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A literatura italiana em diálogo com outras literaturas no âmbito do curso de Letras da USP, por Rodrigo Vicente Rodrigues e Lucia Wataghin
Literatura Italiana Traduzida ISSN 2675-4363
Literatura italiana traduzida
Lucia Wataghin
Rodrigo Vicente Rodrigues
em
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Fato já discutido ad infinitum por muitos pesquisadores de
muitas áreas das ciências humanas, sabe-se que as relações entre Brasil e
Itália no plano da cultura e das artes sempre foram muito fecundas. Nesse sentido,
a cidade de São Paulo se configura como um dos polos que concentraram a herança
cultural e intelectual dos italianos que imigraram para o Estado. Destarte,
sendo a literatura um dos meios de excelência através dos quais uma nação/povo
transmite sua cultura e valores, reuniram-se obras e autores italianos que
figuram como textos-base ou como textos de apoio em disciplinas independentes
da área de estudos italianos ministradas no curso de Letras da USP.
Estudar a influência
da literatura italiana sobre outras literaturas é um modo através do qual se
pode apreender novos significados e sentidos que ela passa a ter em relações
dialógicas. Esse tipo de abordagem torna-se ainda mais importante pois,
conforme afirmou Antonio Candido em 1988, “estudar literatura brasileira é
estudar literatura comparada, porque nossa produção foi sempre [...] vinculada
aos exemplos externos [...]”[1]. Assim, observar aquilo que
nos chega de fora é um ponto de partida muito frutífero para se entender o que,
desde o Romantismo, se configurou como questão central dos literatos
brasileiros, isto é, a criação de uma literatura nacional, empresa muito cara
aos modernos da primeira leva, destacando-se Mário de Andrade.
As literaturas
estrangeiras “interagem entre si e com as literaturas nativas no espaço
diaspórico cultural brasileiro criando novos caminhos críticos de intersecção a
serem percorridos”[2].
Isso significa dizer que, sendo o Brasil um país historicamente calcado em
ondas migratórias, o que se pode tomar por “literatura brasileira” sempre
esteve muito fortemente ligado a outras literaturas. Além disso, pela própria
natureza do texto literário, que “nunca é um fim em si”[3], as relações, explícitas
ou possíveis, entre eles são perenes nas dinâmicas literárias.
Além disso, pela
própria conjuntura histórica em que surge a Universidade de São Paulo, num
projeto político de ascensão do estado paulista (do qual a italianidade é parte
indissolúvel), a cultura italiana tem um papel de destaque. Basta lembrarmos
como a USP esteve sempre em contato com a cultura italiana de forma
institucionalizada. Por exemplo, durante a década de 1930, ela teve no seu corpo
docente o poeta e crítico Giuseppe Ungaretti[4], que esteve a cargo da
criação da área de estudos italianos da casa; além disso, vemos também o Museu
de Arte Moderna paulista sendo criado a partir da iniciativa privada de
Ciccillo Matarazzo (de origem familiar italiana, sobrinho do Conde Francisco
Matarazzo) que, para tanto, além de obras francesas, comprou na Itália entre 1946
e 1947 o núcleo inicial do acervo do museu[5], composto por obras de artistas
italianos de então, como Funi, Sironi, Soffici, Morandi e Modigliani. Esse
acervo inicial do antigo MAM-SP fora doado ainda sob tutela do Museu à USP que,
posteriormente, cria o MAC para abrigá-lo. Além disso, a mesma universidade na
década de 1950 organiza uma exposição de arte italiana em São Paulo. Estes são apenas alguns exemplos de como a
cultura italiana sempre esteve em diálogo com a Academia.
O primeiro passo para
se criar um mapa da presença da literatura italiana dentro do curso de Letras
foi a coleta de dados junto aos docentes das outras áreas que não a do italiano
através de entrevistas presenciais e questionários remotos que seguiram uma
mesma sequência para que as respostas fossem mais ou menos padronizadas. A
coleta inicial foi feita durante todo ano de 2017[6], e resultou num banco de
dados composto por respostas de cerca de 50 docentes. A partir dele, tentou-se
fazer uma verificação ampla de como a literatura italiana, enquanto sistema
literário inserido dentro dos chamados polissistemas[7], faz-se presente, e traçar
as relações possíveis que esses sistemas mantêm entre si. Assim, mais do que
pensar as relações referentes às literaturas como um conglomerado de elementos,
quer-se pensá-las como sistemas que se relacionam enquanto tais, sendo que a
literatura, para além de uma rigidez de caráter nacionalista, quando traduzida,
passa também a ser um sistema complexo que trava relações com os outros
sistemas de forma dialógica no contexto de recepção. Por polissistema,
portanto, entende-se algo que é complexo e heterogêneo, em que os sistemas que aí
se relacionam não necessariamente precisam manter características de
uniformidade, uma vez que, ao invés de pensá-los a partir do binômio semelhança
x diferença, as relações se tornam o
aspecto primordial. Primeiramente, criou-se um corpus em que constaram todos os autores e obras citadas pelos
docentes, que foram categorizados, organizados e interpretados, de modo a
salientar que “o estudo das literaturas estrangeiras no Brasil, em diálogo com
as literaturas vernáculas, acrescenta realidades virtuais no espectro das
diversas visões de mundo”[8].
Conclui-se que 83,8% dos
docentes afirmaram utilizar textos italianos. Observando autores e obras
citadas, é possível ter uma ideia do modo como a
literatura italiana se faz presente nesse contexto: citaram-se 55 autores, que
perfazem um arco temporal irregular que vai do século XII ao século XX/XXI: existem
picos em determinados períodos, em que muitos autores foram evocados, ao passo
que outros se mostram como hiatos. Dos escritores italianos, aparecem recorrentemente,
em ordem decrescente: Dante Alighieri, Italo Calvino, Francesco Petrarca, Luigi
Pirandello, Franco Moretti, Umberto Eco, Claudio Magris, Giacomo Leopardi, Giovanni
Boccaccio, Giorgio Agamben, Italo Svevo, Giuseppe Ungaretti, Alfonso Berardinelli,
Gian Biaggio Conte, Antonio Gramsci, Tomasi di Lampedusa e Primo Levi. Todos os outros 38 autores foram citados apenas uma vez.
Além disso, levando-se
em conta as obras citadas, observou-se que a maioria dos textos italianos
trabalhados pelos docentes é de natureza não ficcional (notadamente ensaios),
seguidos por textos de poesia (segmento em que a Itália sempre foi (re)conhecido,
isto é, a lírica) e, finalmente, textos em prosa e teatro.
Na prosa, destaca-se
o romance de natureza autobiográfica de Primo Levi, É isto um homem?, seguido pela prosa ficcional de Italo Svevo, A consciência de Zeno, o Decameron de Boccaccio, peças de teatro
de Pirandello e um romance seu, O falecido
Mattia Pascal; por último, temos também um drama, O Leopardo, de Lampedusa. De Italo Calvino, há certo equilíbrio
entre teoria e ficção, com destaque para Por
que ler os clássicos e Seis propostas
para o próximo milênio, ou seja, um texto que volta o olhar para o passado,
enquanto o outro prospecta o que viria depois do momento pós-moderno.
A lírica italiana tem
papel de destaque. Nesse sentido, Petrarca aparece como personagem central,
sendo que com ele
nasce um novo tipo e
intelectual, que inspirará o modelo humanista educado sobre o culto dos antigos
[...]. O cancioneiro dá vida a uma poesia amorosa baseada na busca pela
perfeição clássica e de símbolos absolutos: por séculos constituirá a base da
linguagem poética europeia[9],
evocando-se uma das bases mais
importantes do desenvolvimento da lírica amorosa no contexto ocidental (tanto o
centro como as periferias que o orbitam).
Dante também aparece
como um dos centros da lírica, tanto por ter elevado a língua vulgar estilizando-a
poeticamente, mas também porque se tornou uma das bases mais sólidas da
tradição poética italiana. Se “nos manuais de literatura prevalece normalmente
a tendência de se colocar Dante ligado ao passado, a sublinhar as raízes medievais
de sua cultura e de sua ideologia”[10], deve-se, porém,
salientar a sua ‘paixão experimental’”[11].
Afora Dante e
Petrarca, citou-se o também poeta Guido Cavalcanti que, não só temporalmente,
mas também em relação ao modo como trabalha a lírica, estará grandemente ligado
a Dante, pois em comparação a estes dois literatos, “os outros poetas próximos
a eles se colocam em um nível mediano”[12] quando se fala na lírica
amorosa e sobretudo no dolce stil nuovo.
Assim, a poesia italiana evocada dialoga com as canções de amor trovadorescas
de onde a noção de poesia amorosa nasce e que até hoje reverbera nas mídias de
massa.
Partindo ainda de
Dante e Petrarca, para se compreender as ligações entre os dois autores de
poesia que perfazem, junto a Boccaccio, as “três coroas” e as outras dinâmicas
literárias do mundo europeu contemporâneo a eles,
deve-se notar enfim
que, necessariamente graças às obras máximas de Dante, Petrarca e Boccaccio, no
curso do século XIV, muda-se o equilíbrio entre a literatura italiana e as
outras literaturas europeias. À hegemonia das produções em língua d'Oc e língua
d´Oïl, se sobrepõe aquela da nova literatura italiana, que se difunde nos
outros países europeus, especialmente França e Inglaterra[13],
notadamente grandes influências para o
Brasil: a primeira no plano cultural e artístico sobretudo, e a segunda nas
relações econômicas principalmente a partir de 1808.
Assim, vê-se que a
literatura é sempre polivalente, estando em contato com outras dinâmicas
literárias e sendo ponte entre realidades que dialogam de modo variado: se
antes a lírica
era domínio dos provençais, com o tempo, os autores
italianos souberam dela se apropriar e criar uma lírica própria (ainda que
baseada naquela) e, mais, difundir essas novas criações em outros locais, em
que passam a dialogar também com a produção literária que lhes é própria (basta
pensar que a forma soneto virou prodotto
doc italiano, propagando-se por todo o mundo ocidental logo quando da sua
criação.
A hegemonia alcançada
pelas criações italianas, a partir de meados do século XIV, foi um fenômeno através
do qual não só essa literatura passa a ser valorizada mais acentuadamente que
as demais, mas também passa a ser uma espécie de polo irradiador de influência.
Portanto, quando se evoca a literatura italiana de então, o que se está fazendo
é salientar, hoje, as ligações que as literaturas mantinham entre si no momento
em que eram contemporâneas, além, obviamente, de se levar em conta as
influências e relações que se fazem de modo anacrônico.
Em relação à
distribuição dos autores no tempo, a partir das obras listadas no corpus analisado, percebe-se uma
predileção enorme e mesmo discrepante por autores do século XX, e alguns poucos
da virada do ottocento para o novecento. Dos 55 autores citados, 43
são autores do século XX ou que nascem em fins do século XIX. Contudo, a grande
maioria deles não se ocupa de fazer literatura, mas de estudá-la ou refletir
sobre ela. Além disso, estando as humanidades indissoluvelmente ligadas, há
recorrência de autores que tratam de ciências afins e não necessariamente da
literatura.
Dos 43 autores
citados do período em questão, cerca de metade se ocupa da teoria e/ou da
crítica literária; 10 são latinistas e servem de base aos estudos das letras
clássicas; temos ainda dois pensadores importantes: Giorgio Agamben e Carlo
Ginzburg. Ainda nessa linha de trabalho, temos a presença dos grandes
pensadores da esquerda Antonio Gramsci e Norberto Bobbio. Dos romancistas,
foram citados seis nomes apenas: Giorgio Bassani, Cesare Pavese, Primo Levi,
Natalia Ginzburg e Italo Svevo, além de Luigi Pirandello. Nessa mesma situação
encontra-se também Italo Calvino, que, sendo um autor multifacetado, teve
citadas várias obras, de diversos gêneros. Ainda nessa área em que se teoriza o
pós-moderno está Umberto Eco. Apesar de ter obtido fama internacional com o seu
romance histórico O nome da rosa, é
com suas obras teóricas que se insere na dinâmica dos estudos no curso de
Letras. Foram-lhe citadas Quase a mesma
coisa e Obra aberta.
Passando aos poetas
do século XX, temos citados apenas três nomes: Giuseppe Ungaretti, Umberto Saba
e Eugenio Montale, todos do primo
novecento, não existindo poetas citados no período do segundo dopoguerra. Desse último período,
contudo, temos a presença de dois homens da sétima arte: Pier Paolo Pasolini e
Michelangelo Antonioni, ambos cineastas que, além de criarem obras autorais,
dedicaram-se a releituras de obras literárias, como é o caso da Medeia de Pasolini, da qual era a
protagonista a maior cantora de ópera do século, a grega Maria Callas.
Excetuando-se os
autores do século XX, restam apenas oito autores, sendo eles: Guido Cavalcanti
(1258-1300), Dante Alighieri (1265-1321), Francesco Petrarca (1304-1374), Giovanni
Boccaccio (1313-1375), Marsilio Ficino (1433-1499), Giambattista Vico
(1668-1744), Giovanni Verga (1840-1922) e Giacomo Leopardi (1798-1837). Se do
século XX temos 43 literatos, dos demais temos apenas oito[14]. O mais distante
temporalmente é o poeta Guido Cavalcanti; seguem-no “as três coroas”. Além desses
três nomes fundamentais da literatura italiana, temos o humanista Marsilio
Ficino, o historiador Giambattista Vico, Giacomo Leopardi, um dos máximos
expoentes da poesia lírica, sendo seguido pelo verista Giovanni Verga, que teve
um dos seus contos transformados em ópera por Mascagni, Cavalleria Rusticana, além de obras que foram convertidas em longas-metragens,
como é o caso de La terra trema, de
Luchino Visconti, baseado em Os
Malavoglia.
Assim, são Dante e
Petrarca os autores mais utilizados, sendo que Boccaccio aparece em posição levemente
mais discreta. Todos os outros não aparecem de modo contundente; é a literatura
desses três autores que perfará os diálogos literários entre italianos e outras
literaturas/realidades ainda hoje, sendo sempre uma espécie de base comum para
os outros períodos/escolas posteriores, algo que provavelmente só será diluído
quando do momento pós-moderno, uma vez que mesmo o Modernismo dialogou muito
com a tradição, seja para combatê-la, seja para recriá-la.
Percebe-se, ainda,
que, mesmo que não haja uniformidade no modo com que os autores são escolhidos
para figurarem entre outras literaturas, é necessariamente o período de
ascensão da língua vulgar italiana o mais evocado, sendo central o papel dado à
poesia desse período. Posteriormente, há um hiato que percorrerá séculos, sendo
apenas o século XX aquele que se sobressairá em relação aos demais, porém, com
destaque dado aos textos teóricos, e sem cessar a influência da poesia de
séculos antes. Um dado a ser salientado é a ausência de mulheres: apenas
Natalia Ginzburg foi citada.
____________________________
Como citar: RODRIGUES, Rodrigo Vicente; WATAGHIN, Lucia. "A literatura italiana em diálogo com outras literaturas no âmbito do curso de Letras da USP". In "Literatura Italiana Traduzida", v. 1, n. 11, nov. 2020.
Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/ handle/123456789/217669
[1] CANDIDO, Antonio apud IZARRA, Laura P. Zuntini de. “Reinventando o
Brasil”. In: IZARRA, Laura P. Zuntini de. (Org.). Leituras estrangeiras e o Brasil: Diálogos. São Paulo: Humanitas,
2004.
[2] IZARRA, Laura P. Zuntini de. “Reinventando o
Brasil”. In: IZARRA, Laura P. Zuntini de. (Org.). Leituras estrangeiras e o Brasil: Diálogos. São Paulo: Humanitas,
2004, p. 8.
[3] ZYNGIER, Sonia. “A formação do leitor de
literaturas: diálogos entre três instituições”. In: IZARRA, Laura P. Zuntini
de. (Org.). Leituras estrangeiras e o
Brasil: Diálogos. São Paulo: Humanitas, 2004, p. 202.
[4] Houve também o que se pode chamar
de “missão italiana” na Universidade de São Paulo, quando no período
subsequente à sua criação, vieram vários docentes italianos, de várias áreas,
como um primeiro passo para a formação e fixação da tradição acadêmica entre
nós. Neste sentido, consultar: WATAGHIN, Lucia. Fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade
de São Paulo: a contribuição dos professores italianos. Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 34, p. 151-174, 1992.
[5] Ver: MAGALHÃES, Ana Gonçalves. Pintura
Italiana do entreguerras nas Coleções Matarazzo e as origens do acervo do
antigo MAM. 158 f. Tese de livre-docência. São Paulo: USP, 2014.
[6] Apesar da distância temporal, foi
pedido aos professores que citassem apenas obras e autores que figurassem
perenemente nos respectivos cursos ministrados, de modo que o corpus ter sido coletado em 2017 não se
mostra como algo obsoleto nos dias atuais.
[7]
EVEN-ZOHAR, Itamar. Polysystem Studies. Tel Aviv: The
Porter Institute for Poetics and Semiotics, and Durham: Duke University Press,
1990.
[8] IZARRA, op. cit., p. 15.
[9] FERRONI, Giulio. Profilo storico della letteratura italiana. Vol. I. Milano: Einaudi
Scuola, 2000, tradução nossa.
[10] Idem, p. 93.
[11] Ibidem, p. 96.
[12] Ibidem, p. 82.
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