras e lhe faz realçar o conjunto da composição, não raro lha dramatizando, que nos chegamos a convencer que semelhantes exageros se tornavam em absoluto necessários para que os seus negros dos cafezais, os seus pescadores, toda a extensa galeria da sua gente humilde não chegasse até nós amaneirada, falsa ou retórica[10].

 

Se do ponto de vista estético, é possível perceber o grotesco como uma valorização do belo em arte por meio do desagradável ou do feio propriamente dito, o mesmo movimento é que o permite ampliar a visão sobre o real, admitir e incorporar à obra visual, literária ou cinematográfica a imperfeição moral, a degradação física, o pesadelo atormentador, a invisibilidade do sujo e bruto, a desumanidade das formas e a humanidade do conteúdo, para não fugir à grande polêmica que envolveu o movimento neorrealista, ao menos em Portugal, cujos críticos se limitavam a ver nas suas obras apenas um conteúdo ideológico, sem valorizar sua forma ou linguagem.
A valorização estética de um novo realismo, que permita descobrir o quanto de grotesco ou “deformidável” a realidade filtrada contempla, parece restar como um importante elemento a saciar a “necessidade de realidade” de que fala o crítico português António Pedro Pita e que, de ciclos em ciclos, por vezes sobrepostos, retorna como um desejo reprimido, como um afã de justiça espiritual, como uma diferença na repetição, ou como uma estranha imagem que, não inadvertidamente, ainda nos figure bastante atual.   

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Como citar: MOURA, Rafael Reginato. "Estilhaços grotescos do Antigo ao Neorreal". In "Literatura Italiana Traduzida", v. 1, n. 10, out. 2020. 

Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/213725

 

 

Referências:

BENJAMIN, Walter. “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BERTIN, Juliana. “O monstro invisível: o abalo das fronteiras entre monstruosidade e humanidade”. In CAPELA, Carlos Eduardo; WOLFF, Jorge; ESCALLÓN, Bairon Oswaldo; CORREA, Joaquín. Outra travessia – Revista de literatura, Florianópolis, n. 22, 2º semestre de 2016, p. 37-54.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, 1974.
DIONÍSIO, Mário. A Paleta e o Mundo. 2. ed. Volume 1. Lisboa: Europa-América, 1956. 
FOUCAULT, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
MONTANARI, Tomaso. “Uma história do retrato barroco”. In Velazquez. Trad. Mônica Esmanhotto, Simone Esmanhotto. Coleção Grandes Mestres, volume 12. São Paulo: Abril, 2011.
PITA, António Pedro. “O neo-realismo entre a realidade e o real”. In Novos realismos. Org. Izabel Margato e Renato Cordeiro Gomes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
SILVA, Carina Zanelato. “O grotesco na representação das heroínas kleistianas Thusnelda e Penthesilea”. In CAPELA, Carlos Eduardo; WOLFF, Jorge; ESCALLÓN, Bairon Oswaldo; CORREA, Joaquín. Outra travessia – Revista de literatura, Florianópolis, n. 22, 2º semestre de 2016, p. 13-35.
STEVENSON, Robert Louis. O estranho caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde. Trad. Fernando Dias Antunes. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008.
ZUCCARI, Alessandro. Raffaello e le dimore del Rinascimento. Art e Dossier, Firenze, n. 7, nov. 1986, p. 4-19.


[1] Wolfgang Kayser, em O grotesco: configuração na pintura e na literatura. (Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2013), chama atenção para o fato de que o fenômeno do grotesco é mais antigo do que o seu nome, compreendendo a arte chinesa, etrusca, asteca, germânica antiga e outras mais, sem esquecer a literatura clássica grega e outras manifestações poéticas remotas.
[2] Uma cosmogonia do monstro parece resultar útil para a análise de possíveis filiações grotescas. Já no século XV, Vasari, ao verificar as descobertas no chamado palácio romano de Tito, faz referência a uma moda bárbara à época e a uma preferência por se “pintar monstros nas paredes”, ao invés de retratos do mundo real. Ressalta-se que, ao se referir ao grotesco realista e pós-romântico do século XIX, Wolfgang Kayser divide as figuras grotescas em três tipos: 1) a figura extremamente grotesca na imagem de sua aparência e nos movimentos; 2) os personagens excentricamente bizarros, exóticos, selvagens e ameaçados pela loucura; 3) as figuras “demoníacas”, de aspecto e conduta grotescos. Esses três tipos grotescos permitem uma aproximação com Michel Foucault e sua distinção ou atravessamento entre o monstro físico e o monstro moral, ou seja, a monstruosidade que reside, por um lado, na forma de se comportar e, por outro, no aspecto físico. No entanto, ao pensar o grotesco e sua plêiade de relações, não se deve reduzir o seu alcance a uma distinção física-moral ou física-psicológica, uma vez que a própria categorização do monstro, como afirma Juliana Bertin, situa-se em uma posição intersticial, impura, híbrida, em um dentro/fora. Esse lugar dobrado do monstro, que parece não escapar ao grotesco, é o que une as duas expressões em uma única “monstruosidade-grotesca” ao observar-se a figura do Sr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, que “mal se assemelha a um ser humano” ou “mais parece um troglodita, ou um monstro de um velho conto infantil” e em cuja figura é possível ver “a expressão do Diabo”. Mais adiante, o mordomo do Dr. Jekyll, ao contrastá-lo com o Sr. Hyde, não hesita em distingui-los: “O meu patrão é um homem alto e bem constituído; e aquele mais parecia um anão”. A alusão à figura do anão, aqui comparada à descompostura física do Sr. Hyde, mais próxima do bizarro e repulsivo, também mereceria maior atenção como avatar grotesco que, entre a deformação e a metamorfose física, parte humano, parte monstruoso, quase a sugerir também em seu estranhamento visual uma sensação de encolhimento moral, atravessa séculos de arte e literatura. Diego Velázquez, também nas artes visuais, integrou às representações de personagens da corte espanhola anões e palhaços. Ao se referir a essas obras, Tomaso Montanari afirma que “a figura do rei e a de seus familiares se alternam nos quadros com as dos ‘vermes da corte’, os anões e os bufões”. Pensar no anão, enquanto figuração do grotesco, de sua incompletude ou condição deforme, é deparar-se com um vasto caminho que não exclui nem mesmo a recente produção cinematográfica, seja na aparição mais sutil e passageira de dois deles no plano de fundo de uma cena em que, no primeiro plano, os dois personagens principais dialogam no longa-metragem Scoop, de Woody Allen, seja na personificação anã da editora do jornal para o qual trabalha o personagem Jep em A grande beleza, introduzindo um paradoxo visual da ordem do estranhamento grotesco diante da estética do belo clássico romano que, ao longo do filme de Paolo Sorrentino, vai sendo moralmente desconstruída ou tornada ruína.
[3] Conforme Carina Silva, a inserção do elemento grotesco na arte romântica foi visto como um contraponto à harmonia e à perfeição desenvolvidas pelos clássicos, estabelecendo como projeto estético a aproximação da arte à vida.
[4] Parafraseando Walter Benjamin, Didi-Huberman menciona, em Diante do tempo (Trad. Vera Casa Nova, Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013), que “o moderno é tão variado quanto os diferentes aspectos de um mesmo caleidoscópio”.
[5] Cf. HUGO, Victor. Do Grotesco e do Sublime. Tradução e notas de Celia Berretini. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 33.
[6] Para compreensão, sugere-se a leitura de Euclides da Cunha e a pietà sertaneja, disponível em https://biblioo.cartacapital.com.br/euclides-da-cunha-e-a-pieta-sertaneja/.
[7] Ainda que considere as obras surrealistas do século XX como de natureza grotesca, Wolfgang Kayser acrescenta que a força sugestiva dos programas surrealistas se desvaneceu e o phatos das auto-interpretações já não produz mais efeito, restando saber, agora que só contam consigo mesmas, se as obras surrealistas possuem bastante valor artístico para entrarem na história do grotesco.   
[8] Pensar um percurso anacrônico para o grotesco, advindo de uma montagem estilhaçada, de tempos heterogêneos da mesma forma de que é constituído o grotesco, ganha suporte na teoria de Didi-Huberman que, ao reler Warburg e Benjamin e o fato de ambos terem colocado a imagem no centro nevrálgico da “vida histórica” sem reduzi-la a um documento da história, estabelece para a obra de arte uma “temporalidade com dupla face”, devir que reside nos termos de uma fulgurante e intermitente “imagem dialética”.
[10] Cf. ALVARENGA, Fernando. Afluentes Teórico-Estéticos do Neo-Realismo Visual Português. Porto: Edições Afrontamento, 1989, p. 56.