La poesia e la sapienza del mondo, di Marco Ceriani

Acareação – Faccia a faccia, por Loretta Emiri

 


 As composições que se seguem foram escritas em Boa Vista durante o mês de agosto de1985. Em maio de 1987 foram publicadas no jornal Porantim. Em 1992 entraram a fazer parte do livro Mulher entre três culturas, Edicon, São Paulo. Entre agosto e outubro de 2020 foram publicadas, separada e semanalmente, no Caderno de Cultura de Pressenza – Agência Internacional de Notícias, sendo as versões originais em português acompanhadas por versões em italiano.

 


 I

 

Tinha acabado de chegar de volta em Boa Vista.

De manhã cedo, passei perto do Coreto:

uma mulher loira e seu menino aí dormiam,

deitados no chão.

Enquanto os contemplava, levantaram:

ela bonita e suja, com roupa esfarrapada,

meio hippie, eu pensei;

ele pequeno e frágil.

Ela na frente, o menino atrás.

Ela cambaleando;

o menino pacatamente chorando,

devagarzinho andando,

querendo parar.

Ela parando para o menino esperar,

ele não conseguindo andar.

Ela descalça,

os pés inchados do menino cheios de feridas sangrando.

 

Na sociedade yanomami,

tias maternas são chamadas mãe,

tios paternos são chamados pai.

Quem cuida das crianças

não é apenas a família nuclear,

mas a comunidade.

 

 

Ero da poco tornata a Boa Vista.

Di primo mattino, passai davanti al Coretto:

una donna bionda e il suo bambino lì dormivano,

sdraiati per terra.

Mentre li contemplavo, si alzarono:

lei carina e sporca, con indumenti stracciati,

mezza hippie, pensai;

lui piccolo e fragile.

Lei davanti, il bambino dietro.

Lei barcollando;

il bambino piangendo pacatamente,

camminando lentamente,

volendo fermarsi.

Lei fermandosi per aspettare il bambino,

lui non riuscendo a camminare.

Lei scalza,

i piedi gonfi del bambino pieni di ferite sanguinanti.

 

Nella società yanomami,

zie materne sono chiamate mamma,

zii paterni sono chiamati papà.

A prendersi cura dei bambini

non è la sola famiglia nucleare,

ma la comunità.

 

 


II

 

Eu ia de Guarulhos para São Paulo.

Prensada no corredor do ônibus,

a mãe tentava proteger o menino cianótico.

Os passageiros olhavam desgostados a morte na cara:

redondíssimos olhos perdidos nas órbitas,

moleira baixa, pele amarela.

Na parada à altura do hospital,

uma dura luta para conseguir descer.

Pai desse menino não tem carro.

Parentes e amigos desse menino não têm carro.

Nem uma ambulância disponível para esse menino.

 

Quando Xaahemè percebeu

que a filinha estava passando mal,

preocupada falou com seu irmão.

Ligeiro, ele saiu rumo à maloca vizinha.

Pouco mais de duas horas depois,

voltava acompanhado por Opomoxi,

velho e renomado xamã.

Logo começou a cura xamanista,

enquanto na maloca

as atividades se desenrolavam no ritmo habitual.

Ninguém olhando para o xamã e sua pequena paciente,

porém, todo mundo alerta,

acompanhando a cura com ouvido atento,

compartilhando da preocupação da mãe

e da fé do xamã.

 

 

Andavo da Guarulhos verso San Paolo.

Schiacciata nel corridoio del pullman,

la mamma tentava proteggere il bambino cianotico.

Disgustati, i passeggeri guardavano in faccia la morte:

rotondissimi occhi persi nelle orbite,

fontanella bassa, pelle gialla.

Nella fermata all’altezza dell’ospedale,

una dura lotta per riuscire a scendere.

Il padre di quel bambino non ha automobile.

Parenti e amici di quel bambino non hanno automobile.

Nemmeno un’ambulanza disponibile per quel bambino.

 

Quando Xaahemè percepì

che la figlioletta stava male,

preoccupata parlò con suo fratello.

Veloce, lui partì in direzione del villaggio vicino.

Poco più di due ore dopo,

tornava accompagnato da Opomoxi,

vecchio e rinomato sciamano.

Subito iniziò la cura sciamanica,

mentre nella maloca*

le attività si svolgevano a ritmo abituale.

Nessuno guardando lo sciamano e la sua piccola paziente,

però, tutti all’erta,

accompagnando la cura con udito attento,

condividendo la preoccupazione della mamma

e la fede dello sciamano.

 

 

Foto: Loretta Emiri

III

 

Em Guarulhos hospedei-me numa casa de freiras.

As freiras mantinham um jardim-de-infância.

Os meninos do jardim-de-infância só sabiam gritar.

Quando, por causa dos gritos,

meu ouvido e minha alma começavam a sangrar,

eu fugia atrás da discrição.

Televisão ligada dia e noite, rádio e som altos,

e os meninos gritam para serem ouvidos.

Adultos falando,

e os meninos gritam na tentativa de serem ouvidos.

Enquanto televisão e adultos

continuam vomitando palavras,

os meninos aprendem a gritar.

 

Missão Catrimâni, quantas horas vividas

na pequena e bem equipada

secretaria/radiofonia/biblioteca/arquivo!

Às vezes, uns imperceptíveis movimentos

chamavam minha atenção.

E olhava pela janela telada: os jovens guerreiros,

armados de arcos e flechas

proporcionais ao próprio tamanho,

andavam ao redor, em pontas de pé,

retendo o fôlego para os bichinhos não alertarem;

olhos e ouvidos atentos, pássaros e lagartos procurando;

com olhares e sinais comunicando entre si.

No silêncio da mata que fala, brincando,

aprendendo a caçar.

No silêncio da mata que fala, escutando,

aprendendo a viver.

 

 

A Guarulhos mi ospitai in una casa di suore.

Le suore gestivano un asilo.

I bambini dell’asilo sapevano solo gridare.

Quando, a causa delle grida,

il mio udito e la mia anima cominciavano a sanguinare,

io fuggivo alla ricerca di discrezione.

Televisione accesa giorno e notte, radio e giradischi a tutto volume,

e i bambini gridano per farsi ascoltare.

Adulti parlando,

e i bambini gridano nel tentativo di farsi ascoltare.

Mentre televisione e adulti

continuano a vomitare parole,

i bambini imparano a gridare.

 

Missione Catrimâni, quante ore vissute

nella piccola e ben attrezzata 

segreteria/radiofonia/biblioteca/archivio!

A volte, alcuni impercettibili movimenti

richiamavano la mia attenzione.

E guardavo dalla finestra con zanzariera: i giovani guerrieri,

armati di archi e frecce

proporzionali alla propria statura,

camminavano nelle vicinanze, in punta di piedi,

trattenendo il respiro per non allarmare gli animaletti;

occhi e udito attenti, cercando uccellini e lucertole;

con occhiate e segnali comunicando tra di loro.

Nel silenzio della foresta che parla, giocando,

imparando a cacciare.

Nel silenzio della foresta che parla, ascoltando,

imparando a vivere.

 


 

IV

 

Eu tinha acabado de levantar

e percorria uma avenida no coração de São Paulo.

A mocinha estava ainda deitada,

num cobertor sujo enrolada,

o colchão sujo jogado na calçada,

na frente de uma loja ainda fechada.

Seus profundíssimos olhos, cheios de vazio,

entraram em mim:

questionando por que meu colchão estava limpo,

por que meu cobertor estava limpo,

por que eu dormia dentro de uma casa.

 

A vagina de Perata Wakathautheri

sangrou pela primeira vez.

Rapidamente,

foi construído um abrigo dentro da maloca,

perto da área reservada à sua família extensa.

Só saiu do abrigo após a segunda menstruação

e, nessa temporada, não conversou mais com ninguém:

só escutou a comunidade dizer.

Entrou menina:

quando saiu do obrigo,

no rosto magro e pálido

brilhavam olhos de mulher.

 

 

Mi ero appena alzata

e percorrevo un viale nel cuore di San Paolo.

La ragazza era ancora sdraiata,

avvolta in una coperta sporca,

il materasso sporco buttato sul marciapiedi,

di fronte a un negozio ancora chiuso.

I suoi profondissimi occhi, pieni di vuoto,

entrarono in me:

chiedendomi perché il mio materasso era pulito,

perché la mia coperta era pulita,

perché io dormivo dentro a una casa.

 

La vagina di Perata Wakathautheri

sanguinò per la prima volta.

Rapidamente,

venne costruito un separé dentro alla maloca*,

vicino all’area riservata alla sua famiglia estesa.

Uscì dal separé solo dopo la seconda mestruazione

e, in quel periodo, non parlò più con nessuno:

soltanto ascoltò la comunità dire.

Entrò bambina:

quando uscì dal separé,

nel volto magro e pallido

brillavano occhi di donna.

 

 


V

 

Não foi em Calcutá, não, foi em São Paulo.

Passei umas vezes por aquela rua

e ele aí, sentado no chão.

Um pesado e escuro capote do qual saíam:

uma cabeça de velho esquelético,

uma mão segurando um saquinho de plástico

com algo para comer,

um olho-de-mijo.

Nada mais,

nem uma Madre Teresa por perto.

 

Porako, o mais velho dos Wakathautheri,

pai de uma só filha natural

e de muitos filhos adquiridos.

A mulher alimentando a fogueira.

As filhas oferecendo os produtos da coleta.

Os genros trabalhando na roça dele

e caçando para ele.

Ele, que quase não anda mais,

deitado na rede,

ninando os netos.

 

 

Non è successo a Calcutta, no, è successo a San Paolo.

Passai alcune volte per quella via

e lui lì, seduto per terra.

Un pesante e scuro giaccone dal quale uscivano:

una testa di vecchio scheletrico,

una mano reggendo un sacchetto di plastica

con qualcosa da mangiare,

una pozza d’urina.

Niente altro,

nemmeno una Madre Teresa vicino.

 

Porako, il più vecchio dei Wakathautheri,

padre di una sola figlia naturale

e di molti figli adottivi.

La moglie alimentando il fuoco.

Le figlie offrendo i prodotti del raccolto.

I generi lavorando nel suo campo

e cacciando per lui.

Lui, che quasi non cammina più,

sdraiato nell’amaca,

cullando i nipoti.

 

 

Foto: Jorge Macêdo

VI

 

“Tá bom louro, tá bom louro, tá bom louro”.

Hora após hora,

um dia atrás do outro,

um grito estridente após o outro,

o papagaio “civilizado” já aprendeu a falar,

e a paciência da gente a inchar.

 

Na maloca dos Xekereikỳkètheri,

os papagaios “primitivos” de estimação

só com suas cores incríveis

chamaram minha atenção.

 

 

“Va bene pappagallo, va bene pappagallo, va bene pappagallo”.

Un’ora dopo l’altra,

un giorno dietro l’altro,

un garrito stridente dopo l’altro,

il pappagallo “civilizzato” ha già imparato a parlare,

e la pazienza delle persone a gonfiare.

 

Nella maloca* degli Xekereikỳkètheri,

i domestici pappagalli “primitivi”

solo con i loro colori incredibili

hanno richiamato la mia attenzione.

 

 


VII

 

Tecnologia do mundo ocidental:

telhas de alumínio,

armadores de ferro,

homens como máquinas.

A chuva grossa cai

e as telhas batem uma contra a outra

com violência

e não deixam repousar.

A rede balança

e o armador de ferro, come seu ruído estridente,

não deixa repousar.

Os homens, que já são máquinas,

com esses barulhos nem se incomodam mais,

e minha exigência de silêncio não sabem entender

e, tampouco, respeitar.

 

Maloca do mundo primordial:

a chuva grossa cai e, imperceptível,

bate contra o teto de folhas de ubim,

para o sono conciliar.

A rede balança e a corda de curauá,

sem ruídos, esfrega contra o pau,

para o sono conciliar.

Entre os yanomami, homens ainda,

meu mundo de máquinas posso esquecer

e minha exigência de silêncio,

em plenitude, posso viver.

 

 

Tecnologia del mondo occidentale:

tetto di pannelli di alluminio,

ganci di ferro,

uomini come macchine.

La pioggia grossa cade

e i pannelli battono uno contro l’altro

con violenza

e non lasciano riposare.

L’amaca oscilla

e il gancio di ferro, con il suo cigolio stridente, 

non lascia riposare.

Gli uomini, che già sono macchine,

con questi rumori nemmeno si incomodano più,

e la mia esigenza di silenzio non sanno capire

e, tantomeno, rispettare.

 

Maloca del mondo primordiale:

la pioggia grossa cade e, impercettibile,

batte contro il tetto di foglie,

per il sonno conciliare.

L’amaca oscilla e la corda,

senza cigolii, sfrega contro il palo,

per il sonno conciliare.

Fra gli yanomami, ancora uomini,

il mio mondo di macchine posso dimenticare

e la mia esigenza di silenzio,

in pienezza, posso vivere.

 

 


VIII

 

O circo chegou em Boa Vista.

Eu fui ao circo.

A grande tenda:

sequência de paus, teto, praça central

para a ilusão representar.

Os artistas, pintados e enfeitados,

entraram correndo,

gritando animados,

e deram umas voltas no pátio central.

Entre uma exibição e outra,

houve uma homenagem aos Etruscos,

antiga civilização destruída

no choque com a violência de outras civilizações.

 

Soube que na Amazônia havia Yanomami.

E vim à Amazônia.

A grande maloca:

sequência de paus, teto, praça central

para a vida representar.

Os hóspedes, pintados e enfeitados,

entraram correndo,

gritando animados,

e deram umas voltas no pátio central.

Yanomami, entre uma agressão e outra,

o violento branco civilizado

com tua vida e cultura está querendo acabar.

E o dia em que o objetivo alcançar,

ainda, por cima de tudo, com sua cara de pau,

debaixo de uma tenda de circo,

tua primitiva civilização destruída vai querer homenagear.

 

 

Il circo arrivò a Boa Vista.

Andai al circo.

La grande tenda:

sequenza di pali, tetto, piazza centrale

per l’illusione rappresentare.

Gli artisti, dipinti e ornati,

entrarono correndo,

gridando animati,

e fecero dei giri nel patio centrale.

Fra un’esibizione e l’altra,

ci fu un omaggio agli Etruschi,

antica civiltà distrutta

nello scontro con la violenza di altre civiltà.

 

Seppi che in Amazzonia c’erano gli Yanomami.

E venni in Amazzonia.

La grande maloca:

sequenza di pali, tetto, piazza centrale

per la vita rappresentare.

Gli ospiti, dipinti e ornati,

entrarono correndo,

gridando animati,

e fecero dei giri nel patio centrale.

Yanomami, tra un’aggressione e l’altra,

il violento bianco civilizzato

con la tua vita e cultura vuol farla finita.

E il giorno in cui l’obiettivo raggiungerà,

ancora, oltretutto, con la sua faccia di bronzo,

sotto a una tenda di circo,

alla tua primitiva civilizzazione distrutta vorrà rendere omaggio.

 

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Loretta Emiri nasceu na Umbria em 1947, e desde 1977 estabeleceu-se na Amazônia brasileira, onde por 18 anos sempre trabalhou com ou pelos índios. Os primeiros quatro anos e meio, viveu com os indígenas Yanomami das regiões dos Catrimâni, Ajarani e Demini. Entre eles, desenvolveu trabalhos de assistência sanitária e um projeto chamado Plano de Conscientização, do qual fazia parte a alfabetização de adultos na língua materna. O objetivo era fornecer às comunidades novos conhecimentos que lhes dessem condições para analisar criticamente o mundo dos brancos e assim se defenderem no contato com ele. Fruto da pesquisa linguística e da experiência desenvolvida, naquela época produziu vários ensaios e trabalhos didáticos, entre os quais: Gramática pedagógica da língua yãnomamè (Grammatica pedagogica della lingua yãnomamè), Cartilha yãnomamè (Abbecedario yãnomamè), Leituras yãnomamè (Letture yãnomamè), Dicionário Yãnomamè-Português (Dizionario Yãnomamè-Portoghese). Outras informações estão disponíveis em https://lorettaemiriegliyanomami.wordpress.com/informazioni/.


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Como citar: EMIRI, Loretta. "Acareação-Faccia a faccia". In "Literatura Italiana Traduzida", v. 1, n. 12, dez. 2020. 
Disponível em:https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/218051