La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

A literatura italiana em diálogo com outras literaturas no âmbito do curso de Letras da USP, por Rodrigo Vicente Rodrigues e Lucia Wataghin

 


 
Fato já discutido ad infinitum por muitos pesquisadores de muitas áreas das ciências humanas, sabe-se que as relações entre Brasil e Itália no plano da cultura e das artes sempre foram muito fecundas. Nesse sentido, a cidade de São Paulo se configura como um dos polos que concentraram a herança cultural e intelectual dos italianos que imigraram para o Estado. Destarte, sendo a literatura um dos meios de excelência através dos quais uma nação/povo transmite sua cultura e valores, reuniram-se obras e autores italianos que figuram como textos-base ou como textos de apoio em disciplinas independentes da área de estudos italianos ministradas no curso de Letras da USP.
Estudar a influência da literatura italiana sobre outras literaturas é um modo através do qual se pode apreender novos significados e sentidos que ela passa a ter em relações dialógicas. Esse tipo de abordagem torna-se ainda mais importante pois, conforme afirmou Antonio Candido em 1988, “estudar literatura brasileira é estudar literatura comparada, porque nossa produção foi sempre [...] vinculada aos exemplos externos [...]”[1]. Assim, observar aquilo que nos chega de fora é um ponto de partida muito frutífero para se entender o que, desde o Romantismo, se configurou como questão central dos literatos brasileiros, isto é, a criação de uma literatura nacional, empresa muito cara aos modernos da primeira leva, destacando-se Mário de Andrade.
As literaturas estrangeiras “interagem entre si e com as literaturas nativas no espaço diaspórico cultural brasileiro criando novos caminhos críticos de intersecção a serem percorridos”[2]. Isso significa dizer que, sendo o Brasil um país historicamente calcado em ondas migratórias, o que se pode tomar por “literatura brasileira” sempre esteve muito fortemente ligado a outras literaturas. Além disso, pela própria natureza do texto literário, que “nunca é um fim em si”[3], as relações, explícitas ou possíveis, entre eles são perenes nas dinâmicas literárias.
Além disso, pela própria conjuntura histórica em que surge a Universidade de São Paulo, num projeto político de ascensão do estado paulista (do qual a italianidade é parte indissolúvel), a cultura italiana tem um papel de destaque. Basta lembrarmos como a USP esteve sempre em contato com a cultura italiana de forma institucionalizada. Por exemplo, durante a década de 1930, ela teve no seu corpo docente o poeta e crítico Giuseppe Ungaretti[4], que esteve a cargo da criação da área de estudos italianos da casa; além disso, vemos também o Museu de Arte Moderna paulista sendo criado a partir da iniciativa privada de Ciccillo Matarazzo (de origem familiar italiana, sobrinho do Conde Francisco Matarazzo) que, para tanto, além de obras francesas, comprou na Itália entre 1946 e 1947 o núcleo inicial do acervo do museu[5], composto por obras de artistas italianos de então, como Funi, Sironi, Soffici, Morandi e Modigliani. Esse acervo inicial do antigo MAM-SP fora doado ainda sob tutela do Museu à USP que, posteriormente, cria o MAC para abrigá-lo. Além disso, a mesma universidade na década de 1950 organiza uma exposição de arte italiana em São Paulo.  Estes são apenas alguns exemplos de como a cultura italiana sempre esteve em diálogo com a Academia.

 Diálogos possíveis

O primeiro passo para se criar um mapa da presença da literatura italiana dentro do curso de Letras foi a coleta de dados junto aos docentes das outras áreas que não a do italiano através de entrevistas presenciais e questionários remotos que seguiram uma mesma sequência para que as respostas fossem mais ou menos padronizadas. A coleta inicial foi feita durante todo ano de 2017[6], e resultou num banco de dados composto por respostas de cerca de 50 docentes. A partir dele, tentou-se fazer uma verificação ampla de como a literatura italiana, enquanto sistema literário inserido dentro dos chamados polissistemas[7], faz-se presente, e traçar as relações possíveis que esses sistemas mantêm entre si. Assim, mais do que pensar as relações referentes às literaturas como um conglomerado de elementos, quer-se pensá-las como sistemas que se relacionam enquanto tais, sendo que a literatura, para além de uma rigidez de caráter nacionalista, quando traduzida, passa também a ser um sistema complexo que trava relações com os outros sistemas de forma dialógica no contexto de recepção. Por polissistema, portanto, entende-se algo que é complexo e heterogêneo, em que os sistemas que aí se relacionam não necessariamente precisam manter características de uniformidade, uma vez que, ao invés de pensá-los a partir do binômio semelhança x diferença, as relações se tornam o aspecto primordial. Primeiramente, criou-se um corpus em que constaram todos os autores e obras citadas pelos docentes, que foram categorizados, organizados e interpretados, de modo a salientar que “o estudo das literaturas estrangeiras no Brasil, em diálogo com as literaturas vernáculas, acrescenta realidades virtuais no espectro das diversas visões de mundo”[8].
Conclui-se que 83,8% dos docentes afirmaram utilizar textos italianos. Observando autores e obras citadas, é possível ter uma ideia do modo como a literatura italiana se faz presente nesse contexto: citaram-se 55 autores, que perfazem um arco temporal irregular que vai do século XII ao século XX/XXI: existem picos em determinados períodos, em que muitos autores foram evocados, ao passo que outros se mostram como hiatos. Dos escritores italianos, aparecem recorrentemente, em ordem decrescente: Dante Alighieri, Italo Calvino, Francesco Petrarca, Luigi Pirandello, Franco Moretti, Umberto Eco, Claudio Magris, Giacomo Leopardi, Giovanni Boccaccio, Giorgio Agamben, Italo Svevo, Giuseppe Ungaretti, Alfonso Berardinelli, Gian Biaggio Conte, Antonio Gramsci, Tomasi di Lampedusa e Primo Levi. Todos os outros 38 autores foram citados apenas uma vez.
Além disso, levando-se em conta as obras citadas, observou-se que a maioria dos textos italianos trabalhados pelos docentes é de natureza não ficcional (notadamente ensaios), seguidos por textos de poesia (segmento em que a Itália sempre foi (re)conhecido, isto é, a lírica) e, finalmente, textos em prosa e teatro.
Na prosa, destaca-se o romance de natureza autobiográfica de Primo Levi, É isto um homem?, seguido pela prosa ficcional de Italo Svevo, A consciência de Zeno, o Decameron de Boccaccio, peças de teatro de Pirandello e um romance seu, O falecido Mattia Pascal; por último, temos também um drama, O Leopardo, de Lampedusa. De Italo Calvino, há certo equilíbrio entre teoria e ficção, com destaque para Por que ler os clássicos e Seis propostas para o próximo milênio, ou seja, um texto que volta o olhar para o passado, enquanto o outro prospecta o que viria depois do momento pós-moderno.
A lírica italiana tem papel de destaque. Nesse sentido, Petrarca aparece como personagem central, sendo que com ele

nasce um novo tipo e intelectual, que inspirará o modelo humanista educado sobre o culto dos antigos [...]. O cancioneiro dá vida a uma poesia amorosa baseada na busca pela perfeição clássica e de símbolos absolutos: por séculos constituirá a base da linguagem poética europeia[9],
 
evocando-se uma das bases mais importantes do desenvolvimento da lírica amorosa no contexto ocidental (tanto o centro como as periferias que o orbitam).
Dante também aparece como um dos centros da lírica, tanto por ter elevado a língua vulgar estilizando-a poeticamente, mas também porque se tornou uma das bases mais sólidas da tradição poética italiana. Se “nos manuais de literatura prevalece normalmente a tendência de se colocar Dante ligado ao passado, a sublinhar as raízes medievais de sua cultura e de sua ideologia”[10], deve-se, porém, salientar a sua ‘paixão experimental’”[11].
Afora Dante e Petrarca, citou-se o também poeta Guido Cavalcanti que, não só temporalmente, mas também em relação ao modo como trabalha a lírica, estará grandemente ligado a Dante, pois em comparação a estes dois literatos, “os outros poetas próximos a eles se colocam em um nível mediano”[12] quando se fala na lírica amorosa e sobretudo no dolce stil nuovo. Assim, a poesia italiana evocada dialoga com as canções de amor trovadorescas de onde a noção de poesia amorosa nasce e que até hoje reverbera nas mídias de massa.
Partindo ainda de Dante e Petrarca, para se compreender as ligações entre os dois autores de poesia que perfazem, junto a Boccaccio, as “três coroas” e as outras dinâmicas literárias do mundo europeu contemporâneo a eles,
 
deve-se notar enfim que, necessariamente graças às obras máximas de Dante, Petrarca e Boccaccio, no curso do século XIV, muda-se o equilíbrio entre a literatura italiana e as outras literaturas europeias. À hegemonia das produções em língua d'Oc e língua d´Oïl, se sobrepõe aquela da nova literatura italiana, que se difunde nos outros países europeus, especialmente França e Inglaterra[13],
 
notadamente grandes influências para o Brasil: a primeira no plano cultural e artístico sobretudo, e a segunda nas relações econômicas principalmente a partir de 1808.
Assim, vê-se que a literatura é sempre polivalente, estando em contato com outras dinâmicas literárias e sendo ponte entre realidades que dialogam de modo variado: se antes a lírica era domínio dos provençais, com o tempo, os autores italianos souberam dela se apropriar e criar uma lírica própria (ainda que baseada naquela) e, mais, difundir essas novas criações em outros locais, em que passam a dialogar também com a produção literária que lhes é própria (basta pensar que a forma soneto virou prodotto doc italiano, propagando-se por todo o mundo ocidental logo quando da sua criação.
A hegemonia alcançada pelas criações italianas, a partir de meados do século XIV, foi um fenômeno através do qual não só essa literatura passa a ser valorizada mais acentuadamente que as demais, mas também passa a ser uma espécie de polo irradiador de influência. Portanto, quando se evoca a literatura italiana de então, o que se está fazendo é salientar, hoje, as ligações que as literaturas mantinham entre si no momento em que eram contemporâneas, além, obviamente, de se levar em conta as influências e relações que se fazem de modo anacrônico.
Em relação à distribuição dos autores no tempo, a partir das obras listadas no corpus analisado, percebe-se uma predileção enorme e mesmo discrepante por autores do século XX, e alguns poucos da virada do ottocento para o novecento. Dos 55 autores citados, 43 são autores do século XX ou que nascem em fins do século XIX. Contudo, a grande maioria deles não se ocupa de fazer literatura, mas de estudá-la ou refletir sobre ela. Além disso, estando as humanidades indissoluvelmente ligadas, há recorrência de autores que tratam de ciências afins e não necessariamente da literatura.
Dos 43 autores citados do período em questão, cerca de metade se ocupa da teoria e/ou da crítica literária; 10 são latinistas e servem de base aos estudos das letras clássicas; temos ainda dois pensadores importantes: Giorgio Agamben e Carlo Ginzburg. Ainda nessa linha de trabalho, temos a presença dos grandes pensadores da esquerda Antonio Gramsci e Norberto Bobbio. Dos romancistas, foram citados seis nomes apenas: Giorgio Bassani, Cesare Pavese, Primo Levi, Natalia Ginzburg e Italo Svevo, além de Luigi Pirandello. Nessa mesma situação encontra-se também Italo Calvino, que, sendo um autor multifacetado, teve citadas várias obras, de diversos gêneros. Ainda nessa área em que se teoriza o pós-moderno está Umberto Eco. Apesar de ter obtido fama internacional com o seu romance histórico O nome da rosa, é com suas obras teóricas que se insere na dinâmica dos estudos no curso de Letras. Foram-lhe citadas Quase a mesma coisa e Obra aberta.
Passando aos poetas do século XX, temos citados apenas três nomes: Giuseppe Ungaretti, Umberto Saba e Eugenio Montale, todos do primo novecento, não existindo poetas citados no período do segundo dopoguerra. Desse último período, contudo, temos a presença de dois homens da sétima arte: Pier Paolo Pasolini e Michelangelo Antonioni, ambos cineastas que, além de criarem obras autorais, dedicaram-se a releituras de obras literárias, como é o caso da Medeia de Pasolini, da qual era a protagonista a maior cantora de ópera do século, a grega Maria Callas.
Excetuando-se os autores do século XX, restam apenas oito autores, sendo eles: Guido Cavalcanti (1258-1300), Dante Alighieri (1265-1321), Francesco Petrarca (1304-1374), Giovanni Boccaccio (1313-1375), Marsilio Ficino (1433-1499), Giambattista Vico (1668-1744), Giovanni Verga (1840-1922) e Giacomo Leopardi (1798-1837). Se do século XX temos 43 literatos, dos demais temos apenas oito[14]. O mais distante temporalmente é o poeta Guido Cavalcanti; seguem-no “as três coroas”. Além desses três nomes fundamentais da literatura italiana, temos o humanista Marsilio Ficino, o historiador Giambattista Vico, Giacomo Leopardi, um dos máximos expoentes da poesia lírica, sendo seguido pelo verista Giovanni Verga, que teve um dos seus contos transformados em ópera por Mascagni, Cavalleria Rusticana, além de obras que foram convertidas em longas-metragens, como é o caso de La terra trema, de Luchino Visconti, baseado em Os Malavoglia.
Assim, são Dante e Petrarca os autores mais utilizados, sendo que Boccaccio aparece em posição levemente mais discreta. Todos os outros não aparecem de modo contundente; é a literatura desses três autores que perfará os diálogos literários entre italianos e outras literaturas/realidades ainda hoje, sendo sempre uma espécie de base comum para os outros períodos/escolas posteriores, algo que provavelmente só será diluído quando do momento pós-moderno, uma vez que mesmo o Modernismo dialogou muito com a tradição, seja para combatê-la, seja para recriá-la.
Percebe-se, ainda, que, mesmo que não haja uniformidade no modo com que os autores são escolhidos para figurarem entre outras literaturas, é necessariamente o período de ascensão da língua vulgar italiana o mais evocado, sendo central o papel dado à poesia desse período. Posteriormente, há um hiato que percorrerá séculos, sendo apenas o século XX aquele que se sobressairá em relação aos demais, porém, com destaque dado aos textos teóricos, e sem cessar a influência da poesia de séculos antes. Um dado a ser salientado é a ausência de mulheres: apenas Natalia Ginzburg foi citada.

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Como citar: RODRIGUES, Rodrigo Vicente; WATAGHIN, Lucia. "A literatura italiana em diálogo com outras literaturas no âmbito do curso de Letras da USP". In "Literatura Italiana Traduzida", v. 1, n. 11, nov. 2020. 

Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/217669




[1] CANDIDO, Antonio apud IZARRA, Laura P. Zuntini de. “Reinventando o Brasil”. In: IZARRA, Laura P. Zuntini de. (Org.). Leituras estrangeiras e o Brasil: Diálogos. São Paulo: Humanitas, 2004.
[2] IZARRA, Laura P. Zuntini de. “Reinventando o Brasil”. In: IZARRA, Laura P. Zuntini de. (Org.). Leituras estrangeiras e o Brasil: Diálogos. São Paulo: Humanitas, 2004, p. 8.
[3] ZYNGIER, Sonia. “A formação do leitor de literaturas: diálogos entre três instituições”. In: IZARRA, Laura P. Zuntini de. (Org.). Leituras estrangeiras e o Brasil: Diálogos. São Paulo: Humanitas, 2004, p. 202.
[4] Houve também o que se pode chamar de “missão italiana” na Universidade de São Paulo, quando no período subsequente à sua criação, vieram vários docentes italianos, de várias áreas, como um primeiro passo para a formação e fixação da tradição acadêmica entre nós. Neste sentido, consultar: WATAGHIN, Lucia. Fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo: a contribuição dos professores italianos. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 34, p. 151-174, 1992.
[5] Ver: MAGALHÃES, Ana Gonçalves. Pintura Italiana do entreguerras nas Coleções Matarazzo e as origens do acervo do antigo MAM. 158 f. Tese de livre-docência. São Paulo: USP, 2014.
[6] Apesar da distância temporal, foi pedido aos professores que citassem apenas obras e autores que figurassem perenemente nos respectivos cursos ministrados, de modo que o corpus ter sido coletado em 2017 não se mostra como algo obsoleto nos dias atuais.
[7] EVEN-ZOHAR, Itamar. Polysystem Studies. Tel Aviv: The Porter Institute for Poetics and Semiotics, and Durham: Duke University Press, 1990.
[8] IZARRA, op. cit., p. 15.
[9] FERRONI, Giulio. Profilo storico della letteratura italiana. Vol. I. Milano: Einaudi Scuola, 2000, tradução nossa.
[10] Idem, p. 93.
[11] Ibidem, p. 96.
[12] Ibidem, p. 82.
[13] Ibidem, p. 129.
[14] Excluíram-se dessa interpretação dos dados aqueles autores que foram citados apenas uma vez.