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Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Leonardo Sciascia
Majorana desapareceu
Marika Avezzù
em
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Stefano Simone - Ettore Majorana |
Neste período, em que
ficar em casa é uma necessidade, as pessoas que nos rodeiam começam a
desvanecer, deixando uma falta preenchida por reuniões virtuais e comentários
em redes sociais ou fóruns. A imagem física do indivíduo desaparece deixando no
seu lugar suas palavras que, diante de nossos olhos, aparecem por meio das
luminosas telas dos celulares e dos computadores que se tornaram quase como um
prolongamento do nosso corpo.
Desaparecer, atualmente,
parece ser a coisa mais fácil do mundo: é só desligar um aparelho tecnológico
que nos permite conectar com o lado “interativo” e a nossa existência se afasta
da sociedade e, aos poucos, desvanece. Entretanto, o desaparecer, no passado, não
consistia em se desconectar de um aparelho, mas era algo mais calculado e,
certamente, mais concreto. Autores como Edgar Allan Poe, Jorge Luís Borges,
Ermanno Rea ou Luigi Pirandello tratam de pessoas que desapareceram de alguma
maneira, sem deixar rastros; a literatura está repleta de obras onde o
protagonista é o desaparecido, mas minha intenção, neste artigo, é tratar, em
específico, da obra La scomparsa di Majorana (1977) de Leonardo
Sciascia, o qual relatou um dos desaparecimentos, se não o mais
importante, que marcou a Itália do século XX.
Para poder analisar mais
profundamente a obra citada e a questão do desaparecimento, gostaria de
apresentar rapidamente o próprio autor: Leonardo Sciascia (1921-1989) foi um
escritor italiano da segunda metade do século XX e se pode afirmar que foi um
dos mais conhecidos, na literatura italiana, pela sua escrita linear, direta e ao
mesmo tempo capaz de deixar o leitor refletir sobre os assuntos que ele tratava
nas suas páginas. Sciascia é famoso, especialmente, por ter escrito a obra Il
giorno della civetta (1961), traduzido e publicado, no Brasil, em 1995 com
o título O dia da coruja. Esta obra é conhecida porque o escritor foi o
primeiro a denunciar, por meio de um romance, a existência da máfia. Embora sua
popularidade por essa obra, o foco do artigo se concentra em outra que, além
disso, é uma das últimas de Sciascia: La scomparsa di Majorana (1977),
traduzido e publicado no Brasil em 1991 com o título Majorana desapareceu.
A obra, resumidamente, é
a coletânea de documentos, cartas e testemunhas que traçam os passos de um
cientista que em 1938 desaparece (e jamais encontraram o corpo) sem deixar
rastros; assim como se apresenta o título da obra, tem-se clara a ideia de que
será tratado de um enigma, um dos maiores do século XX na Itália: o
desaparecimento do físico Ettore Majorana.
Por meio das palavras de
Sciascia, procura-se a motivação do sumiço do cientista: a obra, de gênero giallo[1], não é somente
investigativa, mas ela mesma torna o leitor um investigador cuja tentativa será
a de compreender o porquê do desaparecimento de Majorana e, também, poderá
levantar suas hipóteses. Ele foi raptado? Fugiu? Ficou no mosteiro em Nápoles
como as últimas testemunhas relataram? Ou fugiu para o estrangeiro abandonando
família e amigos, deixando eles acreditarem que morreu? O mesmo Sciascia ressalta,
nas suas páginas, que está presente “... a incongruência de um suicida que
trazia consigo quanto mais dinheiro possível e o passaporte, fosse para dar à
mãe a ilusão de acreditar que ainda estivesse vivo.”[2] Majorana desapareceu, e
lendo as páginas da obra sciasciana, percebe-se que o ato de desvanecer foi
premeditado há tempo e deixou a família, os amigos e até o governo que foi à
procura dele, em um estado de sensação de ausência. David Le Breton, na obra Desaparecer
de si (2018), afirma que desaparecer é como um estado de ausência do
indivíduo. Isto é, o desaparecimento é mais um limbo do que uma situação
concreta onde o ser está. Se considerarmos o mesmo cientista Majorana tratado
na obra de Sciascia compreendemos que a presença do físico, do nome e da ideia
dele é constante em todos os capítulos; estes parecem trechos de um ensaio que
relatam as experiências e as vivências do jovem físico. De fato, a obra,
inicialmente, era o produto de um ensaio, dividido em episódios, e publicado
diariamente pelo jornal La stampa em 1975. Isto é, os capítulos da obra
que conhecemos, eram os fragmentos que compunham o mosaico das experiências e
das vivências do jovem físico. Entretanto, tudo o que foi referido é somente
uma transcrição de uma voz que relata o que “presumivelmente” e
“narrativamente” aconteceu com o cientista e é por isto que Sciascia consegue
tornar o leitor um investigador capaz de supor e de criar suposições a respeito
de Majorana e do seu desaparecimento.
Além disso, tendo em
consideração o fato histórico e o título, La scomparsa di Majorana,
entende-se já como a obra termina. Sciascia simplesmente relatou, por meio das
suas palavras simples e diretas, o estado de limbo de um dos indivíduos mais
conhecidos do século XX, comparado pelo mesmo Enrico Fermi, a Galileu Galilei e
a Isaac Newton.
Embora o
leitor-investigador procure uma tentativa de compreender o desaparecimento de
Majorana, é interessante considerar que, como afirma Le Breton, pode haver
vários tipos de desaparecimentos e, também, várias motivações pelas quais se
decide planejar a própria ausência da sociedade. De fato: “O desaparecimento
pode ser um desgaste das significações que conservam o indivíduo no mundo, uma
breve experiência de desresponszabilização”[3]; desta maneira, o desgaste
do indivíduo torna em desejo se subtrair à sociedade na qual ele está, assim
dando vida ao seu desaparecimento, tirando-se de toda responsabilidade da sua
antiga identidade; isto não significa que desaparecer aconteça somente fora de
casa, subtraindo-se ao contato humano e a sociedade, mas também pode acontecer
dentro das quatro paredes do próprio lar, não querendo mais sair, como fez a
escritora Emily Dickinson nos seus últimos trinta anos de vida, ou como nós
mesmos estamos fazendo neste período de isolamento social: apesar de ter ainda
responsabilidades, estamos desaparecendo ao olhar do outro e não pertencemos
mais àquele mundo do qual fazíamos parte antes de que tudo começasse. Nossa
imagem se torna invisível e nossa identidade se satura ao ponto de sumir.
Considerando a saturação
da nossa imagem (e assim nosso desvanecer), Le Breton compara a situação do
desaparecimento com a cor branca, sendo ela a conjunção de todas as cores e,
portanto, a saturação da identidade; o indivíduo é desgastado e o autor, considerando
as palavras de Robert Walser, compara o desaparecimento ao brancor da neve, ao
espaço que ela ocupa, como “a sensação de um mundo suspenso”, onde o indivíduo
desaparece e “pode descansar”[4]. Porém, este lugar, para
familiares e entes policiais não é tão “tranquilo”, pois lendo a obra
sciasciana, entende-se que a família Majorana (especialmente a mãe e uma das
irmãs, como afirma o jornalista da Repubblica Luca Fraioli) estava tão
desesperada com o desaparecimento do jovem que chegou até ao ponto de pedir
auxílio ao político Giovanni Gentile:
Vossa excelência,
Peço humildemente de receber e
ouvir o Doutor Salvatore Majorana, o qual precisa conferir com Vossa presença o
caso infeliz do irmão, professor desaparecido. Parece que, de um novo indício,
seja necessária uma nova investigação, dentro dos conventos de Nápoles e aos
redores [...] E se, como se espera, ainda há tempo de salvá-lo e reconduzi-lo à
vida e à ciência, não se deve deixar de lado intenção alguma. [...]
Sempre à sua disposição,
Giovanni Gentile[5]
Com esta carta, inicia a
obra de Leonardo Sciascia e já nos demonstra que o desaparecimento do jovem se
tornará assunto nacional: a polícia, e o Vaticano também, estão à procura dele
e os familiares “como sempre acontece nos casos em que não se encontra o
cadáver, ou se acha casualmente mais tarde e irreconhecível, aqui entram na
loucura de acreditá-lo ainda vivo.”[6]. Porque o corpo nunca foi
encontrado e a mãe de Majorana jamais perdeu a esperança de abraçá-lo
novamente. De fato, como relata Sciascia nas últimas páginas da obra, ela
deixará no testamento a herança familiar que lhe pertence. Dorina Corso
Majorana sempre afirmou que “nunca foram percebidos nele”, ou seja, no jovem
cientista, “precedentes clínicos ou morais que deixem de pensar ao suicídio”[7].
Entretanto, nem as cartas
diretas para Mussolini mudam as ideias da polícia, a qual, desde o começo,
acredita que, como está escrito em seus relatórios de busca, o planejamento de
desaparecer de Majorana foi mais um suicídio do que uma simples maneira de
fugir da realidade à qual ele pertencia. Portanto, se voltar a pensar ao
brancor da neve, citado por Le Breton, é possível compará-lo ao do papel dos
relatórios policiais, os quais tratam do desaparecimento do cientista, embora a
tinta preta e o passar do tempo tornam mais escuras as páginas e, desta forma,
há uma passagem que vai do branco, saturação das cores, ao preto, sinônimo da
morte na cultura ocidental e que absorve todas as outras cores, nada é saturado
e tudo termina com o fim das pesquisas e com a “morte” de Majorana; a morte
está entre aspas porque no fim nunca foi achado o corpo e somente depois de 82
anos, dois físicos italianos (Nadia Robotti e Francesco Guerra contando para a Repubblica
da provável descoberta) afirmaram que a prova mais concreta, após as leituras
das cartas de alguns amigos do cientista, é que muito provavelmente Majorana se
suicidou em 1939.
Simplesmente e
pirandellianamente, do cientista sobrou somente o nome, e a sociedade o
declarou morto, como aconteceu com o protagonista da obra O falecido Mattia Pascal
(1904), o qual foi dado por morto depois de terem encontrado um corpo
exânime, reconhecido pela mulher dele e a sogra, num moinho.
O Vaticano também
procurou o cientista pelos demais mosteiros italianos, mas como afirmou o
jornalista Roncoroni, depois de ter lido o dossiê de Majorana, descobre-se que
a procura parou depois de apenas um mês. Somente a família ficou, inutilmente,
esperando a volta do jovem, mesmo que, segundo o artigo de Fariol publicado no
cotidiano La Repubblica no dia 13 de agosto de 2020, na realidade os
parentes permaneceram em silêncio pois, presumivelmente, descobriram a morte do
jovem e silenciaram as procuras para evitar de criar outro escândalo familiar
que se ligaria ao infanticídio acontecido na mesma família em 1924 (uma criança
foi assassinada no berço incendiado pela empregada doméstica).
Apesar de ter lido a
última possível verdade sobre Majorana, podemos somente supor que ele realmente
morreu em 1938, pois o corpo nunca foi encontrado e a prova, como relatam os
dois físicos, está nas palavras de uma carta de Giovannino Gentile, outro
cientista, que comenta o suicídio de um colega:
“Desta forma, querido Gatto, perdemos outro amigo. Parece um destino que
leva jovens como Majorana e Manià a essas supremas resoluções.”[8]. A suposição está nas
comparações de um corpo nunca mais encontrado e de outro achado e dado por
morto. Além disso, em 2015, no jornal Corriere della sera, foi publicada
uma entrevista feita para Salvatore Majorana, bisobrinho do jovem físico
desaparecido, o qual afirma que a família sempre acreditou que Majorana não se
suicidou, e sim que há a probabilidade de desaparecer da sociedade por alguma
motivação e provavelmente, a obra de Sciascia seja uma provável solução ao
mistério. Desta forma, há incongruências entre os relatos familiares por parte
de ambos os artigos.
Desta forma, não é
possível afirmar o que aconteceu realmente com Ettore Majorana: seu desaparecimento
foi calculado, planejado, talvez, para evitar de entregar aos fascistas a
própria descoberta, a fissão nuclear, salvando assim o mundo de um perigo
iminente, ou talvez quis acabar com a sua vida por causa de uma “depressão”
como define a polícia. Com o desaparecimento de Ettore Majorana há a criação de
variadas soluções e podemos pensar que ele somente quis “descansar” da sua
identidade, embora isto leve a uma faca de dois gumes porque, como acontece com
Mattia Pascal (e citado também pelo mesmo Sciascia dentro da obra), o
desaparecimento leva a se privar não somente do próprio passado, da sua vida,
mas também de seu nome. Perdendo-se a identidade, não se possui mais o direito
na sociedade nem é possível ser reconhecido pela polícia e, desta forma, não se
existe mais. Em poucas palavras, a identidade se transforma em armadilha da
qual é preciso tomar cuidado constantemente e se alguém escolhe desaparecer,
deve ser consciente das consequências que tudo isto pode levar.
Majorana deixou seus
vestígios nas pessoas amadas e, graças a Leonardo Sciascia, na literatura; ele
é um desaparecido que ao mesmo tempo aparece naquele brancor, limbo entre vida
da sociedade, do que nos rodeia, e a mesma morte. Pode haver sempre novas
provas, novas ideias, mas não havendo um corpo, como aconteceu com Majorana,
não é possível realmente afirmar algo concreto e, com isso, o desaparecimento
sempre nos questionará sobre o que pode ou não pode ter acontecido.
Como citar: AVEZZÙ, Marika. "O cálculo de desaparecer e Leonardo Sciascia: a investigação de um sumiço". In "Literatura Italiana Traduzida", v. 1, n. 10, out. 2020.
Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/216831
SITOGRAFIA
SIDERI, Massimo. “Il nipote e la
verità su Majorana: non si uccise, io credo a Sciascia”. In: “Corriere della sera”, 2015.
RONCORONI, Stefano. “Il dossier di Majorana in Vaticano”. In: “La Repubblica 2020”. https://rep.repubblica.it/pwa/robinson/2020/04/30/news/il_dossier_majorana_in_vaticano-255288957/
Ettore Majorana, https://pt.wikipedia.org/wiki/Ettore_Majorana
Leonardo Sciascia e Ettore Majorana, https://www.amicisciascia.it/rubriche-del-sito/sciasciana/item/541-spigolature-su-la-scomparsa-di-majorana.html
[1] Os romances policiais, na Itália,
são chamados de “gialli”, devido a uma coleção de livros lançada em 1929 pela
editora Mondadori que tinha a cor amarela (“giallo”, em italiano) na capa. A
partir daí, as obras de tal tema passaram a se chamar “gialli”.
[2]
SCIASCIA, Leonardo. La scomparsa di
Majorana. Adelphi Edizioni spa, 1975, p. 76; Os
trechos da obra La scomparsa di Majorana são produto de tradução feita
por mim.
[5]
SCIASCIA, Leonardo. Op. cit., p. 13.
[6] Idem, p. 14.
[7] Ibidem, p. 75
[8] FRAIOLI, Luca. “L’ultima verità su
Majorana”. In: “La Repubblica”,
2020.
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